António Areal, Opus II, nº 78, 1963 |
Uma rua miserável às portas da cidade. Ainda não tinha chegado ali o lençol de alcatrão. A terra batida deixava ver o rasto de carroças, de automóveis, pegadas animais e humanas. As casas baixas tinham janelas escurecidas pelos anos e portas de madeira de onde a tinta ia caindo, encarquilhada, seca, até se dissolver em pó, levado pelo vento. Aqui e ali, despontavam árvores ainda jovens, já cansadas, com se sofressem de uma privação de que jamais se recuperariam. Entre as casas, havia muros e paliçadas, para além deles avistavam-se outras árvores, mais frondosas, talvez pequenos pomares para abastecimento dos moradores. Era um tempo de trocas reduzidas, de abastança fortuita e de pobreza assegurada. Um som de violino rompe o silêncio que um transeunte ocasional julgaria eterno. No meio da rua, suspenso da cegueira que tolhe os olhos, um homem, coberto por um velho chapéu de abas largas, faz deslizar o arco sobre as cordas. Os dedos movem-se com vagar, ouve-se uma música lenta, melancólica, como se a tristeza dos olhos vazios descesse pelos braços e tomasse conta das mãos. Caminha amparado por um adolescente, talvez um filho, de boné na cabeça, um saco no braço, calças pelo meio das pernas e pés descalços, sujos pela poeira dos caminhos. Não há ninguém nas janelas. Uma criança, ainda não terá cinco anos, aproxima-se daquele par sombrio, como se o som que se solta do violino fosse um íman que a atraísse. Indiferente, o músico entrega-se, com paixão contida, à peça que toca, enquanto atravessa a rua, sempre amparado pelo rapaz de pés descalços, sob a vigilância atenta da criança, que se imobilizou e segue com os olhos o lento desaparecer daqueles estranhos. Uma janela abre-se, uma mulher, ainda jovem, chama a criança, esta vira-se e corre para casa. A música extingue-se, fundida na luz suja da amanhã.
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