segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Comentários (32)

Anónimo Romano, Escena de gineceo (Villa Imperial. Pompeya)

Os antigos eram jovens, e nós,
disse Bacon num lúcido momento,
somos velhos, embrulhados em
constante movimento. (...)
António Franco Alexandre

Talvez os antigos não tivessem pressa de sair da sua juventude ou não encontrassem um modo para libertar o corpo das amarras com que a natureza os prendia à terra. A lucidez de Bacon, todavia, não é tanta quanto o poeta supõe. Sim, estamos embrulhados em constante movimento. Não conseguimos estar onde estamos, pois qualquer lugar se tornou uma fornalha que queima os incautos que pretendam repousar-se. Vivemos sob o signo do fogo, submetidos à dádiva de Prometeu, que nos condenou a um movimento perpétuo. Onde Bacon se engana é na nossa velhice. Não somos mais velhos que os antigos. Pelo contrário, somos, ao pé deles, crianças irrequietas a brincar com o lume. É o nosso estado infantil que nos embrulha nesse movimento constante e nos impede de descansar, por instantes, na frescura da noite.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A persistência da memória (32)

Dr. Konrad Biesalski e Dr. Krüger, Schmied Am Ambos, 1899

Do antigo trabalho sobre o ferro - desse exercício de submeter a vontade do metal e de lhe impor, por mãos humanas, um imperativo estranho à sua natureza, um mandamento nascido da necessidade humana - persiste a memória do fogo. Já na antiguidade, celebrada em Hefestos e no roubo de Prometeu, era um rememoração tão arcaica quanto decisiva. Não simbolizava apenas a possibilidade de sobrevivência, mas a de um projecto de domesticar o mundo selvagem, obrigá-lo a curvar-se ao desejo dos homens, atormentá-lo com a inconstância das labaredas, se se resistisse à decisão do homem.

sábado, 20 de setembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (23)

Camille Pissarro, Escarcha, 1973

A seca humidade da terra,

doença irisada

na maturação dos frutos.

 

Um mundo de água desaba

na celeste

arquitectura dos campos.

 

Pássaros de cobalto voam

presos no horizonte,

livres na soberania da tarde.

 

[1993]

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Linguagem comum


As democracias vivem do desacordo e do conflito entre perspectivas e interesses políticos divergentes. Contudo, esses desacordos e conflitos estão enraizados numa linguagem comum que permite que os projectos políticos sejam julgados pelo voto popular, sem isso representar um problema para quem defende projectos derrotados, nem dar um acréscimo de poder e de legitimidade – para além do que está na lei – a quem vence. O que surgiu, com a chegada em força da direita radical e extrema-direita, foi uma nova linguagem que não se inscreve na linguagem comum, mas que pretende aniquilar essa linguagem e impor uma outra completamente diferente, na qual os projectos políticos democráticos não tenham cabimento. 

Quando não há uma linguagem comum, o que surge não é apenas a incomunicabilidade entre as partes, mas a violência. Não se trata de derrotar os outros nas urnas, mas de utilizar eventuais vitórias nas urnas para aniquilar os outros, pervertendo o jogo democrático e, se isso não bastar, usar a perseguição política e a violência física. Basta observar o que se passa nos EUA. A Europa não é diferente dos Estados Unidos. Os eleitores – tal como aconteceu nos EUA – estão, cada vez mais, a escolher soluções radicais, políticas extremistas e a enfeitiçar-se com uma linguagem que traz violência verbal e aniquilação do outro. O espectro que assola o mundo ocidental já não é o do comunismo, mas o da guerra civil, cuja finalidade é liquidar a democracia liberal. É para uma guerra civil larvar que estes movimentos orientam a sua política, a sua comunicação e a sua formatação do eleitorado. 

