sábado, 15 de junho de 2024

Poemas fluviais 5

Karl von Pidoll, River scenery, ca. 1889

Era o primeiro rio que me nascia nas mãos.

Naquele regaço arfava uma rosa-púrpura,

rosa inchada pelos dias,

olhos inclinados entre folhas de loureiro.

Vacilavam as águas presas na indecisão,

os barcos arvoravam bandeiras

de países perdidos pela terra.

 

Como te chamas?

A urze é corrida pelo vento,

círculos ondulam a água deste rio,

cavado na memória,

perdido nos alcatruzes do tempo,

no fundo de uma areia fina,

branca como a palidez da morte.

 

No rosto do rio, risos de mulher.

Rio feminino, fêmea aberta sobre as margens.

Quando a água corre entre o lodo,

abre as longas pernas.

No centro do útero cresce a voz,

o poder intocado pelo medo.

 

O rio procura um nome,

perde-se entre meandros,

perde-se nas orações quebradas

numa língua incógnita.

Tumulto após tumulto, sossega o rio o desejo.

O nome é uma palavra inominável,

o secreto recanto da alma.

 

Sente o rio a noite, as lâmpadas acesas

sobre o bordo dos barcos,

as canções fluviais em surdina.

De que lhe serve uma voz?

Da noite, nasce a aurora,

um cavalo abandonado sobre a terra.

Acende-se o rio nas sílabas de luz,

na fonética imprevisível do dia.

 

Cavaleiros fluviais debruçam-se

na topografia das águas,

traçam mapas no veludo do olhar.

O rio corre entre tábuas,

preso em paredes caiadas, tocadas pelo lodo.

Nas veias, o visco dos séculos,

uma cadeia de fungos,

o bolor cinzelado pelas mãos.

Como chegar ao fundo do rio?

 

Cresce na margem uma habitação silenciosa,

rumor de água pelo moinho,

pesadas mós moem o trigo da melancolia.

O moleiro olha a mulher,

uma agonia sem nome cresce na alma do rio.

A hidra volta todos anos,

traz o recibo de um tributo nunca pago.

 

Sobre a esquina do rio, um cântaro esquecido.

Nas margens, cães e crianças,

vozes de sombra e latidos lunares,

a erva fresca alimenta impérios de insectos,

flores vermelhas voltadas para a colmeia.

No centro da água sopra o vento,

vozes ecoam no álcool das destilarias.

 

Corre um mundo sem tréguas,

uma batalha inédita de peixes e patos.

Arvorado pelo anzol,

um homem de sebo é o dono desse mundo.

Quando da janela deita os olhos entre as águas,

crescem rochas esventradas na saliência do rio.

 

O tecto traz o zinabre da memória,

as águas a corroer paredes e almas,

pássaros esquivos poisados na roupa branca,

um quintal de ervas daninhas,

pedaços de vidro pelo chão.

Deitado na vida, a aguardente corria

pelas margens tocadas pela sombra da tarde.

 

Mulheres gritavam,

entre as silvas ouviam-se guinchos,

ratos especados,

o fio de água entontecendo os choupos,

salgueiros quebrados na margem do corpo.

 

Com as mãos entreteço uma armadilha,

aprisiono o mistério das águas e calo-me.

Um cesto de verga,

a sombra enxertada na luz solar

e todos os dias uma água prisioneira

foge de minhas mãos vazias,

perde-se na torrente do rio que corre.

 

Agosto de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]




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