Antonio Tápies - Superposición de materia gris (1961)
Ao longe vêem-se as chaminés das fábricas. Deixam sair um fumo denso e
escuro que se mistura com a humidade do dia. A amálgama cai sobre a pequena
cidade como escamas que crescem nos olhos para os proteger do excesso de luz.
Parou de chover, mas a rua ainda está molhada, deixando reverberar a pouca claridade
que toca os paralelepípedos com que a estrada e os passeios são calcetados. Nem
um carro se avista. Os prédios são cinzentos e pobres e lembram, no seu
desconcerto, pessoas a quem o passar dos anos roubou, na pobreza que é a sua,
os dentes. A maioria das casas tem apenas um piso térreo. Aqui e ali, porém,
dois andares erguem-se sobre rés-do-chão raquíticos, macerados pela humidade,
pela incúria que os tempos difíceis nunca deixam de trazer na sacola com que
percorrem a vida dos homens. Na verdade, algumas das casas estão apenas
rebocadas a cimento. Outras, nem isso. Mostram, num misto de vergonho e
despudor, os tijolos. Em algumas janelas os vidros desapareceram e, no seu
lugar, há tábuas já marcadas pela humidade. Vindas do lado norte, uma mãe e a
sua filha, de mãos dadas, caminham flectidas, como se necessitassem de um
esforço suplementar para vencerem um obstáculo invisível. Aproximam-se sem
dizerem palavra, concentradas na luta contra o caminho. Vinda do lado
contrário, uma mulher jovem, vestida com uma gabardina verde seco, transporta
uma pasta de cabedal. Volta-se para trás e o rosto abre-se num grande sorriso.
Não se avista destinatário para o sorriso. Vai no meio da estrada, aproximando-se
de um dos prédios mais altos, de portadas de madeira abertas, deixando ver os
vidros das janelas, ainda inteiros, e um vulto silencioso e sombrio. Ela não
deixa de sorrir e de olhar para trás e quase tropeça no rebordo do passeio. Dá
uma gargalhada, compõe a gabardina e entra por uma das portas que,
misteriosamente, se abriu. No passeio do outro lado da rua, dois rapazes,
talvez com cinco ou seis anos, estão especados a olhar. Singulares rapazes
presos às suas boinas negras. Têm os olhos grandes e abertos, tão abertos que
parecem querer absorver toda a luz que existe. No da esquerda, a boina descai e
tapa a orelha direita, o que realça o rosto, onde a boca semiaberta não esconde
a estupefacção. Tem um casaco grosso cinzento com quadrados cor de vinho
abotoado até ao pescoço. O outro usa a boina para tapar o cimo da cabeça.
Parece mais taciturno e menos dado ao devaneio do que o seu colega. De dentro
do casaco nasce um longo cachecol. Está frio e ambos esperam de olhos abertos
que alguma coisa chegue ali e os leve daquele mundo cinzento para um outro mais
brilhante e luminoso. Por vezes, esboçam um sorriso. Depois, desistem e enfiam
as mãos nos bolsos das calças. Por fim, sem dizerem palavra, sem se olhar
sequer, desatam a correr rua fora. Desaparecem na esquina tragados pela
humidade e pelo fumo que, impenitente e irascível, se solta das chaminés das
fábricas hirtas e melancólicas como falos abandonados no desalento da solidão.
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