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Jan Davidsz. de Heem, Sumptuous Still Life with Fruits, Pie and Goblets, 1651 |
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
O progresso moral da humanidade (14)
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
Leggio II
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Carlos Botelho, Entrada da Barra, 1964 (aqui) |
Em travessas sujas de solidão
flutuam na ardência do ar
casais de namorados tão
enamorados,
tão presos na urdidura de cal,
as mãos nas mãos a tecem.
Nem a luz do amor os ilumina,
nem o fogo do desejo os aquece.
Vivem do Inverno preso no olhar,
caminham entre nuvens
sem o dolo, sem a dádiva de um
destino.
Às vezes, fogem para o Castelo
e choram o tumulto da dor,
tão aguda lhes dói.
A luz ilumina a poeira das ruas,
e ouve-se a mágoa dos corações
no bater dos sinos ao meio-dia.
Barcos encalhados na areia,
os jacarandás pelas avenidas
espalham sombras e saudades.
S. Jorge espera o fogo do dragão,
a morte que lhe deu vida.
Quantos anos tens?
E ela mostra-lhe os dedos e
ele conta-os, conta-os,
pela tarde recoberta de luz,
o Tejo a marulhar ao longe,
as águas espessas,
o coração ainda aberto,
praça desvalida,
sem armas e sem tréguas,
ao repouso da morte entregue.
segunda-feira, 25 de setembro de 2023
Nocturnos 108
sábado, 23 de setembro de 2023
Os homens e a autonomia das mulheres
O caso de um seleccionador de futebol que beija na boca uma jogadora. O caso de uma jornalista de televisão que é apalpada durante um directo. O caso de um Presidente da República que comenta a indumentária pouco resistente ao frio de uma mulher. Estes casos geraram um enorme rebuliço por tudo o que é sítio, e, como se sabe, actualmente, sítios e lugares são nas redes sociais. O mais interessante neste charivari é que uma parte dos homens – e também algumas mulheres, saliente-se – não percebem o que está a acontecer. A virtude masculina, a essência da virilidade, não estaria nessa capacidade de submeter as mulheres aos seus desejos, aos seus comentários? Agora, os homens já não podem ser homens? Esta questão terá aflorado em não poucas mentes.
Estes comportamentos não são negativos por infringirem a decência ou por estarem em desacordo com a gravitas que um Presidente deve ostentar a cada instante. Eles são negativos e dignos de censura porque atentam contra a autonomia de seres humanos, no caso de mulheres. O que implica a autonomia de um ser humano? Que seja respeitado na sua dignidade, a qual deriva da sua capacidade de escolher os seus fins. O que estes comportamentos põem em causa é a dignidade das mulheres, não porque tenham cariz sexual ou possam ser interpretados como brejeiros, mas porque não resultam de um consentimento daquelas que foram objectos deles. A moral que está em jogo não é a dos bons costumes, mas a moral da liberdade e do direito de cada um fazer as suas escolhas. Seja a escolha por quem se é beijado, apalpado ou como se deve vestir. A imoralidade desse tipo de comportamentos reside no facto de eles infringirem a autonomia de um ser racional.
E a virilidade dos homens, a sua virtude masculina? Vai desaparecer? Não estaremos perante uma ameaça à reprodução da espécie, como poderá defender um sexista? É um facto que uma certa cultura masculina está – e não é de hoje – em apuros. Contudo, a autonomia plena das mulheres é um desafio para a virtude masculina e para o exercício da virilidade. Respeitar a autonomia das mulheres, saber lidar, no plano amoroso e da sexualidade, bem como em todos os outros, com alguém que tem um estatuto igual e não com um ser submetido pela força ou pela tradição, exige mais dos homens, exige mais inteligência e subtileza, mas também tem a possibilidade de tornar as relações entre homens e mulheres, sejam elas quais forem, mais ricas e muito mais interessantes. Respeitar a autonomia das mulheres é um bem não apenas para as mulheres, mas também para os homens, tornando-os não menos homens, mas homens mais sagazes.
