terça-feira, 18 de outubro de 2022

Dinis Machado, O que diz Molero

Publicado em 1977, O que diz Molero, romance de Dinis Machado, foi quase imediatamente, apetece dizer, um grande sucesso de bilheteira. Não apenas porque há na sua construção qualquer coisa de teatral, o que permitiu uma posterior adaptação à representação no palco, mas também porque há um ritmo cinematográfico exuberante, por vezes sufocante, uma sucessão de imagens vertiginosa, transformadas em texto, de onde os pontos finais estão ausentes durante largos excertos textuais, uma técnica que precipita o leitor a acompanhar a velocidade da produção imagística. Luís Pacheco refere “uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos, mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.” Por outro lado, Eduardo Lourenço sublinha estar-se perante o indício de novas relações entre a literatura contemporânea e uma nova cultura que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos decisivos. Tese, na verdade, bastante discutível, pois não são poucas as passagens textuais que ecoam temáticas que naqueles dias obsidiavam o mundo literário académico em Portugal.

O romance, como uma das suas marcas de modernidade, não apresenta um plot, mas não deixa de ser todo ele movido por uma intriga. Existem nele várias camadas diegéticas. Uma primeira camada é a conversa entre Austin e Mister Deluxe, e que o primeiro vai contando ao segundo, entrecortado por comentários de ambos, sobre o relatório de Molero, a segunda camada narrativa, referente a um rapaz nunca identificado pelo nome, sobre a vida deste, o que terá feito, dito, ouvido, as pessoas com que se terá relacionado, etc., uma terceira camada narrativa, na qual não apenas as palavras como as acções são textualidade. Apesar de não haver plot, o rapaz não deixa de ser um herói – ou, se se preferir, um anti-herói – de uma intriga em que a vida é tomada como um processo de descoberta existencial, uma procura sobre quem é, uma espécie de questionamento metafísico, que em momento algum encontra resposta, pois de princípio ao fim não lhe é dado um nome, nunca deixando de ser o rapaz. Há, contudo, nesta caracterização um excesso de informação sobre essa identidade, pois alia a pertença ao género masculino a uma adolescência – consignada, precisamente, na denominação o rapaz – nunca ultrapassada, já que é sempre desse modo que Molero o refere no relatório. Apesar das peripécias, das viagens e dos amores, ele nunca é o homem.

Alguma crítica refere estar-se perante a fragmentação da subjectividade, que o próprio texto, com a sua natureza fragmentária acentua, apesar de ter, no nível intermédio, um relatório, o que suporia uma coerência, seja jornalística ou detectivesca. O facto de nunca se perceber quem são, na verdade, Austin, Mister Deluxe e Molero, e o modo como é referido, nos diversos níveis narrativos, o rapaz acentuariam essa natureza fragmentária das identidades, que eventualmente se poderiam sobrepor. A questão, porém, é que mais que uma subjectividade fragmentária, se está perante uma subjectividade que, na verdade, nunca amadureceu, nunca entrou na idade adulta, nunca saiu da menoridade culpada. E isto será o mais notável, no aspecto da crítica cultural, que o romance de Dinis Machado torna manifesto. Apesar de uma hiperinflação cultural presente no texto. Serão poucos os lugares comuns do mundo cultural português dos anos setenta do século passado que não estejam referidos no romance e referenciados em o rapaz. Apesar disso, ele não deixa de ser o rapaz. Não se está perante a fragmentação pessoana do sujeito, tão pouco perante uma visão freudiana de um ego em negociação constante com um id ameaçador e um superego veiculador da ordem, mas de um eu eternamente adolescente.

A obra é uma máquina de produção mitológica e são esses mitos que impedem a transição de o rapaz para o homem. Está-se perante duas fontes mitológicas essenciais, as da pequena Lisboa e as da grande Lisboa. Por pequena Lisboa, denota-se o bairro popular. São os mitos localizados numa cultura específica, com os seus heróis e vilões, onde a vida exuberante se estrutura e ganha sentido. São os mitos que constituem o lastro de o rapaz. Por grande Lisboa, significa-se um certo meio cultural lisboeta dominante nos anos setenta, no pós-revolução, mas que viria já de antes. São, agora, os mitos das viagens, do cinema, da cultura, da filosofia, da literatura, do amor ou do sexo, para não falar das mitologias new age emergentes na parte final do livro, mas como se tudo se passasse numa dimensão onírica, mesmo quando se fazem viagens, se escrevem livros, etc. O jornalismo ou a literatura policial fazem a mediação que permite a fusão entre a pequena e a grande Lisboa, entre ambas as mitologias. A sensação que daí resulta, e que contamina o leitor, é que nunca nada é consumado realmente. Viaja-se como se não se viajasse, citam-se autores que não se compreenderam ou não se leram. Na verdade, um exercício de pura adolescência. As mitologias criadas por Dinis Machado, apesar de divertidas, não são meras diversões. São retratos impiedosos de uma certa pequenez – menoridade – envolvida no artifício da referência e da citação, mediadas pela cultura jornalística ou pela literatura policial.

O relatório de Molero, ao qual nunca se tem acesso, a não ser pelos comentários e diálogos entre Austin e Mister Deluxe, com a sua natureza fragmentária, é o relato irónico de um mundo cultural lisboeta que transformava a boémia e a referência superficial aos objectos culturais em voga num mito de alta cultura. O romance entretece uma analogia entre a sua estrutura romanesca e a situação desse mundo cultural da capital. Assim como Austin, Mister Deluxe e o próprio Molero, apesar da sua peregrinação investigativa, nunca conseguem chegar à essência de o rapaz, também esse mundo cultural e boémio lisboeta, apesar da frequência cinematográfica e da referenciação superlativa aos objectos culturais, nunca toca de forma séria nessa alta cultura, que diz admirar, mas que não passa de tema de conversa, entre dois copos, ou de técnica de engate, pois o desejo tem os seus imperativos e há quem só se dispa se for embalado por uma conversa de alto valor cultural. Os lugares-comuns em que o romance abunda são uma estratégia narrativa para tornar patente o irrisório, senão a impotência, dessa comunidade cultural que se acharia a vanguarda espiritual da nação. Na verdade, uma comunidade de velhos adolescentes, mergulhados na menoridade, de que são, eles próprios, culpados, mas parafrasear, mais uma vez, Kant. Um fogo-de-artifício para mostrar que, apesar da seriedade de Pombal, o Iluminismo nunca terá penetrado seriamente por aqui, para tornar manifesto que aqueles que parecem herdeiros desse século das Luzes são, na verdade e todos juntos, uma rapaziada. 

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