Uma guerra civil pode ser fria ou quente. Uma ditadura é um guerra civil fria, em que uma parte – a que está no poder – tem as armas e a outra está desarmada. É quente quando os dois lados têm armas. Ainda é possível – pelo menos, na Europa – evitar a catástrofe, embora as notícias que vêm de França, da Alemanha e de Inglaterra não sejam animadoras. As forças democráticas parecem de mãos atadas. A destruição da linguagem comum e a consequente radicalização são processos políticos que, a partir de certa altura, fogem ao controlo dos feiticeiros que os lançaram, tornando-se uma bola de neve que ninguém controla e que arrasta tudo no seu caminho. Estamos a chegar a esse ponto. Se a democracia perder a linguagem comum que a sustenta, o que resta não é política, mas violência. A responsabilidade das forças democráticas é dupla: travar a deriva extremista e reconstruir a comunicação com os cidadãos. Sem isso, o risco não é o de perder umas eleições, mas a própria democracia e a vida decente que só ela permite.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Simulacros e simulações (75)

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

Primeiro como simulacro, depois como simulação. Por fim, como realidade. Assim chegam, sobre a Terra, as paisagens nascidas no inferno. Não interessa se no inferno da religião ou se naquele que os homens trazem dentro de si, pois este é a simulação do outro.

domingo, 14 de setembro de 2025

Beatitudes (82) Jogo

John Dumont, The Dice Players, 1891
Não é na vitória que reside a beatitude que abre o coração e alivia o espírito dos trabalhos de cada dia, mas na expectativa com que se aguarda aquilo que a sorte ou o acaso ditarão. Esse momento de suspensão, em que os dados lançados ainda não encontraram o seu lugar, inebria o jogador e é, mesmo que ele não o saiba, a razão da sua vida.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Sondagens e destinos

A mais recente sondagem da Aximage para o Diário de Notícias coloca, pela primeira vez, o Chega como o partido com mais intenções de voto. Independentemente, do facto de as diferenças dos resultados do Chega, da AD e do PS estarem dentro da margem de erro, há três notas que vale a pena salientar.

1. A estratégia de Luís Montenegro de tentar roubar votos ao Chega através da adopção de políticas próximas da direita radical não está a dar os frutos esperados. Parece que as pessoas preferem o original, o radicalismo do Chega, ao simulacro, a conversão ao radicalismo identitário da AD. O problema da AD é que não sabe o que fazer. Se pende para o centro, o Chega rouba-lhe eleitores. Se se inclina para a direita radical, o Chega rouba-lhe eleitores. Pura impotência.

2. Impotente está também a esquerda. Toda somada vale cerca de 35%, o que continua a mostrar que está estagnada e incapaz de inverter o declínio que teve o seu marco decisivo nas últimas eleições. Apesar do ligeiro crescimento do PS de José Luís Carneiro e do Livre de Rui Tavares, não existe qualquer élan que permita perceber uma inversão do estado em que está a curto ou mesmo a médio prazo. Nem sabe por onde começar.

3. O Chega, apesar da completa impreparação do partido, a começar pelo tonitruante líder, tem todas as possibilidades de chegar ao poder. Os maiores disparates que Ventura possa dizer, as mentiras mais descarada que profira, não têm qualquer impacto negativo. Pelo contrário, acrescentam-lhe votos. Isto não é uma coisa inédita. Basta olhar para os EUA. Existe uma forte possibilidade de os portugueses copiarem os americanos. Está no espírito do tempo. E este parece atar os braços, as mãos e os neurónios aos partidos democráticos. A força do destino.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (22)

Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908

Um brado surdo,

a voz debruada

pela sede,

elixir de penumbra,

um sulco

no rio da infâmia.

 

Sobre aqueles dias,

fogos-fátuos

atearam incêndios,

turvaram o terror,

a terra seca

a escorrer das mãos.

