domingo, 30 de junho de 2024

Um poder discricionário

 

A divisão do poder político – legislativo, executivo e judicial - proposta por Montesquieu visava combater o poder absoluto depositado no rei. Pretendia-se proteger os cidadãos da vontade daquele que concentrava em si todo o poder e toda a violência legítima para se fazer obedecer. Esta divisão acabou por estar na base dos regimes democrático-liberais e do Estado de direito. A grande preocupação é defender o poder judicial das interferências do poder executivo. Na nossa constituição, o poder legislativo presta contas ao povo em eleições e ao Presidente da República, que o pode dissolver.  O poder executivo ou presta contas perante o povo em eleições, no caso do Presidente da República, ou perante o poder legislativo, no caso do governo. Só o poder judicial não presta contas perante ninguém que esteja acima dele. 

Há nesta independência do poder judicial uma ingenuidade. As paixões políticas são das mais poderosas e que mais capacidade têm para cegar as pessoas. O poder judicial é composto por seres humanos iguais a todos os outros. Por que razão deveriam eles não estar sujeitos às paixões políticas? Uma coisa é trabalhar num caso de justiça comum, num roubo, num assassinato, onde, em princípio, não se imiscui a paixão política. Outra bem diferente, é trabalhar e julgar em casos onde as convicções políticas de quem aplica a justiça podem enviesar a mera interpretação dos factos. As paixões políticas dos que fazem política são benévolas, pois estão assumidas e são escrutinadas pelo debate público. O mesmo não se passa com as paixões políticas de quem exerce a justiça, pois são tidas como não existentes, embora seja pouco crível que não existam.

O facto de o poder judicial não ter de prestar contas a ninguém fora da esfera judicial pode conduzir a uma subversão dos regimes democráticos, com uma interferência impossível de controlar do poder judicial na esfera dos assuntos do poder político. Aparentemente, é o que está a acontecer, com a contínua divulgação de escutas cuja existência não se percebe e cuja publicação viola o mais elementar sentido de justiça. Como há pessoas que vão para a política porque se julgam salvadores, também haverá quem pense ser salvador a partir do poder judicial. A grande questão é de saber se é possível encontrar um modelo em que o poder judicial preste contas sem correr o risco de ficar subordinado aos outros poderes, ou se haverá sempre uma parte do poder político - neste caso, o judicial – que é arbitrário e que, em última análise, se pode aproximar de um poder absoluto, apesar de não fazer a lei nem de governar. Interpretar a lei pode ser o mais amplo e discricionário dos poderes.

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