quarta-feira, 31 de julho de 2024

Cânticos lunares (iv)

Edvard Munch, Claro de luna, 1895

Grassa a noite na flecha do silêncio.

A mão seca curva-se

ao trabalho nocturno do astro.

Preso ao centro da árvore,

um braço vegetal ergue-se

para a escassa poeira das ruas.

A Lua é uma flor plantada no deserto,

o cacto preso no firmamento,

luz evaporada no silvo da Terra.

 

Vai o satélite em seu caminho,

toca o azul no coração dos homens,

abre as horas inocentes da manhã

às asas febris do tempo.

Um insecto, urdido no fogo,

vem pela sombra lunar,

cera e seda no suplício da cidade.

Sob a copa do coração,

a Lua desenha paisagens de pavor.

 

Preso à leveza do archote,

o senhor da terra ergue o dia

no vitríolo da voz.

Lavra o vento no esquecimento lunar,

conta os olhos dos homens,

as pálpebras acariciando o fogo,

o suor enluarado da face.

Um comércio de luz vende luas

nas pétalas perdidas de uma rosa.

 

Maio de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Maria Isabel Barreno, Crónica do Tempo

 

Publicado em 1990, o romance Crónica do Tempo, de Maria Isabel Barreno, contém no título uma dupla referência à temporalidade, na palavra crónica e na palavra tempo. Como na crónica dos reis, também no romance de Maria Isabel Barreno existe uma narrativa cronológica onde a personagem principal é o próprio tempo, ou, melhor, o espírito do tempo, aquilo a que os alemães chamam Zeitgeist. Não se trata, todavia, de uma reflexão romanesca sobre a natureza do tempo, mas da observação dos seus efeitos sobre uma família desde os finais da República, início do Estado Novo e consolidação do poder de Oliveira Salazar até aos anos oitenta do século XX. Trata-se de uma crónica tanto da conformação que o tempo impõe aos indivíduos, moldando-lhes as possibilidades e os horizontes, delimitando-lhes, com rigor, as suas possibilidades de figuração, como do processo de destruição que esse mesmo tempo traz consigo, uma crónica de sucessivas derrocadas.

A obra inicia-se com a descrição de uma entrevista de Ângela, uma jornalista em reciclagem da sua persona profissional e pública, coisa corrente nos anos oitenta, a Jorge, um velho empresário retirado do mundo dos negócios, alguém que veio do nada e se tornou, no tempo da ditadura, um homem de influência, uma personagem nas classes médias altas de Lisboa. Ela estava a escrever sobre os homens de negócios que, antes do 25 de Abril, teriam poder. A desconfiança entre ambos (ao verem-se, ele sentiu malevolência; ela, repulsa), a incompreensão e os preconceitos que, perante o outro, nascem na mente de cada um são apenas o sintoma de uma distância geracional, a que o tempo cortou as pontes para que se pudessem compreender. A função diegética da entrevista é a de sublinhar, logo no início do romance, o conflito entre gerações moldadas por tempos diferenciados, o que introduz nas suas relações não apenas o fantasma da incompreensão ou a sombra de uma comunicação distorcida, mas um princípio irremissível de incomunicabilidade.

Jorge faz a sua fortuna em África, mas Isabel Barreno evita o estereótipo do capitalista explorador, do homem que se aproveitou da submissão dos povos africanos para triunfar na vida. Pelo contrário, Jorge é, desde o início, um opositor à visão de Salazar para as colónias, embora não partilhe a visão anticolonial que, a partir de certa altura, foi a da esquerda. Jorge é uma personagem consistente. Aliás, ele e a mulher, Manuela, são as duas personagens mais consistentes do romance, mais que os filhos e os netos, como se eles viessem de um tempo em que as pessoas tinham uma densidade existencial que as transformações sociais e políticas vieram rasurar. O casamento entre ambos, provenientes de meios sociais muito diferentes, ele do bairro popular da Graça, em Lisboa, filho de um porteiro do Ministério, ela dos meios monárquicos, embora pertencendo a uma família empobrecida pela incúria do pai, nunca funcionou, mas nunca se dissolveu. Aliás, é em torno da comemoração dos 50 anos desse casamento que gira parte substancial da narrativa. Esse fracasso emocional do amor foi compensado pelo compromisso com a instituição e construção de uma família. Isto surge como contraste aos casamentos dos filhos, daqueles que se casaram, que são muito mais frágeis e sujeitos ao espírito do mundo e do tempo.

