sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Poemas para uma Terra Interior (ii)

Bartolomeu Cid dos Santos, Terra Incógnita (Gulbenkian)

Descer pela escada viva da terra

ao palácio sombrio do vento norte.

Encontrar na viagem a boca ferida,

a gruta do desejo então desperta.

 

Um caminho sinuoso na memória,

a palavra de fogo desenhada,

símbolo de sal e solidão,

no interior vivo da poeira nocturna.

 

Rasgada a crosta crua da terra,

o sussurro do vento ressoa

na ondulação levedada do silêncio.

 

Um comércio de luz e sol abre

sinais e segredos ao cântico da vida

erguendo-se na morada da morte

 

Maio de 1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Beatitudes (72) As velhas cozinhas

Amadeo de Souza-Cardoso, Cozinha da casa de Manhoufe, 1913

As velhas cozinhas, onde uma química feita pela experiência dos séculos imperava, são um breviário de recordações fundadas na domesticação do fogo e na placidez das águas. Dali, saíam promessas de uma felicidade eterna fundada nos pequenos prazeres da mesa, alicerçada na hermética alquimia dos sabores.

sábado, 24 de agosto de 2024

O desenlace da questão climática


A ordem internacional funda-se em relações de poder, nas quais as potências perseguem o que os seus governantes consideram os seus interesses. Não são reguladas por nenhuma legislação que torne a comunidade internacional uma comunidade de direito e muito menos se orientam por princípios morais. As belas almas caem na falácia da composição, quando pensam que aquilo que se aplica a alguns estados, a submissão de toda a comunidade, incluindo o governo, à lei, se deverá aplicar ao sistema total de estados, à comunidade internacional. Não se aplica. Há alguns exercícios especulativos que supõem que a unidade de todas as potências da Terra só seria possível perante uma ameaça externa que pusesse em perigo a humanidade, por exemplo, uma ameaça extraterrestre.

Esta especulação choca com a natureza das coisas. Quantas vezes um inimigo externo encontro aliados dentro da comunidade que pretende submeter? Contudo, não precisamos de uma ameaça extraterrestre para fazer perigar a humanidade. Esta é uma espécie em perigo de extinção. As alterações climáticas são um inimigo real da humanidade. As catástrofes naturais induzidas pela acção humana não escolhem potência para atacar ou para proteger. Elas desenrolam-se de acordo com uma legislação da natureza que não tem em conta a lei da força das relações internacionais. Esta ameaça que se desenrola aos nossos olhos, que tem o poder de eliminar a espécie, tem alguma capacidade para unir as potências, grandes e pequenas, num esforço comum para salvar a Terra?  Todos conhecemos a resposta.

A questão climática é o principal problema que enfrentamos. Perante a falência da ordem internacional para a resolver, apesar da multiplicação das cimeiras e das declarações sobre o clima, para evitar a catástrofe que se anuncia só parece haver duas soluções. Ou os homens deixam de ser o que são, ou o problema acabará por ter uma resolução violenta. Não é plausível que os homens se tornem razoáveis e existam conversões em massa para pôr fim à sociedade de consumo. Resta a solução que a espécie humana escolhe com frequência perante situações críticas, a violência, o conflito entre aqueles que percebem a situação em que nos encontramos e os que apostam em tornar o planeta inabitável. Vai chegar o momento, ainda pouco perceptível, em que não será possível fingir que o problema climático se resolve com declarações e tratados que não alteram nada. As diversas potências serão obrigadas a assumir as suas posições e defendê-las de forma violenta. Infelizmente, parece que é para aí que, como sonâmbulos, caminhamos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Comentários (22)

Hans Thoma, Studien zum Gemälde "Nach der Schule (Anfänge der Kunst)", 1873

(...) Eu estou aqui
Ou ali, ou algures. No meu começo.
T. S. Eliot

A nossa casa é incerta no espaço. Pode ser aqui ou ali. Pode ser algures, mas é sempre a mesma e dela nunca saímos, pois é o nosso começo e em cada instante começamos o caminho. A vida é feita de incessantes começos sempre inéditos e são esses começos, múltiplos e apenas um, que impedem a nossa casa de enraizar-se em nenhures, porque aí não há começo. Só o nada o habita.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Máximas (22)

Vítor Pomar. A Passagem do Tempo I, 1988 (Gulbenkian)
Deixar passar o tempo não é um acto da nossa liberdade, mas a conformação ao inevitável.

domingo, 18 de agosto de 2024

Poemas para uma Terra Interior (i)

José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada n.º 2, 1971 (Gulbenkian)

Dorme a noite no centro da terra,

trevas de carvão no esplendor da loucura.

