quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Beatitudes (48) Luz e sombra

Josef Sudek, Promenade from Kolin island, 1923
O confuso jogo entre a luz e a sombra sempre toca o coração dos homens. Nem o excesso de luz que, ao tornar tudo manifesto, os torna cegos, nem as densas trevas que, na sua exorbitância, semeiam angústia nos corações, são o seu lugar. Na plasticidade com que se combinam, podem os homens encontrar o caminho que lhes diz respeito e entrar pelas portas da beatitude.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A Garrafa Vazia 75

Umberto Boccioni, Dynamic Decomposition, 1913
Debruço-me sobre a dança
da decomposição,
o desfazer do corpo
na poeira,
sonhos guardados
no cofre da impotência,
vida remida
no álcool do abandono.

Dezembro de 2021

domingo, 26 de dezembro de 2021

Descrições fenomenológicas 67. Rua com neve

Juan Suárez Ávila, Panorama desde el puente, 1974

No fundo da rua, as casas da perpendicular que a termina, deixam que os olhos avistem os telhados. Cobrem-nos uma neve branca, pura, cintilante ao ser batida pelos raios de sol, se a névoa os deixa escapar. Nos muretes das varandas e nos parapeitos das janelas, a mesma neve persiste em equilibrar-se, numa harmonia difícil, num jogo que o vento, por vezes agreste, insiste em desfazer, arrastando para o chão pequenas bolas misteriosas na sua brancura imaculada. A rua, de tão sombria, contrasta com essa visão dos telhados. Também a neve a cobre, mas não passa de uma mistura de gelo, lama e água suja. Não se avistam carros, embora o chão retenha ainda o sulco da sua passagem. As paredes de um dos lados têm janelas com grossas grades de ferro, no rés-do-chão, mas as dos primeiros e segundos andares – é uma rua de casas baixas, indigna, dir-se-á, de fazer parte de uma grande metrópole – não têm defesas contra assaltantes. Os vidros parecem sujos, embora por eles perpasse a existência de vidas no interior dos apartamentos. Uma ou outra janela está aberta e, por vezes, alguém assoma por uma delas, deixa correr os olhos pela rua, abana a cabeça ou encolhe os ombros, enquanto flocos de neve descem para poisar nos candeeiros de iluminação pública, nos passeios, na estrada. Do outro lado, as janelas estão cobertas por tapumes, algumas fechadas com tijolos, outras apresentam vidros partidos, por onde sai, sem pressa, a escuridão que delas se apossou. Ao fundo da rua, um homem aproxima-se da perpendicular e corta à esquerda. Segue-o, a curta distância, outro que pára, hesita, olha para trás, por fim, opta por voltar à direita, com o passo indeciso de quem não sabe onde está nem para onde deve ir. A meio da rua, um casal, já não são novos, caminha indiferente à queda da neve. Vão vestidos com grossos casacos compridos de Inverno. Ele leva um guarda-chuva na mão esquerda, usa-o como se fosse uma bengala, enquanto ela lhe dá o braço, carregando na mão direita uma mala de senhora, talvez de dimensões excessivas para quem anda a pé. Fico a vê-los afastarem-se, em passo comedido para não escorregarem, percebo que trocam palavras. Passam indiferentes à vida de um dos lados da rua e à ruína que vai carcomendo o outro. Tudo neles tem a marca de um longo hábito e nada do que ali possa acontecer os surpreenderá. Depois, esqueço-me deles, da rua sombria, do destino das casas. Os olhos prendem-se, então, à brancura imaculada dos telhados, ao reverberar da neve, à luz cintilante que a ilumina.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A persistência da memória (6)

Elliott Erwitt, Confessional, Poland, 1964

Só a persistência da memória pode explicar que, mesmo durante um regime político adverso à religião, se instale um confessionário na rua e as pessoas façam filas para serem escutadas e absolvidas pelo sacerdote. A memória que persiste, porém, é dupla. Uma colectiva, a força de uma tradição ancorada nas práticas de um nós, a memória geral de uma cultura. Outra, subjectiva. Não apenas a memória de uma pertença, mas também a do mal cometido, aquilo que é assunto de confissão. Sem memória, a consciência não encontra o que confessar. Aquilo que se confessa nunca é o mal praticado, mas a memória que dele se tem, mas nada assegura que um e outra coincidam.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Natal em pandemia