quinta-feira, 21 de setembro de 2023
Comentários (13)
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Max Beckmann, Ice on the River, 1923 |
Uma confissão - religiosa ou jurídica - seria suficiente para faltas de que fôssemos plenamente culpados, mas só uma confissão poética pode trazer à luz essas falhas de que nos tornámos culpados, embora elas não tenham nascido de uma decisão nossa, não sejam fruto do livre-arbítrio. São falhas constitutivas, dizem respeito ao que somos, e o que somos depende da herança que recebemos. O poético é então o caminho em que nos apropriamos do que em nós é estranho, do mal que nos constitui e que deve ser poeticamente confessado como próprio. Escrever, escrever poesia, será então a longa confissão da falibilidade de cada um, o reconhecimento do peso da sua herança.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
Ensaio sobre a luz (107)
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Christoph Heinrich Kniep, Bocca di Capri, 1789 |
domingo, 17 de setembro de 2023
Leggio I
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Carlos Botelho, Lisboa, 1946 (aqui) |
O fragor da madeira fresca para
a cidade
os homens traziam e em
apertadas ruas abriam
com langor avaras passagens.
A estreita senda, onde na manhã
de ontem,
os eléctricos esculpiam, no
frio da estrada,
imensas, pois amarelas e vivas,
as paisagens.
Os pregões, tal ainda dado
ouvir me foi, ali
a voz calaram e as ruas, ora
desertas,
habita-as gente, fantasmas
ondulantes,
pássaros suados, a bramar por
nós, chamam.
Quando gaivotas, poisam de asas
abertas
ou, se rouxinóis, cantam, a voz
incerta.
Nas sombras da tarde não há
mistério
e pelos cafés bóiam turistas,
gente obscura,
despojos vindos das terras
perdidas do império.
Quando as águas correm, a
cidade grita,
e no céu, como raparigas
suspensas,
transbordam de cinza nuvens
varadas de mágoa.
O Sol, em leve inclinação, ao
meio-dia deixa,
entre casas, um risco de cal e
calor.
As árvores agachadas, pois
árvores são,
fazem lembrar, em funesta
analogia,
o cantar sobressaltado de uma
cotovia
presa no silêncio de um homem pelo
chão.
(2006)
sexta-feira, 15 de setembro de 2023
A persistência da memória (26)
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Otto Scharf, Taufgang, 1905 |
quarta-feira, 13 de setembro de 2023
O progresso moral da humanidade (13)
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Alexey Titarenko, Crowd 2, St. Petersburg, Russia, 1993 |
segunda-feira, 11 de setembro de 2023
Nocturnos 107
domingo, 10 de setembro de 2023
A política e a verdade
A certa altura de uma entrevista concedida ao Público, o cientista – Prémio Nobel da Medicina – Richard J. Roberts afirma: Quem não sabe nada de ciência não devia interferir na política. Os políticos precisam de ouvir os cientistas, não as pessoas, os pastores ou outros líderes religiosos que apenas espalham desinformação. A posição de Roberts é um exemplo de uma certa inocência sobre o que é a política. Por norma, cientistas e filósofos estão comprometidos com a verdade, é esta que orienta a sua actividade. Os políticos, porém, são homens de acção, e aquilo que os orienta não é a verdade, mas o poder. O que se descobriu há muito é que entre poder e verdade pode existir um abismo, muitas vezes, inultrapassável. Foi esse abismo que levou Platão a formular a controversa teoria do Rei-Filósofo.
Um político sem poder é uma inutilidade, por mais verdadeiras que sejam as suas ideias sobre a realidade. Como o poder, em muitos países, se conquista através de eleições, pela formação de maiorias, os agentes políticos fazem suas as crenças maioritárias. A generalidade das pessoas – muitas vezes com formação superior – são mais sensíveis a explicações simples, apesar de falsas, do que a complexas explicações dos fenómenos, apesar de verdadeiras. Isto é intensificado pela intervenção de líderes de opinião, religiosos e laicos, que criam fantasias que as pessoas tomam por realidade. O que move os seres humanos, na vida quotidiana, também não é a verdade, mas o desejo, as expectativas, o medo, isto é, um conjunto de factores irracionais, os quais se projectam nas urnas, escolhendo os políticos que digam aquilo que elas querem ouvir, mesmo que falso.
