terça-feira, 20 de junho de 2023

Simulacros e simulações (51)

José Bellosillo, Esperanza, 1982

Não da luz nem da transparência. Não do orgulho ou da humildade. A esperança nasce da simulação dos futuros possíveis, brota de um jogo de composição em que se transforma, com a lentidão das coisas decisivas, o olhar num simulacro de futuro e este na realidade que o coração retém como o santuário onde termina a sua peregrinação.

domingo, 18 de junho de 2023

Cardílio (24 sonetos) 17

Anónimo romano - Afresco encontrado em Pompeia

Seriam hábeis amantes os que nesta
Casa amaram? E no grito dessa noite,
Deixariam os homens a sua língua
Perder-se nos recantos fatigados,

Na relva crespa, esparsa das mulheres?
Que incêndios os fizeram tão felizes?
Oiço nesse horizonte gritos breves
E puros, oiço a morte, em silêncio,

Percutir na penosa e dura pedra
Da vida, oiço os sinos das aldeias
Por vir, depois de ti, pobre Cardílio.

De ti que só a ruína do amor salvou
Do eterno esquecimento. Canta, pois,
De Avita o sangue no Orco tenebroso.

2007

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Os cartazes dos professores

Os cartazes empunhados por alguns professores, no dia 10 de Junho, onde o primeiro-ministro António Costa é retratado com nariz de porco, lápis cravados nos olhos e uma hiperbolização dos seus traços indianos, levantou uma enorme controvérsia. Vale a pena analisar o acontecimento a partir de três perspectivas.

1. A liberdade de expressão. Os cartazes cruzam várias referências. Por um lado, há uma quase citação gráfica da obra de Georges Orwell, O Triunfo dos Porcos, por outro, há uma inscrição do cartaz na área da caricatura. Uma questão que se pode debater é se o cartaz é racista. Ele representa uma crítica ao primeiro-ministro por ser primeiro-ministro ou porque, além de ser primeiro-ministro, tem parte das suas origens na Índia? É plausível que o cartaz possa ser interpretado como um acto racista. Os comportamentos racistas devem ser perseguidos pela justiça. Contudo, neste caso, isso seria errado. Estamos numa zona de fronteira entre a crítica política e a ofensa pessoal de péssimo gosto. O direito à liberdade de expressão deve prevalecer.

2. Os interesses dos professores. Será que os cartazes reforçaram a posição dos professores no amargo conflito que travam com o governo? Não, claramente não. Por dois motivos complementares. Em primeiro lugar, a ofensa gratuita, mesmo apresentada como crítica, tem má imprensa e pior recepção na comunidade. Em segundo, porque os professores não podem ostentar certo tipo de comportamentos. Deles espera-se, mesmo quando maltratados pelas governações, uma posição mais discreta e civilizada, mesmo que firme nas suas reivindicações. Por desesperada que seja a situação de muitos professores, e é, há uma coisa que não podem perder, essa coisa é a imagem de dignidade inerente à sua função. Fez bem a FENPROF em demarcar-se de imediato.

3. A saúde da democracia. Este acontecimento insere-se num movimento em que as regras de civilidade parecem estar em recuo. Por detrás dessa onda, no qual este episódio é uma mera gota, está um processo em curso que, alimentado por sectores políticos inimigos da democracia liberal, aproveita todas as situações para corroer as instituições e a convivência democrática. Isto significa, literalmente, transformar adversários políticos em inimigos, os quais podem ser tratados como se não fossem pessoas morais (é o que simboliza o cartaz). Isto não é novo. A novidade reside na quantidade de situações destas, que começam no parlamento, são intensificadas nas redes sociais e acabam por se exibir nas ruas. São tempos difíceis para a convivência democrática.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Comentários (9)

Claude Gellée, Ulysses Returns Chryseis to Her Father, 1644

Estarei sempre do lado dos troianos, reafirmando
a pergunta essencial: que procuram os gregos?
Que querem eles sob o pretexto  da devolução de Helena?
Luís Quintais

