Leopoldo Novoa - Brun a deux reliefs (1970)
Uma sombra projecta-se na casa, talvez uma velha cabana de floresta, numa
parede de madeira castanha, onde desponta uma janela de caixilhos brancos, de
duas folhas, compostas por três rectângulos de vidro, que permitem, devido à ausência
de cortinas ou de portadas, se alguém tiver curiosidade para tal, ver o
interior. Presa ao tecto por um fio esbranquiçado e sujo, uma lâmpada,
recoberta com um globo, solta uma luminosidade amarelada e triste, tingida de pétalas
secas e saudades apaziguadas. Ilumina os vultos que, por vezes, se cruzam com ostensiva
lentidão, sem se olharem ou trocarem palavra, para desaparecerem e deixarem ver
a parede da casa. Na rua, o vento recrudesce instante a instante, dobra as
flores escassas do jardim, e parece querer empurrar a casa para longe, como se,
exaltado e impaciente, a não pudesse suportar, obstáculo à sua fúria de pássaro
nocturno, à grande cavalgada a que se entrega, sob o império enluarado da noite,
desde as grandes montanhas do norte até às águas frias do oceano. Vestida de
preto, da cabeça aos pés, uma mulher está perfilada mesmo em frente ao portão
de madeira, que dá acesso ao jardim. O luar oferece ao espectador acidental o
rosto da mulher, um rosto branco, de lábios rosados, enrugados pelo frio. Nele
não há medo nem expectativa. Pressente-se, pelo piscar de olhos, o incómodo
trazido pelo vento, mas apenas isso. Inexpressivo, parece desafiar a lua, para
se deixar envolver na sua luz, enquanto o corpo, protegido pela roupa, se
mantém hirto, instigando, com ousadia, o vendaval. Uma madeixa de cabelos
desprende-se do lenço e esvoaça caprichosa. A mulher, de mãos nos bolsos do
grande casaco, olha o astro iluminado e, para além dele, o vento e a noite de
onde este se desprende e lhe rouba a sombra para a projectar, não sem violência
e mistério, na parede da casa que ela recusa olhar. Uma nuvem esconde agora a
luz e a noite cresce em negrume, enquanto a sombra na parede empalidece e se
esvai. Por instantes. A lua logo volta exuberante, ajudada pelo cântico do
vento, iluminando aquele rosto branco e hirto, para devolver à parede a sombra
negra que se projecta daquela mulher petrificada neste lugar cujo nome já ninguém
recorda.
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