A música enfeixada no cobalto do dia,

um ritmo perpétuo no chão do verso.

 

Oiço o som secreto, respiratório,

a sílaba ardente da água mineral.

Um vento perplexo, côncavo de luz,

desce como fogo no vazio das grutas.

 

Sobem rumores na sílica do mundo,

galerias e túneis rompem a rocha

presos ao estandarte rugoso da mágoa.

 

Sobre o linho rasgado na dor da terra,

no negro horizonte onde a luz se apaga,

adormecem anjos cansados da noite.

 

Abril de 1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Simulacros e simulações (66)

Menez, sem título, 1977 (Gulbenkian)

A partir da geometria das formas simula-se a grande cidade, imaginando edifícios, sonhando geografias, fantasiando as sombras nos dias de calor. Toda a arquitectura é um exercício de simulacros, um trabalho feitos de fluxos de imagens e rastos de ideias, de onde nasce, na rudeza da matéria, o ritmo da realidade.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Ursula K. Le Guin, Do outro lado do sonho

 

Publicado originalmente em 1971, nos Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de 2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.

As alterações da realidade estavam longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo, em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano. Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente, caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os seus sonhos representam.

A preocupação de Orr com o seu poder de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos passados.

O outro lado do romance de Ursula Le Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber, psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam. Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador, para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e social.

O romance não representa um conflito entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro radicalmente diferente.

domingo, 11 de agosto de 2024

Knut Hamsun, À Porta do Reino (Ved Rigets Port)

 

Não traduzida em português Ved Rigets Port (À Porta do Reino) é a primeira peça de uma trilogia centrada na figura de Ivar Kareno, um jovem filósofo que pretende manter-se fiel à radicalidade do seu pensamento, influenciado por Nietzsche, e em confronto com a filosofia de origem britânica. As outras duas peças são Livets Spill (O Jogo da Vida) e Aftenmde (Crepúsculo). Existe uma edição francesa, da editora Actes du Sud, que reúne as três peças. Em À Porta do Reino, a tensão dramática gira em torno do tema da fidelidade. Esta é tratada em diversos níveis, desde a fidelidade matrimonial, o nível mais baixo e menos relevante na peça, a fidelidade entre amigos e a fidelidade a si mesmo, o tema central que fundamenta os outros níveis de fidelidade.

A fidelidade a si mesmo, contudo, é a fidelidade às suas ideias, à visão que se tem do mundo. Ivar Kareno, como acontece, não poucas vezes no mundo do pensamento, pretende representar uma ruptura com aquilo que está estabelecido. Vive centrado na produção e publicação de uma obra que, imagina, abrirá novos horizontes, obra que põe em causa o pensamento e a influência do professor Gylling, um reputado e respeitado filósofo e professor. Casado com Elina, Ivar Kareno, tem o casamento à beira da ruptura. Por um lado, a incapacidade de sustentar a família, pois a sua obra é recusada pelo editor, que não está disponível para publicar uma obra radical e um ataque a Gylling. Por outro, pela pouca atenção que dá à sua mulher, a qual se sente abandonada, pela excessiva preocupação de Ivar com a obra. A fidelidade a si é uma fidelidade, de natureza fundamentalista, às suas ideias radicais, que nem o perigar do casamento, nem a bancarrota do casal, o levam a pôr em causa, em amenizar a crueza do pensamento de uma juventude ainda imatura, como sugere o Gylling.

Essa intransigência com as ideias emerge numa outra situação. Carter Jerven, um amigo de Kareno e que com ele partilha uma nova visão do mundo, acabado de se doutorar, empresta-lhes dinheiro para este evitar a bancarrota de Ivar a penhora dos seus bens. Este acaba por aceitar. Contudo, ao descobrir que a tese de doutoramento do amigo trai os princípios em que ambos acreditavam, ao perceber que, de algum modo, Jerven cedeu para encontrar um caminho para a sua carreira, devolve o dinheiro. Esta devolução e as razões apresentadas têm um efeito inesperado na vida de Jerven. A noiva, perante a recusa de Kareno em aceitar o dinheiro, rompe a relação. Jerven tenta, em nome da amizade, que Kareno aceite a sua ajuda, pois isso salvaria a sua ligação Mademoiselle Hovind, a noiva. Contudo, Ivar Kareno mantém-se intransigente. As suas ideias valem mais do que a amizade, ainda por cima a amizade de um homem que traiu os seus ideais de juventude.

