O estertor do Estado Novo era já muito claro em 1973. Uma guerra colonial sem saída, uma paisagem social anacrónica, divisões entre as facções que sustentavam o regime, tudo isto permitiu uma coisa como o Zip-Zip, um programa de entretenimento que se tornou um nicho de contestação política. Foi lugar onde emergiram alguns dos cantores de protesto, entre eles José Barata Moura. Não é uma figura cimeira desse tipo de canção, onde se destacam nomes como José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira e Sérgio Godinho, e, no pós 25 de Abril, pouco explorou esta sua faceta de cantor de intervenção. Ao lado da vida universitária na Faculdade de Letras de Lisboa, fciou célebre pelas suas canções infantis. Vamos Brincar à Caridadezinha (1973) é a sua mais conhecida canção de denúncia social e política.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
A Casa Esquecida 5
Joan Hernández Pijoan, Flors per als campions I, 1990 |
Sabíamos o aroma do destino e a cor da noite,
o som da canícula no Outono que te
esperava,
o vento na praça onde contávamos
palmeiras,
as mãos cobertas pelo pólen da
língua.
O fogo era uma cicatriz aberta nos
lábios.
O corpo, água lustral
evaporando-se, espirais
de ervas, azevinho a arder nesse
ventre.
Coroação do silêncio, secreta
prosa da alma.
(1981)
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Nocturnos 8
sábado, 22 de fevereiro de 2020
Teremos de voltar ao básico?
Portugal é uma democracia liberal alicerçada num Estado de
direito, isto é, num Estado em que todos estão submetidos à lei. Todos somos
iguais perante essa mesma lei. Todos somos cidadãos, isto é, indivíduos que têm
um conjunto de direitos e deveres especificados na lei. Isto é o básico. Ser
homem ou mulher, ter uma dada orientação sexual, ter uma certa cor da pele, ter
uma religião ou não ter nenhuma, pertencer a uma classe social, ter uma
preferência política, nada disto acrescenta ou tira seja o que for à nossa
condição de cidadãos. Portanto, cada um de nós tem o direito de ser respeitado
independentemente do seu sexo, orientação sexual, cor da pele, classe social, pertença
religiosa ou política. Também cada um de nós tem o dever de respeitar o outro
independentemente do seu sexo, orientação sexual, cor da pele, classe social,
pertença religiosa ou política.
Preocupante é que o básico começa a não ser compreendido e
que essa incompreensão fala cada vez mais alto, pretendendo ser uma alternativa
aos princípios civilizados que nos orientam. O caso Marega é apenas um episódio
entre muitos outros. Devido à sua reacção teve o condão de vir separar as águas
e mostrar aquilo que há muito é visível, mas que se teima em não ver. O racismo
é um problema no futebol, mas também na sociedade. Não apenas em Portugal, mas
também em muitos países ocidentais. A crosta civilizada que nos cobria e
dourava, mal foi confrontada com algumas dificuldades, começou a estalar.
Depois, nunca faltam os miseráveis para torcer as situações, para provocar
dúvida na condenação do inaceitável e para atiçarem na turbamulta os piores
instintos. Não gostam do básico, da igualdade de todos perante a lei. Querem
uma lei que os favoreça a eles.
As questões básicas são aquelas que estruturam uma sociedade.
Supõem um amplo consenso. Só neste consenso podemos discordar nas outras
questões que são importantes, mas não básicas. Como deve evoluir a economia?
Como se devem estruturar os sistemas de saúde e de educação? Como se deve
orientar a defesa nacional? Como fazer frente à instabilidade ambiental? Como
enfrentar a crise demográfica? Todas estas questões são decisivas para o futuro
da comunidade e exigem de todos nós atenção, preocupação e empenhamento. Exigem
muita energia cívica. Ora, se temos de voltar as nossas forças para reafirmar e
defender aquilo que é básico – o direito de cada um ao reconhecimento como
igual – corremos o risco de ficar a discutir a melanina ou coisas do género em
vez de nos prepararmos para o que vem aí.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
Eutanásia, moral e política
Pablo Picasso, La muerte de Casagemas, 1901 |
Do ponto de vista moral, se defendermos uma posição que
respeite a autonomia das pessoas e a sua capacidade de escolherem aquilo que
apenas a elas diz respeito, julgo que o único caminho possível é o da
legalização da eutanásia. No entanto, a questão não é moral ou apenas moral. É
política e aqui há problemas de natureza constitucional. Os artigos 24.º e 25.º
da Constituição não me parece que dêem respaldo a que se autorize alguém a
praticar eutanásia em terceiros. Julgo haver interpretações conflituais de
especialistas constitucionais. Será no terreno da interpretação da Constituição
que tudo se irá resolver.
O ponto 1 do art.º 24 diz o seguinte: "A vida humana é
inviolável." O ponto 1 do art.º 25 diz: "A integridade moral e física
das pessoas é inviolável." Ambos os pontos surgem como incondicionais.
Vejo com dificuldade que se possa fazer uma interpretação condicional desses
pontos de modo a que se defendesse, por exemplo, "A vida humana é
inviolável, a não ser que...". Isto tem dois problemas. Não é o que está
na Constituição e, segundo, tornava a inviolabilidade da vida humana
condicional.