Talvez toda a realidade se tenha tornado ainda mais incerta e o Natal tenha sido apanhado nessa onda. A realidade, aquela onde as comunidades humanas levam a sua existência, nunca foi coisa despida de incerteza. A novidade, se é que existe alguma, residirá no crescimento exponencial dos mecanismos de segurança e de prevenção de riscos ter sido acompanhado pelo crescimento da sensação de insegurança e de exposição indefesa perante as mais diversas ameaças. A pandemia trouxe uma objectivação global a essa sensação de incerteza. Um tornado, uma catástrofe, mesmo um conflito armado, todas essas situações de grande risco são localizadas, parecem, se vistas de fora, excepcionais. A pandemia tornou manifesto, a toda a gente, que os riscos e a incerteza são presenças diárias e que não há lugares onde se esteja completamente protegido.

A experiência do Natal do ano passado, acabadas as festividades, não deixou boas recordações, como se pode ver pelo que aconteceu nos primeiros meses deste ano. Todas as sociedades, mesmo aquelas em que a indiferença religiosa é acentuada, se estruturam em torno de tradições provenientes do seu fundo religioso. No mundo onde o cristianismo é ou foi um elemento base da cultura, o Natal é um desses momentos em que a quotidianidade profana se suspende para que a vida encontre um marco referencial e possa prosseguir. Perante a incerteza em que se vive, agora acentuada pela entrada em cena de nova variante do vírus, há duas atitudes perante o Natal que não seriam sensatas. Uma seria fingir que nada se passa e encarar o Natal como se não houvesse pandemia. Outra seria ceder por completo ao medo e fazer do Natal tábua rasa, passar por ele como se não existisse. 

Haverá, pelo menos, uma terceira possibilidade. Perceber o Natal como um momento de diálogo com a incerteza que se apoderou da vida dos homens. O Natal é o lugar por excelência da incerteza, da precariedade, da pobreza constitutiva de toda a vida. A incerteza onde o Menino poderia nascer, a precariedade dos meios à disposição da família, a pobreza do presépio como lugar de acolhimento. Na tradição do cristianismo, é nesta simbólica da finitude humana que se manifesta o infinito da divindade, é ali mesmo que a vida triunfa sobre a morte. É neste núcleo simbólico do cristianismo que as sociedades cristãs e, ainda mais, as que se dizem pós-cristãs precisam de encontrar a chave para lidar com o que está a acontecer. O Natal nada nos diz sobre pandemias, mas diz muito sobre como devemos enfrentar a vida, da qual faz parte tudo aquilo que, por incerto, nos perturba.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Nocturnos 70

Francesc Català-Roca, Esperando la salida de la ópera, 1950
Apesar de parecer indissolúvel, nunca se sabe bem que laço liga a noite e a ópera, qual é a causa e qual é o efeito. Pensa-se, demasiado depressa, que a noite cria a condição para que exista ópera, mas talvez a verdade seja outra, e a noite não passe de um acto de um drama operático.

sábado, 18 de dezembro de 2021

A Garrafa Vazia 74

Jacint Salvadó, Arlequin, 1942
Os dedos pela goela,
o vómito,
a noite embalada
pela férula
faiança do desvario.

Depois, o grito agudo,
imprecações,
o corpo a rastejar
diante da dor
de ser quem sou. 

Dezembro de 2021

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Regionalização, Espírito do Tempo e a bílis de Rui Rio


Regionalização. A regionalização é uma excelente ideia. O problema, porém, é que estamos em Portugal – e no sul da Europa – o que pode transformar uma coisa boa, num grande problema. Regionalizar o país significaria criar cinco feudos onde se instalaria um pessoal político pouco dado à frugalidade. Poderia mesmo acontecer que obscuras ilusões autonómicas se desenhassem na cabeça de alguns. A centralização em Portugal não nasceu do nada, mas da necessidade de manter a coesão do Reino. Por outro lado, se, por um milagre, um referendo ditasse a vitória da regionalização, em pouco tempo o crescimento do pessoal político acabaria por intensificar o mal-estar dentro do regime democrático. O Presidente da República afirma que dará luz verde ao referendo. Esperemos que os portugueses, por seu lado, dêem luz vermelha à ideia de regionalizar.

