domingo, 17 de setembro de 2023

Leggio I

Carlos Botelho, Lisboa, 1946 (aqui)

O fragor da madeira fresca para a cidade

os homens traziam e em apertadas ruas abriam

com langor avaras passagens.

A estreita senda, onde na manhã de ontem,

os eléctricos esculpiam, no frio da estrada,

imensas, pois amarelas e vivas, as paisagens.

 

Os pregões, tal ainda dado ouvir me foi, ali

a voz calaram e as ruas, ora desertas,

habita-as gente, fantasmas ondulantes,

pássaros suados, a bramar por nós, chamam.

Quando gaivotas, poisam de asas abertas

ou, se rouxinóis, cantam, a voz incerta.

 

Nas sombras da tarde não há mistério

e pelos cafés bóiam turistas, gente obscura,

despojos vindos das terras perdidas do império.

Quando as águas correm, a cidade grita,

e no céu, como raparigas suspensas,

transbordam de cinza nuvens varadas de mágoa.

 

O Sol, em leve inclinação, ao meio-dia deixa,

entre casas, um risco de cal e calor.

As árvores agachadas, pois árvores são,

fazem lembrar, em funesta analogia,

o cantar sobressaltado de uma cotovia

presa no silêncio de um homem pelo chão.

(2006)

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