A autora cruza a história pessoal e familiar com a história do país e deixa perceber as cicatrizes que as metamorfoses sociais e políticas deixam nas personagens. Essas cicatrizes manifestam-se na incomunicabilidade geracional. Jorge e o filho Diogo têm entre eles uma barreira que parece inultrapassável. Diogo não perdoa ao pai de o ter livrado, usando a influência pessoal e económica, da guerra colonial. Essa libertação é sentida como uma pesada herança que lhe limitou a liberdade de fazer escolhas e de correr riscos por sua própria conta. Diogo é o típico intelectual oposicionista, mergulhado nas crises académicas e, após o 25 de Abril, vivendo de uma rememoração do que foi e do que deveria ter sido no pós-revolução. Tanto na geração de Jorge e Manuela, como na dos filhos – embora sentida de modo diferente por Diogo, Carlota e Rosa –, existe uma consciência de que se possui uma responsabilidade perante o devir histórico. É essa consciência que vai desaparecer na geração dos netos. As novas gerações cultivam o pessimismo perante a história, e o seu horizonte existencial é o hedonismo simbolizado no culto da noite.

Crónica do Tempo é um romance marcadamente lisboeta. Lisboa é o cenário dessa história que cruza o indivíduo e a comunidade, a família e a sociedade. Isabel Barreno, em diversos passos, torna patente as transformações da capital portuguesa, transformações que acompanham as transformações políticas, mas também as metamorfoses da sociedade, a evolução das classes sociais e as mudanças no espectro cultural. É verdade que, no romance, também África aparece retratada, na relação de Jorge com esse universo onde fez fortuna. Contudo, na economia da obra, a cidade de Lisboa é o palco das tensões e dos confrontos familiares, dos conflitos e das mudanças sociais, das transformações existenciais. É numa rua de Lisboa que, perante o desabar de uma tempestade, Jorge e Manuela sentem, por uma única vez, que poderiam ser um casal efectivamente realizado, unido por laços que ultrapassariam o mero contrato do casamento, um casal ligado pelo amor. Tudo o que é decisivo no romance passa-se em Lisboa e diz respeito a Lisboa.

O tempo, porém, é a personagem principal do romance de Isabel Barreno. Por isso, a crónica não é sobre Jorge, mas sobre o tempo, como ele vai esculpindo as personagens e os seus conflitos, como traz a mudança e as rupturas à sociedade, aos desejos, às crenças e aos modos de vida. Cada nova geração parece ser mais filha do tempo do que da geração anterior. O romance traça um percurso não apenas no espaço lisboeta, mas em cerca de setenta anos de história do país e dos indivíduos. A autora capta essa complexidade de Cronos através de uma narrativa não linear, com o recurso à memória dos mais velhos, ao exercício da analepse, à reflexão sobre o sentido de uma vida ou dos acontecimentos sociais e políticos. O tempo trouxe os personagens e o tempo os levará, assim como traz e leva as configurações sociais, culturais e políticas, bem como os desejos, esperanças e ilusões de cada um. O tempo configura o espaço e desenha-lhe as metamorfoses. Ele é o senhor absoluto, que torna tudo em que toca relativo. O romance de Barreno ecoa, de um modo bem lisboeta, esse título magnífico de uma obra de Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse grande Escultor.

domingo, 28 de julho de 2024

Beatitudes (71) Transformações

Mário Eloy, Paisagem, 1930 (Gulbenkian)

A nostalgia das coisas simples e dos mundos tranquilos é um sinal de que no fundo da memória habita um desejo de felicidade e uma ânsia de beatitude, como se toda a vida feliz se inscrevesse em universos onde a complexidade do acontecer foi domada pela autenticidade do que é singelo, onde o cansaço com a inquinação da vida cede perante a candura arduamente conquistada.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Comentários (21)