Será diferente aquilo que as hostes de Agamémnon e Menalau, filhos de Atreu, procuraram em Tróia daquilo que procurou Sócrates, séculos depois, em Atenas? Talvez a guerra, naqueles dias em que os inimigos se olhavam nos olhos, fosse uma forma de sabedoria, ou, melhor, um método de questionamento sobre si, sobre a sua verdade, o confronto com a sua alma, com a sua natureza. No fundo da consciência dos heróis gregos, existiria, quem sabe, uma difusa sensação de que Helena não era outra senão a própria Sophia que habitava dentro de cada um e que, no esforço imposto pela retórica do combate, se procurava, de forma tão decisiva quanto Sócrates a procurou nas suas deambulações pela cidade de Atenas, e que o conduziu, como a muitos dos heróis gregos em Tróia, à morte. 

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Ensaio sobre a luz (103)

Fernando Calhau, sem título, 1978

Romper as trevas como uma mão abre um cortina. Deixar que a luz caia e, de súbito, um corpo se manifeste, para se tornar objecto de desejo, o ponto para onde, tremente, o olhar se dirige. Romper as trevas como se rompesse o grande lençol da ausência.

sábado, 10 de junho de 2023

A persistência da memória (24)

Alfred Stieglitz, Scurrying Home, 1895
Um ramo da árvore do passado cai diante de mim, interrompe-me o caminho, desvia-me os olhos dos perigos do presente ou das ânsias do futuro para os degraus do grande hotel do passado. Este chega em ondas, numa maré viva, cheia de imagens que crescem e se dissolvem na areia da atenção. Quantas vezes vi aquelas mulheres a caminharem apressadas para o lugar que as esperava, quantas vezes entrei naquela igreja para me resguardar do calor do dia ou do ruído da vida? Elas deslizam na floresta da eternidade. Entram numa memória e saem para outra, perfilam-se no horizonte como estátuas que o tempo não derrubará, imagens presas no altar de uma igreja perdida no caminho.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Nocturnos 103

Georges Rouault, Paisage de noche, 1897

O peso da escuridão solta-se sobre a terra, abrindo clareiras de mistério nos matagais do segredo. Ali, viandantes incógnitos trilham caminhos em busca da glória dos abandonados e da coragem dos vencidos. A noite dissolve os contornos de cada coisa, para que esta transborde os seus limites e se torne naquilo que não é.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Cardílio (24 sonetos) 16

Anónimo romano, A Poetisa

Lucernas, vidros, ânforas, pedaços

De vida esquecidos entre malvas,

Na poeira do campo, na memória

Tragada pelo tempo, no silêncio

 

Bravio de tanta morte. Nesta casa,

Habitaram mulheres, e ferozes

Dedos delas fizeram doce e terna

Habitação. Que nome seria o seu?

 

Procuro-o na cerâmica dos dias,

No mármore das noites, no Inverno

Do teu rosto aceso e sem nome.

 

Na planície, sinistras mãos vazias

Erram entre o cascalho abandonado.

Cantam como os loucos cantar sabem.


2007

domingo, 4 de junho de 2023

A moral e o medo


No Público online de 28 de Maio, há uma entrevista interessante a Mohan Mohan, antigo gestor da Procter & Gamble, uma multinacional detentora de inúmeros marcas bem conhecidas dos consumidores portugueses. A entrevista tem um curioso título: Se os gestores fossem movidos por valores, não teríamos a crise que enfrentamos hoje. O título é interessante porque reconhece explicitamente que a actual crise se deve às opções dos que têm poder de decisão económica. Mais à frente faz o mesmo reconhecimento relativamente à crise do subprime de 2008 nos EUA, que desencadeou, a partir de 2011, as crises das dívidas soberanas na Europa do Sul, entre elas a portuguesa. O interesse da entrevista deriva ainda de outra coisa, do reconhecimento de que os gestores, por norma, não são movidos por valores morais.