Espírito do tempo. Quem lidou com a filosofia do idealismo alemão conhece bem o conceito de Zeitgeist, o espírito do tempo. O palavrão germânico significa, em linhas gerais, um certo clima intelectual, cultural e social, uma maneira de interpretar o que acontece. Isto vem a propósito de terem ocorrido em 11 e 12 de Dezembro os congressos da Iniciativa Liberal e do Livre. Ambos os partidos elegeram um deputado nas últimas eleições. Quem consultar os jornais e os sites noticiosos descobrirá referência séria apenas à Iniciativa Liberal. Isso deve-se ao tal Zeitgeist. O espírito do tempo gosta daquele punhado de rapazes e – presumo – de raparigas que se dizem liberais e está a fazer com eles o que fez com o Bloco de Esquerda, dar-lhes tempo de antena. O Cotrim Figueiredo veste bem, já o Rui Tavares parece vestir-se de forma inadequada. O Zeitgeist é impiedoso com a forma como as pessoas se vestem.

O azar de Rendeiro e o de Rio. Rui Rio acha que a Polícia Judiciária se move pelo calendário eleitoral. Não houvesse eleições, e Rendeiro poderia estar descansado. Mesmo que Rio pensasse isto, não o deveria dizer. Em primeiro lugar, porque a acção da Polícia Judiciária é das poucas coisas que correram bem em todo este processo. Em segundo lugar, porque todo o aparelho de segurança – forças armadas e polícias – e toda a estrutura judicial são sectores muito sensíveis do funcionamento de uma comunidade. O interesse do país manda que aqueles que o querem governar evitem este tipo de comentários. Rui Rio despiu a pele de candidato a primeiro-ministro e vestiu a de cidadão que descarrega a bílis enquanto bebe uma cerveja. Um azar para Rui Rio ter a bílis perto da boca.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Sonhos numa noite de Verão 31

André Kertész, Place Gambetta, Paris, 1929
Ouvia a música ritmada da água a cair na rua. Havia tempestade. Pelo menos, parecia trovejar ao longe. Senti-me febril. Uma inquietação estranha apoderara-se de mim e o coração descompassava-se a cada instante. Senti-me sufocar. Corri para a janela e abri-a. Ainda era de dia, mas a chuva rompera os muros que o Verão, contra ela, nunca esquece de erguer. Respirei fundo, a inquietação não abrandou. Num passeio, um homem, sob um guarda-chuva caminhava como se tivesse um destino. Tremi ao vê-lo. Tinha a certeza da sua identidade. Quando passou, olhou-me. Não sem terror confirmei que era eu que, sob o aguaceiro, ali ia. Ao passar pela minha janela, não consegui evitar olhar-me nos meus próprios olhos. A noite caiu dentro de mim. 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O golpe de misericórdia

Rui Rio e o PSD decidiram dar o golpe de misericórdia nos seus antigos parceiros de coligação. Depois de o CDS-PP ter escolhido o actual líder, o partido entrou em estado de coma. A esperança de sobrevivência residia numa eventual coligação com o PSD. Este cederia meia dúzia, ou talvez nem isso, de lugares de deputado aos centristas, estes adiariam a morte por mais uns tempos. O partido de Rio achou que seria mau negócio e que o CDS-PP, na verdade, já não existia. Não se terá enganado. A parte ultramontana dos eleitores do CDS deslocou-se para o Chega. A parte civilizada e liberal encontra na Iniciativa Liberal um novo representante. Talvez o problema nem esteja em Francisco Rodrigues dos Santos, apesar de a sua escolha ter sido um notório o erro de casting, mas no facto de o CDS-PP ter deixado de fazer sentido, na reconfiguração que se assiste na direita, e não encontrar a quem possa representar. É plausível que mesmo nomes mais importantes do partido fossem impotentes para o salvar.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

A Garrafa Vazia 73

Amadeo de Souza Cardoso, Cabeça, 1914-15
Pobre tecelão teces
pelas ruas
os trapos encardidos
a que chamas
a tua precária vida.

Dessas mãos solta-se
o inútil.
Arremessas pedras
contra o fogo
a arder no restolho do dia.

Dezembro de 2021
 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Resiliências, Rui Rio/PSD, BE e Futebol


Resiliências. Ser ministra da Saúde em Portugal não é tarefa fácil. Ser ministra da Saúde em Portugal e em tempos de pandemia é tarefa hercúlea. O sector é atravessado por múltiplos, poderosos e discordantes interesses, que têm tanto ou mais poder que qualquer ministro. Isso exige que quem tutela o sector seja parco nas palavras e aquelas que disser sejam ditas depois de muito meditadas. A ministra cometeu uma injustiça ao sublinhar a necessidade da resiliência como característica para estar no Serviço Nacional de Saúde. Quer prova maior de resiliência do que estes últimos dois anos? Pior, porém, ela confundiu o seu discurso de cidadã privada, que pode dizer o que entender, com o discurso de um ministro, que apenas deve dizer o que for politicamente adequado. Confusões destas são sintoma de pouca resiliência política.