G. Écalle, La Petite Princesse, Clair-de-Lune, 1904

À noite sobre o campo desolado,
Ela delira em sonhos febris.
Georg Trakl 

A febre dos sonhos que povoam as noites daquelas jovens mulheres perdidas num século passado têm a temperatura da desolação dos campos, onde a vida se desvanece no grande lago do abandono. Quando os corações se agitam, os ventos do Sul trazem um ar seco e a vida cintilante, que uma Primavera sem consciência promete, torna-se num imenso deserto, onde não passam caravanas, nem é sulcado por cavaleiros andantes. Resta o fervilhar dos sonhos na rasura da noite, na solidão do quarto, no leito sempre imaculado.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Ensaio sobre a luz (120)

Manuel Casimiro, La mer, 1979 (Gulbenkian)

Olhemos lentamente as águas do mar, deixemos o olhar deslizar pela inquietação sem fim, até que tudo se torne claro e possamos ver o jogo infinito entre água e luz. Num primeiro tempo, as águas revoltas prendem a luz que sobre elas caem. Depois, cansadas da luminosidade que as habita, vão libertando, para quem sabe ver, a luz agrilhoado no segredo das suas moléculas, no visco dos átomos, no mais fundo e imaterial que há em si.

domingo, 21 de julho de 2024

Cânticos lunares (iii)

Hippolyte Flandrin, View of Rome at Night, 1836

Germinava na noite uma mulher,

luz violeta caindo na pedra da pobreza,

a parca flor sedenta.

O tempo da lua é um oiro baço,

a miragem do metal erigida na estátua,

o mármore incompleto da voz.

 

Vibra a cinza do cetim na ogiva da tarde,

a dor resplandecente da maresia.

É o tempo dos senhores, a fundação do mundo,

o trabalho ensanguentado do grão na boca.

Assim vestido, Salomão colhia os lírios

e abria crateras na sombra da Lua.

 

Entre as pernas da mulher,

um orifício lunar, a taça sangrante de luz,

jorro de água na terra arável.

De dia, as mães colavam os lábios

ao vidro das janelas,

e do perfume das bocas nascia uma névoa,

a cortina da noite no globo do mundo.

 

A Lua é um jacto de água,

um sol cansado de olhar a terra.

Pelas suas mãos descem pálpebras,

colinas de feltro na paisagem.

No centro do planeta, no jardim de ferro,

pulsa a voraz a voz de quem escreve,

a substância do mundo insinuada no coração.


Maio de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sábado, 20 de julho de 2024

Tempos de turbulência

O atentado contra Donald Trump e a patente fragilidade física de Joe Biden torna o candidato republicano praticamente imbatível nas próximas eleições americanas. Parece ser demasiado tarde para os democratas porem no terreno outra candidatura. Isto poderá representar o fim de uma ordem mundial, na qual a aliança entre EUA e a Europa desempenha um importante papel. As vitórias dos trabalhistas, no Reino Unido, e a da Nova Frente Popular, em França, apesar de mitigarem a deriva a que se assiste, não conseguem apagar o fogo que lavra pela Europa. Recorde-se que a situação francesa é, após as eleições, caótica, pois não se vislumbra um caminho de governação estável, e que, em Inglaterra, a eleição do populista Nigel Farage não augura nada de bom.

Há outros dados inquietantes. O comportamento do governo húngaro ameaça constantemente os consensos europeus. Também, ao nível da NATO, a Turquia está longe de ser um parceiro com uma visão geopolítica completamente coincidente com a do mundo ocidental. A vitória, em Novembro, de Donald Trump pode ter efeitos muito desagradáveis para a União Europeia e o espaço ocidental. Por um lado, pode potenciar o crescimento das forças europeias de extrema-direita e os seus projectos soberanistas que, na prática, visam implodir a União tal como a conhecemos, assente na mitigação dos egoísmos nacionais e substituí-la por afirmações soberanistas, as quais, como se viu nos séculos XIX e XX, são, entre si, incompatíveis. Por outro, o fim da NATO deixará a Europa entregue a ela própria e este é um problema muito mais sério do que se supõe.