Uma linha de argumentação política a favor da eutanásia
seria argumentar que em certos estados degradados da existência a vida de um
ser humano deixa de ser uma vida humana. Sendo assim, aquele que aplica a
eutanásia não está a violar uma vida humana. No entanto, julgo que isso cria
muitos problemas adicionais. Por exemplo, qual o momento em que uma vida humana
deixaria de ser humana e passaria a ser apenas vida? Simpatizo moralmente com a
ideia de que as pessoas possam escolher a sua morte (tenho aqui menos dúvidas
morais do que na questão do aborto). No entanto, o problema político é muito
espinhoso e a política tem aqui preeminência sobre a moral.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Nocturnos 7
domingo, 16 de fevereiro de 2020
A Casa Esquecida 4
Meyer Schapiro, Abstract Seascape, 1960 |
Sorrias e tão a lenta era a viagem
das mãos
na esquadria do silêncio, no
cansaço da luz.
Na noite, um rombo aberto pela voz
crescia
dentro da terra e uma aurora de
dor vinha
na promessa que haveríamos de
esquecer.
A janela fechada sobre o fervor do
sangue,
a porta entreaberta no prazer da
maresia,
as horas nocturnas como ondas alterosas
no oceano salpicado de sal no sol
de Maio.
(1981)
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
Beatitudes (22) À porta do futuro
Martin Munkacsi, Reflection in a motorcycle mirror, Berlin, c. 1929 |
A mulher senta-se à porta do futuro e ignora ostensivamente o passado. A sua razão ainda não os sabe distinguir, mas o seu desejo é infalível. Está morto aquilo que o desejo esquece e no futuro está tudo o que faz estremecer de volúpia esse mesmo desejo.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Nocturnos 6
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
O tempo dos farsantes
Juan Soriano, La farsa de la casta Susana, 1956 |
Estou a ler Nas Sombras do Amanhã - um diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo, de Johan Huizinga. O texto é dos anos 30 do século passado e nele o autor antecipava a terrível tragédia que se abateria sobre a Europa e o mundo. Não são poucas as passagens que parecem referir-se aos nossos dias. É aqui que vem à memória o célebre trecho com que Marx inicia o primeiro capítulo de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: "Hegel observa numa de suas obras que todos os factos e
personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia,
a segunda como farsa."
Nos anos trinta e quarenta do século XX, vivemos uma verdadeira tragédia. Hoje, quando olhamos para a degradação da esfera pública, da vida política e para a emergência de um novo tipo de actores políticos, mais do que uma tragédia, aquilo que suspeitamos é estar perante uma farsa, cujos actores principais não passam de farsantes. Em alguns sítios chegaram ao poder, noutros exibem a sua natureza burlesca em busca do público que, enfastiado e desejoso de se divertir, os levará a ocupar o poder. Até nós portugueses já encontrámos os nossos pequenos farsantes, que não perdem oportunidade para nos brindar com as suas facécias.
Há muito - desde o tempo dos gregos - que aprendemos a ligação entre política e tragédia. Com medo dessa ligação, entregámos a política à respeitabilidade burguesa. Esta, todavia, tem-se mostrado pouco respeitável ou, outra possibilidade, o respeito deixou de ser virtude a exibir na praça pública. Se nos guiarmos pela intuição de Marx, o que nos deve preocupar não será tanto o prenúncio de uma nova tragédia, como aquela que o nazismo fez cair sobre o mundo, mas o significado da farsa em que vamos estando cada vez mais envolvidos. Tornar a política numa farsa é dissolvê-la através do riso, mostrá-la como coisa burlesca, um divertimento. Em vez de se chorarem as instituições ameaçadas, rimo-nos com a sua queda. A farsa emerge quando as instituições políticas, ao perderem a dignidade e a respeitabilidade, se preparam para se dissolverem.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Entre o redil e o prado
Num dos artigos anteriores falou-se aqui do discurso do
rancor que se desenvolve em Portugal. Esse discurso não é específico do nosso
país, atinge os países ocidentais, nos quais, por um motivo ou outro, lavra uma
cólera não disfarçada, um desejo de confronto cada vez maior, onde a normal
divergência política ameaçar radicalizar-se, dividindo os campos entre amigos e
inimigos. A desconfiança na democracia é grande, mesmo nos velhos baluartes do
regime democrático como os EUA e o Reino Unido. No entanto, o que está em jogo,
no actual ambiente, é muito mais do que um regime político.
Observe-se o movimento da Terra plana. Contra todas as
evidências científicas, cresce um pouco por todo o lado uma opinião que quer
contestar a forma esférica da Terra. Se fosse um acontecimento isolado, seria
risível. Não é. Mais antigo e movido por razões religiosas, está o criacionismo
que pretende ser uma teoria alternativa ao evolucionismo das espécies. Os
criacionistas não lutam apenas contra a evidência científica, pretendem abolir
a distinção fundamental entre ciência e religião, um dos pilares da
modernidade. Só mais um exemplo, entre outros possíveis. O movimento
antivacinas não põe em causa apenas a ciência, mas também a saúde pública, fazendo
reaparecer doenças mortais praticamente erradicadas.
