quarta-feira, 26 de junho de 2024

Cânticos lunares (i)

Hashim Samarchi, A pálida lua, 1967 (Gulbenkian) 

Um astro de cera revolve o ventre,

circunda-o no presságio da luz,

as águas soltas no delírio das marés.

Sob o clarão, a doçura do sangue pulsa,

caos no interior litoral da ordem,

fogo ateado na língua vítrea da lua.

 

Noite dormente, a lividez amarga,

o espinho cravado no rosto lunar.

O uivo silente e curvo desprende-se

da escuridão sideral da eternidade.

Sobre os degraus da casa, desfazem-se

as sombras, bandos de corvos repicam,

cantam no bronze verde-azul do sino.

 

Uma vida de crateras projectadas

no soalho viscoso, nas vísceras da terra.

O ceifeiro lunar inicia, em solidão,

o trabalho lexical, semeia letras de sal

no oceano lavrado da desordem,

sílabas de morte na virtude da língua.

 

Pela luz da lua um homem vem à fala.

A boca é um espelho, escarpa coleante,

o eco do animal roubado ao húmus,

ferido pelas glicínias cruas da noite.

 

Soa o troar da voz astral, feto preso

no sangue das artérias, a borracha

tubular de um oxigénio mineral.

Na luz dos olhos, sucumbe a videira

ao canto incendiado do rouxinol.

 

Esplende a lua uma ciência oculta.

Luz amarela e branca, sazonada

entre as flores da acácia e o odor

do trenó tecido no vidro da história.

A mão na espada dedilha o roteiro,

a secreção incauta no lodo do silêncio.


Abril de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


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