Também o casamento de Ivar e Elian entra em crise. A situação financeira e, fundamentalmente, a pouca atenção que Ivar dá à mulher abrem o caminho para que Endre Bondensen, um jornalista influente e sedutor, atraia Elina, já desesperada pelas suas tentativas infrutíferas para levar a que o marido permita uma solução para a degradada situação financeira em que vivem, para que ele aceite a ajuda dos pais dela ou para que siga os conselhos do professor Gylling, os quais levariam à publicação da obra de Kareno pelo editor. A intransigência do jovem filósofo é total, e mesmo a ameaça de infidelidade da mulher é inútil para o fazer mudar de atitude. O casamento pode desfazer-se, o importante, porém, é que o autor seja fiel a si, isto é, às suas ideias e à sua radicalidade.

A peça de Hamsun explora uma ambiguidade na ideia de fidelidade a si. Ivar Kareno é, na verdade, fiel a si mesmo ou fiel a uma visão do mundo, a um conjunto de ideias e a um projecto de as impor destruindo outras visões do mundo? Será essa fidelidade uma relação autêntica consigo mesmo ou não passará de uma intransigência motivada por um conjunto de ideias abstractas, fruto de um ego inflacionado? Não é claro, nesta primeira peça, o estatuto de Kareno. Será um herói ou um bufão imaturo e incapaz de compreender o mundo? As relações concretas de amizade e de amor são trocadas pela fidelidade a essas ideias. Os outros – no caso, a mulher Elina e o amigo Carter Jerven – têm, claramente, menos valor, aos olhos do candidato a filósofo, do que essas ideias, pelas quais está disposto a enfrentar a pobreza e o abandono. O caminho de Ivar Kareno está em aberto e isso será explorado nas outras duas peças da trilogia.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Quatro olhares sobre o mundo


1. Venezuela, o drama esperado. Uma ditadura, e o regime venezuelano é uma ditadura, não acaba com eleições. Durante muito tempo, as eleições não precisavam de ser fraudulentas para o chavismo se manter no poder, mas a partir do colapso económico e social do país, o poder só se mantém graças à repressão e à farsa eleitoral. A Venezuela é um exemplo do drama de toda a América Latina, que dança entre regimes despóticos de direita e utopias de esquerda que desembocam em regimes despóticos de esquerda. Parece não haver ali espaço para políticas reformistas que tornem, paulatinamente, decentes aquelas sociedades.

2. O desafio americano. A desistência de Joe Biden da corrida presidencial abriu uma janela de esperança para aqueles que na América e na Europa defendem a democracia liberal, o Estado de direito e a aliança militar entre os EUA e os europeus. Contudo, Kamala Harris enfrenta um enorme desafio, num país onde os preconceitos sexistas e racistas têm muito peso no momento de votar. Os EUA já elegeram um presidente negro, mas não elegeram uma mulher, apesar de branca. Será que passados 8 anos, haverá força para eleger uma mulher, ainda por cima de origem não anglo-saxónica? Parte substancial da segurança dos europeus está nas mãos dos eleitores americanos.

3. O caso inglês. Os trabalhistas enfrentam um teste político aparentemente inesperado. O assassinato de três crianças por um jovem de 17 anos, filho de pais ruandeses, tem desencadeado, um pouco por todo o país, desacatos promovidos pela extrema-direita, que se tem manifestado com particular violência contra a polícia. Contudo, o número de votos alcançado pelo partido de Nigel Farage deveria ser um alerta para o estado de espírito da sociedade inglesa. O crescimento da extrema-direita por toda a Europa é um sinal da incapacidade das sociedades lidarem com o outro – isto é, aquele que não partilha os traços étnicos e as perspectivas culturais – quando este outro tem uma dimensão tal que o torna visível.

4. A abertura dos Jogos Olímpicos. Terão os católicos razão para estarem descontentes com a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris? Mais do que se pode pensar. Não por causa do suposto macaquear da Última Ceia. O que está em causa é que toda a concepção da cerimónia se coloca numa visão moral e cultural contrária ao mundo moral do cristianismo. Não se tratou de uma cerimónia indiferente aos valores do cristianismo, mas de uma cerimónia que partiu de valores morais e de uma cultura que se manifesta como se o cristianismo nunca tivesse existido. Este é o problema que tocou profundamente a Igreja de Roma.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Cânticos lunares (v)

Adriano Sousa Lopes, Noite no Canal(Gulbenkian)

O que faz a sombra da Lua reclinada

sobre os olhos vagarosos do vento?

