Tornou-se um hábito surgir uma espécie de guerra cultural sempre que Michel Houellebecq publica um romance. Serotonina, de 2019, não foi excepção. Em muitas das recensões que se encontram disponíveis na internet parece haver uma maior preocupação em atacar ou defender o escritor do que enfrentar-se com a obra. Fica-se sempre com a suspeita que o que dinamiza os textos são aspectos ideológicos que se presume serem os do próprio autor. Há uma obsessão em identificar narrador e autor. Para além de um certo fogo-de-artifício com uso de expressões que infringem os ditames do denominado politicamente correcto, tais como afirmações misóginas, um elogio a Franco como criador do turismo de massas, embora claramente irónico, considerações xenófobas relativamente a ingleses, holandeses e japoneses, a consideração, pelo narrador, da possibilidade de assassinar uma criança para recuperação de uma amante, ou o ódio visceral à proibição de fumar, a obra sublinha, não muito sub-repticiamente, a tensão entre tradição e modernidade. É uma crítica rude dos valores cristalizados pelo Iluminismo.
Dois núcleos centrais do romance questionam a livre-escolha. Por um lado, na vida sexual; por outro, na vida económica. Em ambas, a liberdade de escolher conduz a um beco sem saída. Aquilo que está em jogo é sempre a tensão entre a existência regulada e a vida deixada ao livre-arbítrio dos indivíduos ou ao jogo livre das forças do mercado. De modo mais preciso, entre a menoridade e a maioridade, para usar o tema do ensaio de Kant sobre o Iluminismo. O que Houellebecq põe a nu é a incapacidade de os indivíduos gerirem a sua própria existência, quando libertos de tutores e entregues a si. O que se manifesta é a falência de cada um em fazer uso da sua razão para dirigir a existência. Camille representava para o narrador, Florent-Claude Labrouste, a mulher com que gostaria de casar, mas a sua liberdade de escolha, a quebra de um compromisso tácito – na verdade, de uma promessa não formulada – levou a que ela se desligasse dele. Na base, um caso de sexo, pouco mais que esporádico. Se se olhar a vida sexual das pessoas que rodeiam Labrouste, a sensação é sempre a mesma. A nossa liberdade sexual é impotente para gerar a felicidade e dar um fim à existência. Esta liberdade não passa de uma licença para suspender os contratos amorosos, o compromisso com o outro e com a vida. No romance, nota-se a nostalgia de um tempo em que o livre-arbítrio dos indivíduos não era sinónimo de licença nos costumes. Nostalgia de um tempo, onde a força das instituições – esses artifícios apolíneos – colmatava a fraqueza dos indivíduos perante os apelos e injunções de Diónisos. A abertura infinita das possibilidades, das possibilidades de busca de objectos para consumação do prazer sexual, é um mal, um gerador de equívocos e de vidas falhadas.
Por outros motivos, também os produtores de leite da Normandia estão em guerra com as instituições que, no lugar de superintenderem e regularem as relações económicas, procurando assegurar a rentabilidade do mundo rural, servem apenas para criar uma legislação que desregulamenta a vida económica, favorece o agro-negócio e entrega os agricultores a esse mar tenebroso do livre-comércio. O mercado acaba por ser visto, ainda que não de forma explícita, como um lugar onde o génio de Diónisos se compraz com a dança das bacantes. Labrouste que teve, do ponto de vista profissional, um papel que deveria proteger a especificidade do queijo da Normandia e, desse modo, a vida económica desses agricultores, descobriu que as intenções de Bruxelas e do governo são deixar morrer, um-a-um, esses homens que asseguravam uma certa tradição agrícola, mantinham viva a especificidade dos lugares e ligavam as comunidades ao fio histórico das gerações. A revolta dos produtores de leite normando não é mais do que a manifestação de uma impotência perante as forças dissolventes da globalização, com a sua natureza niilista.
Perante essas forças que actuam na vida privada e no mudo da economia, não há, na perspectiva do narrador, modo de se lhes opor com êxito. Ele próprio é um sintoma dessa impotência. Nascido numa família das classes médias-altas, com uma boa educação académica, a sua vida profissional não passou de um desastre. Nela não encontrou, a realização que o tempo da universidade lhe parecia prognosticar. A retórica sobre a boa formação como abertura de possibilidades existenciais para uma vida boa não passa de um engano. Os empregos modernos não trazem consigo uma possibilidade de auto-realização. São antes um dos múltiplos motores de alienação, do estranhamento a si mesmo, que estão em acção. A rasura do sentido para a existência conduz à fuga da realidade e à depressão. É este o destino do narrador e protagonista,
Quando Labrouste descobre que a sua namorada japonesa, filha de boas famílias, de quem já estava completamente farto, se entregava a orgias na sua ausência, que incluíam sexo com cães, e tendo a noção de que a sua vida profissional não o conduzia a lugar nenhum, decide desaparecer, perder-se no anonimato da grande cidade, sem comunicar a ninguém. Essa defecção, porém, não tem poder salvífico. Liberta o protagonista de factores que produzem um mal-estar contínuo, mas não fornece força regeneradora. O perigo de suicídio passa a acompanhá-lo. Salva-o o captorix, um medicamento à base de serotonina, um neurotransmissor que regula o humor. Como efeito secundário, porém, causa impotência. O dilema que enfrenta Labrouste é o complemento da reflexão sobre o carácter dissolvente da liberdade sexual. Perante ele, está a escolha entre a vida ou o sexo. Este dilema sobrecarrega a ligação da sexualidade à morte.
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