quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ministério do vício e da virtude

 

Quando são noticiados homicídios de mulheres ou outras situações de violência doméstica, nunca pensamos que a esses casos corresponde uma linha política e há neles um forte teor político. Esta ocultação, no Ocidente, deve-se à disseminação das ideias do Iluminismo e ao peso que esse tipo de ideias ainda possui nas nossas sociedades. Essa linha política oculta assenta na clara dominação das mulheres pelos homens, na sua subjugação e redução a um animal doméstico, no duplo sentido de o seu lugar ser a domus, a casa, e de estar domesticada, amputada da sua liberdade, a qual surge para os homens como manifestação do selvagem e do ameaçador. Para perceber que esta dimensão política da violência sobre as mulheres é real, o melhor é observar um caso extremado, pois os casos extremados manifestam aquilo que as situações moderadas ocultam.

No Afeganistão, as televisões foram proibidas de exibir dramas ou programas que tenham papéis desempenhados por mulheres. Esta é uma das medidas com que as mulheres afegãs foram agraciadas pelos talibans. Não é desprezível o facto de a proibição ter sido decretada pelo ministério do vício e da virtude. Para nós, vício e virtude, desde que não ponham em causa direitos de terceiros, são questões do foro íntimo. Queira eu ter uma conduta moralmente virtuosa ou viciosa, desde que não cometa crimes, o problema será meu. Contudo, a existência de um ministério do vício e virtude é um sinal poderoso de como a política se intromete duramente não apenas nas questões de igualdade de género, mas também nas questões de cama. O que atormenta os vigilantes da moral dos outros é, em última análise, o sexo. A homossexualidade, claro, mas, fundamentalmente, a sexualidade das mulheres, a sua liberdade.

Os casos de violência doméstica em Portugal, e no mundo Ocidental, são manifestações de nostalgia por um mundo político e social completamente dominado pelos homens, onde as leis eram feitas na pressuposição de que cabe ao homem dominar a mulher e a esta submeter-se, abandonar a sua liberdade e a sua personalidade. Pensarmos que os países ocidentais estão vacinados contra os ministérios do vício e da virtude é enganarmo-nos a nós próprios. O crescimento do radicalismo de direita não está ligado apenas a situações de xenofobia. No seu cerne há um problema com a igualdade e a liberdade das mulheres. Muita gente que se sente atraída por esses quadrantes políticos não se importaria nada que houvesse um ministério do vício e da virtude, um regime político que pusesse as mulheres no seu lugar, isto é, em casa. Um governo que produzisse leis que aceitassem os crimes de honra.

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