Uma esplanada de som e silêncio

nas entranhas da terra,

a rocha dos meses na janela do tempo.

A lua é um passageiro marítimo,

pórtico sobre o porão da noite.

 

Quando as plumas da ave se erguem,

um astro sem pressa eleva-se do mar,

água na secura do mundo.

Uma ordem nasce na geografia lunar,

turbilhão de ondas amarelas,

o medo esconjurado da manhã,

vísceras a flutuar no vinho da vida.

 

Nas mãos vazias há um reflexo lunar,

o centro insignificante do coração,

serpente rubra na noite esquecida,

o incêndio nos braços caídos.

Os homens deitam-se sob a luz da Lua.

Um sono outonal desprende-se dos céus,

do cipreste erguido na margem do rio.

 

Junho de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Ensaio sobre a luz (121)

Marcelino Vespeira, Óleo 170, 1961 (Gulbenkian)

O lento emergir da luz, esse exercício de libertação da escórias vindas no fogo, das impurezas do centro da Terra, da poluição das águas inquinadas. Então, a luminosidade transborda no mundo para que tudo o que está oculto na escuridão das trevas se manifeste e o que é opaco se torne transparente.

sábado, 3 de agosto de 2024

Nocturnos 121

Ferdinand Fellner, Night, Open Field, c. 1830

Os cavalos da noite correm pelos campos abertos do Verão. Ao longe, ouve-se o relinchar dos animais e o vozear inquieto dos cavaleiros. Então, a cortina do horizonte rasga-se para que cavalos e cavaleiros por ela entrem, enquanto a aurora nasce trazendo no regaço o mistério luminoso da manhã.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Joe Biden e a esperança vã


No seu espaço de comentário na SIC, Luís Marques Mendes disse, no domingo em que foi conhecida a decisão do actual Presidente dos EUA em não se recandidatar, que Joe Biden sai pela porta pequena. Há neste comentário uma superficialidade que só não é de admirar porque, em geral, o comentariado político vive da espuma dos dias e da superfície dos acontecimentos. Imaginemos Joe Biden há vinte anos ou mesmo há dez. Se lhe pusessem a situação hipotética de ser Presidente dos EUA e encontrar-se, quando disputa a reeleição, com 81 anos e na situação patológica em que se encontra, e lhe perguntassem o que faria, o mais plausível seria que dissesse sem hesitação que se retiraria da corrida presidencial. Isto, porém, seria a reacção de alguém na plena posse dos seus recursos mentais.

O interessante na situação de Biden reside no caso da tentativa de levar até ao fim a recandidatura se inscrever já no plano da incapacidade de avaliar a própria situação, pois os recursos intelectuais e a base neuronal encontram-se, muito provavelmente, de tal maneira afectados que não conseguem realizar um processo de auto-análise com o mínimo de espírito crítico. No primeiro ensaio da tradução portuguesa de “Ensaios Sobre a Virtude & a Felicidade”, de Samuel Johnson, o autor escreve: “Túlio observou há muito que nenhum homem, por mais enfraquecido que esteja pelo tempo que já viveu, está ciente da sua própria decrepitude a ponto de supor que poderá não conservar o seu lugar no mundo por mais um ano”. Ao ensaio foi dado o nome de Esperança Vã. Parece haver na fragilidade dos homens não uma força para a ultrapassar, mas um poder de criar ilusões sobre o seu próprio estado.

Joe Biden estava já preso a essa ilusão e era através dela que via não apenas o seu futuro, como o mundo. Ele não sai pela porta pequena, mas sai pela porta da fragilidade, a qual não lhe permitiu perceber a real situação em que se encontra. O mais espantoso, porém, é que ainda foi possível fazer-lhe compreender que era o momento de renunciar à esperança vã que alimentava. Esta experiência é muito mais comum do que se pensa e todos estamos sujeitos a ela. Quando se trata de um assunto privado, como a resistência a aceitar que chegou o momento de ir para um lar, o drama é circunscrito. Quando, porém, se trata da direcção da maior potência mundial e que o destino do mundo democrático pode estar em jogo, o drama pode tornar-se em tragédia. E na tragédia, ao contrário do que pensa Marques Mendes, há grandeza na derrota do herói.