A ideia de submissão da política, e dos políticos, à razão e à verdade, proposta por Roberts, é uma ilusão, pois as comunidades humanas não são comunidades de cientistas ou de filósofos. A política não lida com a investigação e o conhecimento, mas com a direcção de uma comunidade humana com a finalidade que essa comunidade subsista perante as ameaças que a atingem, e os seus membros possam gerir os seus desejos, expectativas e medos. Se a razão e a verdade não têm poder suficiente para gerir a irracionalidade que habita os seres humanos, o mais plausível é que políticas irracionais tomem conta do discurso político e da acção dos políticos, ainda mais numa época em deixou de existir um padrão de verdade que legitimaria discursos e acções. É possível que, nos próximos tempos, se acentue um paradoxo: quanto maior e mais preciso for o conhecimento científico, tanto maior será a submissão da opinião pública a crenças irracionais e a falsificações da realidade.
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Cardílio (24 sonetos) 24
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Cardílio e Avita (Vila Cardílio, Torres Novas) |
Nestas pedras tão rasas, o meu
corpo
A tua carne deseja e, na
brancura
De teus dedos, a alma se distrai
Do voo mudo dos séculos.
Efémero
Tijolo sob as ancas te
sustenta,
Te rouba à gravidade e te
suspende,
Na passagem de minhas mãos em nívea
Face já pelo Outono cariada.
Na cicatriz dos gestos, na
passagem
Oculta dessas mãos, abre-se o
mundo
À névoa branca e fétida das
pétalas
Em decomposição. Caminharemos
Pelas ruínas dos dias e abraçados
Esqueceremos campos, rios e mágoas.
2007
terça-feira, 5 de setembro de 2023
Simulacros e simulações (55)
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Frank Horvat, Mate with Jaguar, London, 1955 |
domingo, 3 de setembro de 2023
Comentários (12)
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Mário Cesariny, Naniôra – Uma e duas, 1960 (aqui) |
sexta-feira, 1 de setembro de 2023
Democracia sim, mas…
Existe a frase famosa atribuída a Winston Churchill – a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros – que serve como sentença acerca da superioridade da democracia sobre os outros regimes políticos. No entanto, a frase contém um conceito equívoco, cujo significado é objecto de disputa e que necessita de esclarecimento para que a frase faça pleno sentido. Esse conceito é, precisamente, o de democracia. O regime democrático a que se referia Churchill é o de democracia liberal e representativa. Este tipo de democracia implica uma drástica limitação das pulsões democráticas. Um governo numa democracia liberal e representativa é emanado do voto popular. Contudo, os seus poderes são sempre limitados e não pode fazer tudo aquilo que lhe passe pela cabeça ou pelo desejo dos seus eleitores.
As democracias liberais e representativas são regimes políticos pensados para compatibilizar a vontade popular expressa maioritariamente e a protecção das minorias. São ainda pensadas para que os governos sejam controlados por instâncias formais – como os parlamentos ou os tribunais constitucionais, por exemplo – e por instâncias informais – como a opinião pública livre. Ganhar eleições, mesmo com maioria absoluta, não significa poder fazer o que se quer e, muito menos, perseguir os adversários políticos. Existe, todavia, outro entendimento da democracia. Uma maioria de votos justificaria qualquer medida do grupo político escolhido pelos eleitores. Existem regimes políticos que têm eleições – as quais podem ser justas – mas não se podem qualificar de democracias no sentido de democracia liberal e representativa.
A partir de certa altura, esses regimes começaram por ser designados por democracias iliberais. Na verdade, não passam de ditaduras da maioria, onde os direitos, liberdades e garantias individuais estão postos em causa. Um dos desígnios dos governantes desses regimes é o controlo do aparelho judicial e de todas as instâncias que podem limitar a acção governativa. Podemos ver esses regimes, por exemplo, no Irão, na Turquia, na Hungria, na Venezuela e, agora, em Israel. Quando se fala na extrema-direita populista e se a acusa de fascista, é possível que se esteja a falhar o alvo. O que os partidos dessa área pretendem, incluindo em Portugal – digam-no claramente ou de forma velada – não é abolir as eleições, mas a natureza liberal e representativa da democracia. Pretendem usar o voto popular para acabar com os mecanismos de controlo do governo e assim implantar uma ditadura da maioria. Nem todas as democracias são regimes recomendáveis.