Publicado originalmente em 1971, nos
Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de
2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente
ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin
não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos
níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias
e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o
génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um
dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos
utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter
sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário
estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o
conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um
estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que
sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.
As alterações da realidade estavam
longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não
se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram
imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava
Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a
realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie
de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender
a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo,
em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano.
Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente,
caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos
limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a
realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de
planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação
psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O
senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer
experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os
seus sonhos representam.
A preocupação de Orr com o seu poder
de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do
tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam
o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a
cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo
menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa
esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos
vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do
passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar
um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade
de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram
consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou
evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no
passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais
terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum
tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É
insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha
mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias
conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos
passados.
O outro lado do romance de Ursula Le
Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber,
psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe
tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e
não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os
sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de
Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam.
Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da
transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e
da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador,
para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin
condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos
e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de
vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as
reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e
social.
O romance não representa um conflito
entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem
tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O
conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito
claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte
formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum
modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do
Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse
sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a
origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria
natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências
totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em
nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente
destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor
dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não
significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se
inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro
radicalmente diferente.