A dado passo, é perguntado o seguinte: Acredita que os valores dos gestores constituem a parte mais importante para se evitar fenómenos como o de 2008, mais do que a regulação e a supervisão? A resposta pode resumir-se no Absolutamente. É evidente que se todos os gestores se pautassem por valores morais irrepreensíveis, muitos dos males que acontecem à humanidade não aconteceriam. Todavia, não há nada de mais equívoco do que julgar que a moral tem poder para resolver este tipo de problemas que atormentam a vida de grande parte da população mundial. Contrariamente ao que é sugerido pelas entrevistadoras, é falso que os valores morais tenham mais capacidade para evitar crises económicas catastróficas do que a regulação e a supervisão, isto é, a política e o direito.

A moral liga-se à consciência de cada um e, como todos sabemos, a sanção da nossa consciência é um fraco elemento dissuasor de comportamentos eticamente reprováveis e juridicamente criminosos. O que se passa no mundo é que os interesses económicos colonizaram a política, e esta tornou-se, em nome do livre mercado, complacente com regras económicas que conduzem aos desastres financeiros que arrastam milhões de pessoas para a miséria. A economia emancipou-se da moral e submeteu a política e, através dela, o direito. A solução não está num apelo aos valores e à consciência moral dos gestores, mas a uma independência da política em relação à economia, à existência de regras estritas de regulação e supervisão, e de penalidades jurídicas dissuasoras de comportamentos perigosos. Talvez daí, do medo, os gestores ganhem consciência moral. Sem isso, pessoas e países estarão sempre expostas ao arbítrio de quem manda no dinheiro. Não é só a moral que deve influenciar a criação do direito. Também o direito pode e deve fomentar a moralidade.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Naturalizar as alterações climáticas


Entre diversos acontecimentos notáveis, o século XVIII europeu foi abalado, já na segunda metade, por dois que lançaram não pouca confusão nos espíritos da época. Em 1755, o Terramoto de Lisboa. Em 1789, a Revolução Francesa. O sismo de Lisboa não abalou apenas o território português. Abalou consciências e crenças por toda a Europa culta. Gerou-se uma grande perplexidade em torno da religião. Como poderia Deus, sumamente bom, omnisciente e omnipotente, ter permitido aquela desgraça, ainda por cima numa cidade católica? O desconcerto da natureza deu energia à crítica iluminista da religião, acelerou o interesse pela ciência como explicação dos fenómenos naturais, abriu uma brecha na consciência europeia por onde a religião começou um longo processo de evaporação.

O abalo não foi menor na Revolução Francesa, 34 anos depois. A ordem política instalada cai como caiu parte substancial da cidade de Lisboa. Uma das reacções mais interessantes foi a do mais encarniçado inimigo da Revolução, o conde Joseph de Maistre. O interesse da sua reacção advém de ela combinar uma mistura de teologia e de naturalismo. A Revolução seria um castigo de Deus por os franceses se terem pervertido nas águas do Iluminismo. Contudo, as forças desencadeadas pelo acontecimento, a partir de certa altura, já não são conduzidas pelos homens, diz Maistre. Pelo contrário, é a Revolução que conduz e utiliza os homens no seu afã destrutivo. A Revolução é vista como uma força da natureza que, tal como aconteceu no Terramoto de Lisboa, destrói aquilo por onde passa. Esta naturalização das forças desencadeadas pelo homem tornou-se um modelo interpretativo que contínua activo.

Observem-se as alterações climáticas, a forma como os seres humanos as desencadearam, tal como desencadearam a Revolução Francesa. Apesar dos alertas institucionais e do esforço militante, paulatinamente, na consciência do homem comum, instala-se uma muda convicção. Perante o que está a acontecer podemos fazer tanto quanto puderam fazer as vítimas do sismo de 1755. Já não se pensa, como pensou Maistre, em castigo divino, mas como ele naturaliza-se aquilo que teve origem nas decisões e acções humanas. O que podemos fazer perante uma natureza que se está a tornar, a cada dia, mais hostil? Nada, é a resposta que se dá no segredo da consciência. A natureza é omnipotente, mas não sumamente boa, tal como o Terramoto de Lisboa mostrou. Isto é uma desresponsabilização perante a necessidade de alterar o estilo de vida, e essa desresponsabilização decorre da naturalização das acções humanas. Terá um corolário darwinista: os mais adaptados às novas circunstâncias sobreviverão, os outros perecerão.