O fim da NATO, caso aconteça, não fragiliza as potências europeias (todas elas médias e pequenas) apenas perante a Rússia, mas também perante a Turquia, que, por certo, sonhará com a reconstituição do império Otomano e com a liderança do mundo muçulmano perante o mundo que, um dia, foi cristão. A questão que se coloca aos europeus, habituados a níveis elevados de bem-estar, mesmo em Portugal, é se estão dispostos a defender o seu modo de vida, a investir fortemente nas forças armadas, tanto nos recursos materiais como nos recursos humanos. Isso implicará uma clara derrota da extrema-direita e dos seus projectos de afirmação dos egoísmos nacionais e um reforço da União tanto ao nível político e económico, mas, acima de tudo, militar, criando meios de defesa credíveis e com capacidade de dissuasão de potenciais inimigos. A União Europeia provou que funciona bem num clima pacífico e sem ameaças. Falta provar se funciona em tempos de grande turbulência como aqueles que se avizinham.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Rankings de resultados escolares

Mark Wallinger, School - Classroom, 1990

No passado fim-de-semana, foram publicados por diversos órgãos de comunicação social os denominados rankings  das escolas, onde se comparam os desempenhos dos estabelecimentos de ensino, a partir dos resultados dos exames nacionais e da provas finais do 9.º ano. Ora, talvez em busca de diferenciação, cada órgão trata os dados recebidos do Ministério da Educação como lhe apetece e isso conduz a coisas bizarras como escolas que num ranking estão atrás de outras, surjam noutro ranking à frente. Se compararmos os rankings do Público e do Expresso descobrimos que operam a partir de critérios bem distintos. No ensino secundário,  o Público só toma em consideração as classificações das oito disciplinas com mais alunos inscritos, enquanto o Expresso considera todas as provas realizadas, o que é mais sensato. No ensino básico, onde só existem provas de Português e de Matemática, o Público organiza o ranking a partir das médias dos níveis (de 1 a 5, onde cada nível corresponde a determinada pontuação entre 0 e 100), enquanto o Expresso organiza-o pela pontuação obtida pelos alunos nas provas, o que também é mais ajustado à realidade. 

Num concelho pequeno, como o de Torres Novas, isto tem efeitos hilariantes. No ranking do Público, a Escola Artur Gonçalves surge à frente da Escola Maria Lamas tanto no ensino secundário como no básico. Contudo, no ranking do Expresso, a Escola Maria Lamas surge à frente da Escola Artur Gonçalves tanto no secundário como no básico. 

O Ministério de Educação recusa-se, por uma questão ideológica, a organizar os rankings com os resultados das avaliações externas e cede os dados para a comunicação social a organizar como entender. Seria mais sensato, todavia, que o Ministério da Educação organizasse ele próprio um ranking dos resultados, onde todas as provas feitas pelos alunos fossem consideradas. E poderia, com a informação que detém, organizar a informação tendo em conta os dados de contexto. Há quem defenda que não se podem comparar desempenhos entre escolas privadas e públicas, pois os seus alunos pertencem a realidades sociais muito distintas. Ora, é precisamente por causa da diferença de realidades sociais de partida que é importante comparar, de forma fiável, os resultados. Estes dão-nos a medida da desigualdade que a escola pública não está a conseguir combater.

sábado, 13 de julho de 2024

A persistência da memória (30)

L. Kleintjes, Veluwe Interior from artist Jan L. Kleintjes’s atelier in Heerde, 1903

A imagem impede o momento vivido de cair no grande dilúvio da ruína, raptando-o para uma ilha perdida num arquipélago mudo. Assim coagulada, a vida torna-se sombra a pairar no mundo. E essa sombra é tecida com os fios da memória, onde se encontram os gestos, os pensamento, as acções realizadas, as omissões. Enquanto a imagem persistir, esse instante de uma existência é eterno, tem a eternidade da imagem que o salvou do oceano do esquecimento.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Máximas (21)

Francesca Woodman, Rome, 1978
Abandonado na noite, o corpo esquece-se de si e repousa no silêncio cantante, onde o espírito se move sobre a ondulação inquieta do sonho.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Simulacros e simulações (65)

Ana Hatherly, Sideral, 2002 (Gulbenkian)

Meditemos nos astros à deriva no universo. São letras desgarradas dentro da grande nuvem das línguas. Por vezes simulam constelações e tornam-se palavras. Outras pensam-se galáxias e são textos habitados por sistemas planetários e misteriosos buracos negros. 

domingo, 7 de julho de 2024

Cânticos lunares (ii)

David de Almeida, Lua, 1999 (Gulbenkian)

Ilumina a Terra a Lua Nova.

