Karl von Pidoll, River scenery, ca. 1889 |
Era
o primeiro rio que me nascia nas mãos.
Naquele
regaço arfava uma rosa-púrpura,
rosa
inchada pelos dias,
olhos
inclinados entre folhas de loureiro.
Vacilavam
as águas presas na indecisão,
os
barcos arvoravam bandeiras
de
países perdidos pela terra.
Como
te chamas?
A
urze é corrida pelo vento,
círculos
ondulam a água deste rio,
cavado
na memória,
perdido
nos alcatruzes do tempo,
no
fundo de uma areia fina,
branca
como a palidez da morte.
No
rosto do rio, risos de mulher.
Rio
feminino, fêmea aberta sobre as margens.
Quando
a água corre entre o lodo,
abre
as longas pernas.
No
centro do útero cresce a voz,
o
poder intocado pelo medo.
O
rio procura um nome,
perde-se
entre meandros,
perde-se
nas orações quebradas
numa
língua incógnita.
Tumulto
após tumulto, sossega o rio o desejo.
O
nome é uma palavra inominável,
o
secreto recanto da alma.
Sente
o rio a noite, as lâmpadas acesas
sobre
o bordo dos barcos,
as
canções fluviais em surdina.
De
que lhe serve uma voz?
Da
noite, nasce a aurora,
um
cavalo abandonado sobre a terra.
Acende-se
o rio nas sílabas de luz,
na
fonética imprevisível do dia.
Cavaleiros
fluviais debruçam-se
na
topografia das águas,
traçam
mapas no veludo do olhar.
O
rio corre entre tábuas,
preso
em paredes caiadas, tocadas pelo lodo.
Nas
veias, o visco dos séculos,
uma
cadeia de fungos,
o
bolor cinzelado pelas mãos.
Como
chegar ao fundo do rio?
Cresce
na margem uma habitação silenciosa,
rumor
de água pelo moinho,
pesadas
mós moem o trigo da melancolia.
O
moleiro olha a mulher,
uma
agonia sem nome cresce na alma do rio.
A
hidra volta todos anos,
traz
o recibo de um tributo nunca pago.
Sobre
a esquina do rio, um cântaro esquecido.
Nas
margens, cães e crianças,
vozes
de sombra e latidos lunares,
a
erva fresca alimenta impérios de insectos,
flores
vermelhas voltadas para a colmeia.
No
centro da água sopra o vento,
vozes
ecoam no álcool das destilarias.
Corre
um mundo sem tréguas,
uma
batalha inédita de peixes e patos.
Arvorado
pelo anzol,
um
homem de sebo é o dono desse mundo.
Quando
da janela deita os olhos entre as águas,
crescem
rochas esventradas na saliência do rio.
O
tecto traz o zinabre da memória,
as
águas a corroer paredes e almas,
pássaros
esquivos poisados na roupa branca,
um
quintal de ervas daninhas,
pedaços
de vidro pelo chão.
Deitado
na vida, a aguardente corria
pelas
margens tocadas pela sombra da tarde.
Mulheres
gritavam,
entre
as silvas ouviam-se guinchos,
ratos
especados,
o
fio de água entontecendo os choupos,
salgueiros
quebrados na margem do corpo.
Com
as mãos entreteço uma armadilha,
aprisiono
o mistério das águas e calo-me.
Um
cesto de verga,
a
sombra enxertada na luz solar
e
todos os dias uma água prisioneira
foge
de minhas mãos vazias,
perde-se
na torrente do rio que corre.
Agosto de 1993
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
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