sábado, 1 de junho de 2024

A esquerda e a indignação

No mundo ocidental – e fora dele o caso é pior – a esquerda política encontra-se em retrocesso. As causas são diversas. Uma delas reside no facto de a esquerda – seria melhor dizer as esquerdas – ter trocado a política pela moral e ter desenvolvido uma cultura de indignação. Um exemplo foi a reacção no parlamento dos partidos de esquerda à intervenção de André Ventura, em que este considerava os turcos como não sendo um exemplo de povo trabalhador. Os partidos da esquerda não reagem politicamente ao conteúdo da intervenção de Ventura, que se referia à construção do novo aeroporto, mas, impelidos por um reflexo pavloviano, centram-se na imoralidade das palavras do líder do Chega. A partir desta reacção moral, a extrema-direita cavalgou a onda, aproveitou para solidificar apoios, enquanto a esquerda se envolveu em debates morais e, de modo absurdo, em meditações sobre a limitação da liberdade de expressão.

A moralidade na esquerda manifesta-se, por norma, sob a forma da indignação. Por exemplo, a questão colocada por Alexandra Leitão, do PS, aquando do episódio dos turcos, ao Presidente da Assembleia da República, transpira de indignação. Contudo, teria sido melhor que a sua intervenção, caso quisesse falar das considerações sobre os turcos, lembrasse que a Turquia é uma aliada de Portugal, no âmbito da NATO, e não é patriótico estar a desconsiderar, na Assembleia da República, um povo com o qual estabelecemos uma aliança de defesa, acrescentando que não devemos tratar os outros como não gostamos que nos tratem a nós, recordando o episódio de um certo comissário holandês e o que ele disse dos povos do Sul da Europa. Seria uma intervenção política e colocaria o líder do Chega numa situação mais difícil.

Não é que a direita e, em particular, a extrema-direita não recorra às emoções e à indignação. Contudo, quando o faz, consegue capitalizar apoios. O mesmo não se está a passar à esquerda. O recurso à moralidade e à indignação não lhe tem sido favorável, pois aquilo que emociona e indigna a esquerda deixou de ter poder para penetrar no eleitorado. O espírito do tempo não lhe é propício. Por isso, deveria ser mais racional nas reacções, não se comportar segundo os princípios do reflexo condicionado de Pavlov, e não se indignar sempre que a extrema-direita quer que ela se indigne, bastando a esta uma expressão provocatória para tirar proveito da reacção indignada da esquerda, capitalizar apoios, afirmar a sua agenda e ridicularizar a esquerda. Nos dias de hoje, é necessário, à esquerda, muita inteligência e a indignação não ajuda ao uso dessa inteligência.

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