sábado, 11 de fevereiro de 2017

Descrições fenomenológicas 20. Noite de luar

Leopoldo Novoa - Brun a deux reliefs (1970)

Uma sombra projecta-se na casa, talvez uma velha cabana de floresta, numa parede de madeira castanha, onde desponta uma janela de caixilhos brancos, de duas folhas, compostas por três rectângulos de vidro, que permitem, devido à ausência de cortinas ou de portadas, se alguém tiver curiosidade para tal, ver o interior. Presa ao tecto por um fio esbranquiçado e sujo, uma lâmpada, recoberta com um globo, solta uma luminosidade amarelada e triste, tingida de pétalas secas e saudades apaziguadas. Ilumina os vultos que, por vezes, se cruzam com ostensiva lentidão, sem se olharem ou trocarem palavra, para desaparecerem e deixarem ver a parede da casa. Na rua, o vento recrudesce instante a instante, dobra as flores escassas do jardim, e parece querer empurrar a casa para longe, como se, exaltado e impaciente, a não pudesse suportar, obstáculo à sua fúria de pássaro nocturno, à grande cavalgada a que se entrega, sob o império enluarado da noite, desde as grandes montanhas do norte até às águas frias do oceano. Vestida de preto, da cabeça aos pés, uma mulher está perfilada mesmo em frente ao portão de madeira, que dá acesso ao jardim. O luar oferece ao espectador acidental o rosto da mulher, um rosto branco, de lábios rosados, enrugados pelo frio. Nele não há medo nem expectativa. Pressente-se, pelo piscar de olhos, o incómodo trazido pelo vento, mas apenas isso. Inexpressivo, parece desafiar a lua, para se deixar envolver na sua luz, enquanto o corpo, protegido pela roupa, se mantém hirto, instigando, com ousadia, o vendaval. Uma madeixa de cabelos desprende-se do lenço e esvoaça caprichosa. A mulher, de mãos nos bolsos do grande casaco, olha o astro iluminado e, para além dele, o vento e a noite de onde este se desprende e lhe rouba a sombra para a projectar, não sem violência e mistério, na parede da casa que ela recusa olhar. Uma nuvem esconde agora a luz e a noite cresce em negrume, enquanto a sombra na parede empalidece e se esvai. Por instantes. A lua logo volta exuberante, ajudada pelo cântico do vento, iluminando aquele rosto branco e hirto, para devolver à parede a sombra negra que se projecta daquela mulher petrificada neste lugar cujo nome já ninguém recorda.

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