 

[1993]

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Ensaio sobre a luz (131)

A. R. Gurrey Jr., Old ocean singing a psalm of of delight…, 1910-1920
O oceano canta um salmo de luz e as nuvens, em coro, respondem, abrindo brechas para que a cintilação vinda do veludo das águas encha os céus, semeando-os de miríades de pontos de luz que, chegada a hora, voltarão aos mares. À música das esferas celestes, responde a terra com cânticos marítimos e promessas de uma sinfonia aquática e eterna.

sábado, 6 de setembro de 2025

Esquerda, uma crise estrutural


A crise que atinge, neste momento, a esquerda na sua globalidade, e que se manifesta, no caso português, em ter deixado de contar para qualquer revisão constitucional, não é um problema conjuntural, mas tem todas as características de ser uma doença estrutural. Não se trata de uma fatia de eleitores, não particularmente numerosa, que oscila entre o centro-direita e o centro-esquerda e que, nas últimas eleições, se inclinou um pouco para a direita. Trata-se de uma grande debandada, tendo os partidos de esquerda, entre 2015 e 2025, perdido quase 40% do seu eleitorado, o equivalente a 20% do eleitorado global. Estes números indiciam que a visão da esquerda para a sociedade – ainda que multifacetada – deixou de atrair os eleitores. A crise é estrutural porque as concepções ideológicas e políticas da esquerda perderam ancoragem em parte substancial do eleitorado. 

Há dois traços ideológicos que são fundamentais para compreender o que se passa. Em primeiro lugar, a emergência do que se pode chamar de identitarismo: a preocupação com a afirmação de uma identidade nacional. Em segundo lugar, a descrença nos mecanismos colectivos para resolução de problemas dos indivíduos. Em 2015, o Chega não existia e, em 2019, valia 1,3%. A esquerda não percebeu o que se estava a aproximar, apesar dos múltiplos exemplos vindos de fora. Presa ao cosmopolitismo dos socialistas e ao internacionalismo de bloquistas e comunistas, ficou cega para um problema que nem pensava que existisse. Pior: não se vislumbra como poderá encontrar um caminho para lidar com a atracção dos eleitores pelo soberanismo identitário, que é, agora, bandeira tanto do Chega como do PSD e do CDS. 

Se o identitarismo é problemático para a esquerda, o cepticismo perante os mecanismos colectivos para resolução de problemas é devastador. Aquilo a que se chama, comummente, esquerda nasceu e cresceu fundado na crença de que as soluções colectivas – revolucionárias ou reformistas – seriam o modo mais razoável para as pessoas melhorarem as suas vidas. Essa crença foi abandonada pelos eleitores, até por muitos, se não a maioria, dos que votam à esquerda. Os eleitores, ao abandonar a esquerda, escolheram dois caminhos: uma minoria converteu-se ao individualismo; a maioria, porém, procurou e procura um salvador, alguém que lhe resolva os problemas que nem o Estado, nem as lutas colectivas, nem a própria pessoa consegue resolver. A crise da esquerda é estrutural porque a esfera ideológica em que o eleitorado se passou a mover é completamente adversa aos valores e à tradição dessa esquerda.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nocturnos 131

Paul Cézanne, Château Noir, 1903-1904
A noite abriga-se na escuridão. Envolta em trevas, avança sobre a casa abandonada, a casa que se perdeu na negra luz do oblívio, como um móvel velho e sem préstimo que se deita fora. Assim suspensa, dança sobre o telhado carcomido pelo tempo e com o seu véu de seda cobre-a para a proteger dos rudes exércitos do futuro.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ciência e democratização da opinião


Uma notícia do Público informava sobre as razões que levam a geração Z, mas não só, a rejeitar o protector solar. O movimento antiprotecção solar é idêntico ao movimento antivacinas ou ao terraplanismo. Para além da contestação da ciência – isto é, do conhecimento rigorosamente testado e avaliado –, estes movimentos partilham o meio de propagação: as redes sociais. Estas são uma forma de democratização. Qualquer um pode emitir a sua opinião sobre qualquer coisa, sem que tenha de provar o que afirma. Antigamente, também existiam opiniões estapafúrdias e idiotas. Contudo, a sua propagação era muito limitada. As redes sociais mudaram tudo. Elas são o lugar em que qualquer opinião pode competir para arregimentar seguidores.

Este democratismo das redes sociais, ao dar força a movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia, antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou física nuclear.

O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes, caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica, como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação, são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais? Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.