O desprezo pela democracia liberal e pelos direitos dos
indivíduos não pode ser desligado destes movimentos anticientíficos. O que está
em jogo em tudo isto é um ataque cada vez mais concertado à herança do
Iluminismo. Certamente que este é criticável em alguns dos seus aspectos. No
entanto, ele moldou aquilo que era, até há pouco, o ideal que guiava as
sociedades democráticas e civilizadas: sermos pessoas livres, responsáveis pelo
seu destino, racionais, comprometidas com a verdade do conhecimento. Em todos
estes movimentos, que ocupam já o poder em grandes países, há desprezo ou mesmo
um ódio declarado aos valores das Luzes.
O vigor com que as plebes democráticas ululam pelas redes
sociais contra o mundo intelectual é o sinal do perigo em que vivemos. Talvez o
programa iluminista, ao democratizar-se, tenha cometido um erro crucial. Muitos
seres humanos não querem ser livres, não suportam o peso da responsabilidade
individual e o imperativo de pensar por si mesmo para gerir a sua vida.
Precisam de um pastor que os guarde e os dirija com mão de ferro. Parte
significativa destas revoltas contraculturais e destes movimentos inorgânicos
contra a democracia liberal poderão não ser mais do que o balir dos rebanhos chamando
o pastor que, arrimado ao cajado, os conduza entre o redil e o prado.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
A Casa Esquecida 3
Antonio Tápies, Composición, 1946 |
Uma cidade de brancura e sal espera-nos.
Que sabemos nós de outras
gerações,
traições mais antigas, a
indolência do espaço,
a leveza do centro incendiado do
teu corpo,
tão trémulo, tão aberto pela
secura das mãos.
Póstumas, presas na âncora da
morte.
Para lá desta janela não somos. A tristeza
dos cedros, dos olhos na força da
cúpula,
no cântico azul da tua alma. Olho
a água e
estremeço: que tempo nos deu este
caminho,
onde o abrigo para as noites de
inverno,
os corpos a cantar na luz do
próprio lume?
(1981)
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Ensaio sobre a luz (77)
Elliott Erwitt, Odessa. USSR (now Ukraine), 1957 |
Sentada, a criança deixa deslizar as mãos pelas teclas do piano. Ilumina-a uma janela à sua esquerda. A luz vem, entra-lhe pelo corpo e sai-lhe pelos dedos, como se a música não fosse outra coisa senão a metamorfose dos raios luminosos em ondas sonoras.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
Nocturnos 5
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Sintomas de degradação
Os portugueses decidiram brindar o parlamento com a presença
de mais três partidos políticos. Deixemos de lado a Iniciativa Liberal. Partido
de low profile dirigido a um pequeno
nicho do mercado eleitoral, tentativa morna de importar para um país católico e
do sul da Europa uma ideologia dos países protestantes e frios. Concentremo-nos
nos outros dois, o Chega e o Livre. Eles são um sintoma da degradação que
começa a corroer as instituições democráticas. Diga-se, em abono da verdade,
que a eleição de deputados populistas não é uma novidade. Logo nas primeiras
eleições democráticas, o deputado da UDP era um exemplo de populismo.
O caso da eleita pelo Livre, por seu lado, tem menos a ver
com o partido do que com a personalidade da deputada. O Livre é um partido
reformista, com preocupações ecológicas e uma visão europeísta. Daquilo que se
conhece dos seus militantes e do fundador, o historiador Rui Tavares, nada
faria supor o que está a acontecer. Ao arrepio da agenda de uma esquerda
cordata, a agenda da deputada Joacine Katar Moreira é radical, preocupada com
questões identitárias e centrada em temas restritos como o racismo e o
feminismo. Isto não dá para uma política e emparelha com perspectivas políticas
também elas identitárias e que se movem no outro lado do debate sobre o racismo
e o feminismo, isto é, o Chega.
O Chega surgiu para explorar o ressentimento social, um
mercado eleitoral que estava por ocupar. Vive do folclore tribunício de André
Ventura. Explora a má fama da classe política e o sentimento de inveja dos
portugueses. Ventura apresenta-se como salvador e justiceiro. No entanto, o
partido está desde o começo envolvido em problemas, seja o da recolha de
assinaturas, seja o do programa político ocultado, tão desagradável era, seja o
do conflito entre o chefe e o ex-porta-voz, Sousa Lara, seja agora com a irónica
notícia de que estaria infiltrado pela extrema-direita neonazi.
A chegada ao parlamento de partidos ou deputados populistas
e a possibilidade que pelo menos um desses partidos tem de crescer e de se
imiscuir no funcionamento das instituições deveriam levar os partidos
democráticos a uma profunda reflexão sobre o seu papel na emergência destes
fenómenos. Os portugueses não gostam de se comportar como os nórdicos, mas
exigem que as suas elites políticas o façam. Exigem-nas isentas, frugais e
comedidas. Enquanto as elites políticas não o forem, o populismo tem campo
significativo para crescer e para corroer o regime democrático.
[A minha crónica em A Barca]
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