quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Leggio II

Carlos Botelho, Entrada da Barra, 1964 (aqui)

Em travessas sujas de solidão

flutuam na ardência do ar

casais de namorados tão enamorados,

tão presos na urdidura de cal,

as mãos nas mãos a tecem.

Nem a luz do amor os ilumina,

nem o fogo do desejo os aquece.

Vivem do Inverno preso no olhar,

caminham entre nuvens

sem o dolo, sem a dádiva de um destino.

 

Às vezes, fogem para o Castelo

e choram o tumulto da dor,

tão aguda lhes dói.

A luz ilumina a poeira das ruas,

e ouve-se a mágoa dos corações

no bater dos sinos ao meio-dia.

Barcos encalhados na areia,

os jacarandás pelas avenidas

espalham sombras e saudades.

 

S. Jorge espera o fogo do dragão,

a morte que lhe deu vida.

Quantos anos tens?

E ela mostra-lhe os dedos e

ele conta-os, conta-os,

pela tarde recoberta de luz,

o Tejo a marulhar ao longe,

as águas espessas,

o coração ainda aberto,

praça desvalida,

sem armas e sem tréguas,

ao repouso da morte entregue.

 

(2006)

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