Rui Rio e PSD. A vitória de Rui Rio nas eleições internas do PSD é o triunfo de uma visão moderada da política e da necessidade de estabelecer pontes com o outro lado. Uma parte da direita portuguesa, a exemplo do que acontece lá fora, está ansiosa por criar situações de grande polarização, em apostar numa lógica de amigos/inimigos, de nós ou eles. Nestas eleições, essa lógica saiu derrotada. É verdade que Paulo Rangel não é, nem de perto nem de longe, um político carismático. Se o fosse, talvez o resultado fosse outro. Pior para o país. A questão que fica é a de saber por quanto tempo o PSD resistirá à logica de polarização e ao lançamento do país numa onda de divisão e incomunicabilidade entre os actores políticos.

O BE e o Bloco Central. Catarina Martins anda preocupada com a possibilidade de António Costa, caso não consiga uma maioria absoluta, se entenda com o PSD de Rui Rio. Uma preocupação absurda porque tem todo o ar de ser uma falsa preocupação. Catarina Martins e o BE, assim como o PCP, tiveram na mão evitar essa aproximação. Ao chumbar o orçamento e dar oportunidade ao Presidente para dissolver a Assembleia, quebraram as pontes que existia entre o PS e os partidos à sua esquerda, colocaram-se fora das soluções possíveis. Tirando os militantes do BE, pouca gente haverá que leve a sério as preocupações da líder do BE.

Futebol. As acções das polícias e dos órgãos judiciais junto de uma série de clubes de futebol de primeira importância no país mostram aquilo que se sentia há muito. O mundo de futebol teria regras próprias e diferentes das regras que comandam o conjunto da sociedade. Parece que a Justiça acordou para esse problema. Veremos, porém, quem será mais forte. A ordem jurídica ou a irmandade do futebol?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ministério do vício e da virtude

 

Quando são noticiados homicídios de mulheres ou outras situações de violência doméstica, nunca pensamos que a esses casos corresponde uma linha política e há neles um forte teor político. Esta ocultação, no Ocidente, deve-se à disseminação das ideias do Iluminismo e ao peso que esse tipo de ideias ainda possui nas nossas sociedades. Essa linha política oculta assenta na clara dominação das mulheres pelos homens, na sua subjugação e redução a um animal doméstico, no duplo sentido de o seu lugar ser a domus, a casa, e de estar domesticada, amputada da sua liberdade, a qual surge para os homens como manifestação do selvagem e do ameaçador. Para perceber que esta dimensão política da violência sobre as mulheres é real, o melhor é observar um caso extremado, pois os casos extremados manifestam aquilo que as situações moderadas ocultam.

No Afeganistão, as televisões foram proibidas de exibir dramas ou programas que tenham papéis desempenhados por mulheres. Esta é uma das medidas com que as mulheres afegãs foram agraciadas pelos talibans. Não é desprezível o facto de a proibição ter sido decretada pelo ministério do vício e da virtude. Para nós, vício e virtude, desde que não ponham em causa direitos de terceiros, são questões do foro íntimo. Queira eu ter uma conduta moralmente virtuosa ou viciosa, desde que não cometa crimes, o problema será meu. Contudo, a existência de um ministério do vício e virtude é um sinal poderoso de como a política se intromete duramente não apenas nas questões de igualdade de género, mas também nas questões de cama. O que atormenta os vigilantes da moral dos outros é, em última análise, o sexo. A homossexualidade, claro, mas, fundamentalmente, a sexualidade das mulheres, a sua liberdade.

Os casos de violência doméstica em Portugal, e no mundo Ocidental, são manifestações de nostalgia por um mundo político e social completamente dominado pelos homens, onde as leis eram feitas na pressuposição de que cabe ao homem dominar a mulher e a esta submeter-se, abandonar a sua liberdade e a sua personalidade. Pensarmos que os países ocidentais estão vacinados contra os ministérios do vício e da virtude é enganarmo-nos a nós próprios. O crescimento do radicalismo de direita não está ligado apenas a situações de xenofobia. No seu cerne há um problema com a igualdade e a liberdade das mulheres. Muita gente que se sente atraída por esses quadrantes políticos não se importaria nada que houvesse um ministério do vício e da virtude, um regime político que pusesse as mulheres no seu lugar, isto é, em casa. Um governo que produzisse leis que aceitassem os crimes de honra.