domingo, 12 de março de 2023

Descrições fenomenológicas 70. A praça

Willem De Kooning, Cuadro, 1948

Não se sabe ao certo quando aquele espaço foi transformado numa praça, roubado às tarefas agrícolas que, noutros tempos, ocupavam as terras que cidades belicosas invadiram, desterrando os camponeses cada vez para mais longe. Sabe-se apenas que ali se reuniam há séculos pessoas para se entregarem ao comércio, às paixões do mundo, ao hábito da conversa. É essa praça antiga que ainda se suspeita sob a actual, com um enorme tabuleiro empedrado, ladeado por duas filas de velhos plátanos, agora despidos pelas agruras das estações. De um lado e de outro, existem cafés e bares, com as suas esplanadas cobertas e gente, muita gente, sentada nas mesas, uns lendo os jornais, outros a conversar, outros silenciosos olhando em frente, sem que se consiga saber qual o destino desses olhares desavisados. A noite cai, a iluminação eléctrica cria nuvens de luz ao misturar-se com uma chuva fina e melancólica. Entre os renques de árvores, no empedrado do tabuleiro central, não falta gente. Casais passeiam devagar, chapéus de chuva abertos, homens e mulheres solitários levam à trela cães de diverso porte, que vão sacudindo a água fina que se deposita no pêlo. Um jovem casal dá as mãos, enquanto a luz incide sobre eles, tornando-os o foco de quem, desocupado, olha por curiosidade, por não ter mais nada para fazer, por não saber como ocupar o tempo que antecede a hora de jantar. Depois, o casal perde-se entre os transeuntes, enquanto a chuva fina e rala forma aglomerados de gotas suspensas no ar, vibrando sob a luz, para cair no empedrado, nos chapéus de chuva, nos ramos despidos dos plátanos, uma água embalada pela hora do crepúsculo e pela vida que ainda ali freme, passados tantos séculos, mas que mais um pouco desaparecerá, por algumas horas, quando aquela gente recolher a casa para jantar e proteger-se das trevas da noite.

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