quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Mitt Romney e o autogoverno em perigo

Francis Bacon, Man Turning on the Light, 1973-74

O senador republicano Mitt Romney coloca, na biografia que irá lançar em Outubro (aqui), o problema Donald Trump de um modo interessante: A experiência da América com a autogovernação está em luta com a natureza humana. O autoritarismo é como a gárgula que está de vigia na catedral, pronta para atacar. A referência à natureza humana é central. Uma das críticas que desde sempre se fez ao comunismo foi a sua perspectiva ideológica estar em conflito com a natureza humana. Haverá na natureza da humanidade uma inclinação egoísta, ao contrário do que pensam os comunistas, que vêem essa característica como fruto da sociedade e da educação. Essa natureza centrada em si tornaria o comunismo uma utopia, cuja realização implicaria uma violência desmedida sobre a natureza humana. 

O que Mitt Romney diz vai mais longe. Não apenas uma visão social igualitarista do homem está em contradição com a sua natureza, como a visão liberal, a do autogoverno, choca com essa mesma natureza. Parte do eleitorado americano - e dos políticos republicanos - não suporta uma sociedade onde cada um tem a responsabilidade por si mesmo e age de acordo consigo. O eleitorado republicano nos EUA, mas também parte significativa do eleitorado europeu, incluindo o português, anseia por um homem forte, que o liberte da carga da responsabilidade. O que pretende, para usar a terminologia de Michel Foucault, é o regresso de um poder pastoral. Anseia por alguém que pastoreie o rebanho, cuide de cada ovelha e governe a sua vida, dispensando-o dessa tarefa terrível de pensar por si mesmo. Estamos num tempo em que a menoridade culpada, nas palavras de Kant, se traduz em votos e em projectos de regimes políticos. Contudo, e talvez isso seja o mais surpreendente, o que esses eleitorados desejam é uma espécie de comunismo. Não de natureza social, mas um comunismo existencial que se exprime na ideia de rebanho. Isto ajuda a explicar a razão por que, na Europa do Sul, se tem assistido à transferência dos eleitorados comunistas para a esfera da extrema-direita.

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