Os segredos presos ao depósito

das horas gastas

na rasura das ruas.

 

A voz dos gatos na noite,

telhados abertos à visitação,

à súplica feroz dos anos,

aos dias de júbilo.

 

Sob o candelabro lunar,

holocaustos, hecatombes,

o propiciatório desejo de luz,

fogo orgânico no peito.

 

Quando a noite se manifesta,

vem uma víscera delgada,

ponto de vista informe,

a mágoa sem nome do mundo.

 

A Lua, em paciente trabalho,

inunda a cabeça, debrua

a língua pelo som das sílabas,

ergue-se na sintaxe do rancor.

 

As crianças aprendem

o valor fátuo da noite,

a escuridão viva do medo,

o húmus no carvão dos campos.

 

O silêncio ecoa ferido

pela queda da parra,

pelo crepitar da macieira,

os dedos embutidos na garganta.

 

Em toda a Terra é noite.

Uma escuridão de cães a latir,

a faca presa na mão,

a cega luz na cegueira da Lua.


Abril de 1993 

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A revolta do Estado-Nação

No último quartel do século XX foi-se formando a convicção de que o Estado-Nação estaria em declínio irrevogável. A ideia de Estado-Nação teve o seu momento fundador no Tratado de Westfália (1648). A soberania nacional tornou-se o princípio organizador do sistema internacional. O Estado-Nação foi consolidado pelas Revoluções americana e francesa, bem como pelo impacto do Iluminismo. Três ideias centrais estavam ligadas ao Estado-Nação, a de soberania popular, a de cidadania e a de identidade nacional. Ora, o aprofundamento da integração europeia intensificou a retórica do fim do Estado-Nação e, de forma sub-reptícia, acentuou uma orientação federalista, que se realizaria através de pequenos passos. Não querer ver na evolução da União Europeia uma das causas, talvez a fundamental, do crescimento e afirmação da extrema-direita é enfiar a cabeça na areia.

Houve duas coisas que os europeístas não perceberam. A primeira diz respeito ao peso da soberania popular, da cidadania e da identidade nacional na consciência colectiva das velhas comunidades políticas. Foi o Estado-Nação que as trouxe e isso representou um mecanismo de reconhecimento do homem comum, que passou a ter uma voz e uma identidade política clara. Ora, o aprofundamento da União Europeia foi sentido, em muitas camadas da população europeia, como uma operação de destruição das soberanias e identidades nacionais e da própria voz dos cidadãos.  A segunda questão está ligada à natureza da extrema-direita, a qual foi percepcionada como a continuação da visão reaccionária daqueles que se opuseram aos valores do Estado-Nação, da Revolução francesa e do Iluminismo, por vezes um misto entre nostálgicos do absolutismo monárquico e das ideias totalitárias do século XX.

O que aconteceu foi que parte dessa extrema-direita tomou como seus os valores da soberania e da identidade nacionais, bem como da cidadania nacional. Enquanto os europeístas trocavam esses valores por valores abstractos, sem história nem relação afectiva com as pessoas, como o da soberania, identidade e cidadania europeias, a extrema-direita fez seus esses velhos valores que, um dia, combateu. Depois, teve ao seu lado a evolução do estado do mundo. A globalização, a crise do subprime e das dívidas soberanas, o problema da imigração e a imposição de uma ordem neoliberal foram adjuvantes que confirmaram, aos olhos de parte significativa dos cidadãos, que os velhos valores que lhes tinham dado voz estavam sob ataque. O resultado é o que se está a ver. Em França, a extrema-direita está às portas do poder. O Estado-Nação revoltou-se.