quinta-feira, 1 de abril de 2021

Perfis 16. O compositor

Yousuf Karsh, Igor Stravinsky, 1952
Quando pensa, o compositor não pensa através da abstracção dos conceitos, mas todo o seu pensamento são notas entrelaçadas, formando um cordão de sons. Há dias em que o rio impetuoso se transforma num lago ameno, e toda a música se entrega à lentidão, numa gravidade imperial, uma quase suspensão do tempo, uma chamada ao mundo de tudo o que é solene e deve permanecer na memória dos homens. Noutros dias, a vida é tomada pelo turbilhão do oceano ou pela girândola terrível de um incêndio. Escuta-se o bramir das ondas ou o estrondear violento das árvores arrastadas pelo vento e as chamas de um fogo imemorial. O compositor, porém, permanece opaco e meditativo, encosta-se ao piano e, quase sonâmbulo, deixa que tudo se passe no lugar mais inacessível aos olhares humanos. Talvez Deus espreite para dentro do seu ser e siga sobressaltado os sons que ali nascem, a música que nele se arquitecta. Depois, deixa-o entregue às ondas sonoras e suspende a sua omnisciência para que, também Ele, possa ser surpreendido pelo pensamento musical que naquele corpo se pensa. O compositor, diz, não pensa com a mente, mas com todo o corpo, pois o seu pensar é ritmo e ondulação, o bater do coração, o ir e vir do ar nos pulmões, o revolver das entranhas, o silêncio das vísceras. Fecha os olhos para ver. Ensurdece para escutar. Cala-se para dizer. Compor é saber que em todo o sim existe um não, que em todo o silêncio ruge o mais rugoso ruído. Como um arqueólogo de si mesmo, conduz a memória ao tempo em que, no ventre da mãe, escutava os sons do mundo nos sons maternais e sabia já, naquele encadeamento de largos e adágios, de andantes e moderatos, de allegros e vivaces, que era musical todos o seu pensamento, todo o seu coração, todo o seu ser.
 

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