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1990, o romance Crónica do Tempo, de Maria Isabel Barreno, contém no
título uma dupla referência à temporalidade, na palavra crónica e na palavra
tempo. Como na crónica dos reis, também no romance de Maria Isabel Barreno
existe uma narrativa cronológica onde a personagem principal é o próprio tempo,
ou, melhor, o espírito do tempo, aquilo a que os alemães chamam Zeitgeist.
Não se trata, todavia, de uma reflexão romanesca sobre a natureza do tempo, mas
da observação dos seus efeitos sobre uma família desde os finais da República,
início do Estado Novo e consolidação do poder de Oliveira Salazar até aos anos
oitenta do século XX. Trata-se de uma crónica tanto da conformação que o tempo
impõe aos indivíduos, moldando-lhes as possibilidades e os horizontes,
delimitando-lhes, com rigor, as suas possibilidades de figuração, como do
processo de destruição que esse mesmo tempo traz consigo, uma crónica de
sucessivas derrocadas.
A obra
inicia-se com a descrição de uma entrevista de Ângela, uma jornalista em
reciclagem da sua persona profissional e pública, coisa corrente nos
anos oitenta, a Jorge, um velho empresário retirado do mundo dos negócios,
alguém que veio do nada e se tornou, no tempo da ditadura, um homem de
influência, uma personagem nas classes médias altas de Lisboa. Ela estava a
escrever sobre os homens de negócios que, antes do 25 de Abril, teriam poder. A
desconfiança entre ambos (ao verem-se, ele sentiu malevolência; ela, repulsa),
a incompreensão e os preconceitos que, perante o outro, nascem na mente de cada
um são apenas o sintoma de uma distância geracional, a que o tempo cortou as
pontes para que se pudessem compreender. A função diegética da entrevista é a
de sublinhar, logo no início do romance, o conflito entre gerações moldadas por
tempos diferenciados, o que introduz nas suas relações não apenas o fantasma da
incompreensão ou a sombra de uma comunicação distorcida, mas um princípio irremissível
de incomunicabilidade.
Jorge faz a sua
fortuna em África, mas Isabel Barreno evita o estereótipo do capitalista explorador,
do homem que se aproveitou da submissão dos povos africanos para triunfar na
vida. Pelo contrário, Jorge é, desde o início, um opositor à visão de Salazar
para as colónias, embora não partilhe a visão anticolonial que, a partir de
certa altura, foi a da esquerda. Jorge é uma personagem consistente. Aliás, ele
e a mulher, Manuela, são as duas personagens mais consistentes do romance, mais
que os filhos e os netos, como se eles viessem de um tempo em que as pessoas
tinham uma densidade existencial que as transformações sociais e políticas
vieram rasurar. O casamento entre ambos, provenientes de meios sociais muito
diferentes, ele do bairro popular da Graça, em Lisboa, filho de um porteiro do
Ministério, ela dos meios monárquicos, embora pertencendo a uma família
empobrecida pela incúria do pai, nunca funcionou, mas nunca se dissolveu. Aliás,
é em torno da comemoração dos 50 anos desse casamento que gira parte
substancial da narrativa. Esse fracasso emocional do amor foi compensado pelo
compromisso com a instituição e construção de uma família. Isto surge como contraste
aos casamentos dos filhos, daqueles que se casaram, que são muito mais frágeis
e sujeitos ao espírito do mundo e do tempo.
A autora cruza
a história pessoal e familiar com a história do país e deixa perceber as cicatrizes
que as metamorfoses sociais e políticas deixam nas personagens. Essas
cicatrizes manifestam-se na incomunicabilidade geracional. Jorge e o filho
Diogo têm entre eles uma barreira que parece inultrapassável. Diogo não perdoa
ao pai de o ter livrado, usando a influência pessoal e económica, da guerra
colonial. Essa libertação é sentida como uma pesada herança que lhe limitou a
liberdade de fazer escolhas e de correr riscos por sua própria conta. Diogo é o
típico intelectual oposicionista, mergulhado nas crises académicas e, após o 25
de Abril, vivendo de uma rememoração do que foi e do que deveria ter sido no pós-revolução.
Tanto na geração de Jorge e Manuela, como na dos filhos – embora sentida de
modo diferente por Diogo, Carlota e Rosa –, existe uma consciência de que se
possui uma responsabilidade perante o devir histórico. É essa consciência que
vai desaparecer na geração dos netos. As novas gerações cultivam o pessimismo
perante a história, e o seu horizonte existencial é o hedonismo simbolizado no
culto da noite.
Crónica do Tempo
é um romance marcadamente lisboeta. Lisboa é o cenário dessa história que cruza
o indivíduo e a comunidade, a família e a sociedade. Isabel Barreno, em
diversos passos, torna patente as transformações da capital portuguesa,
transformações que acompanham as transformações políticas, mas também as
metamorfoses da sociedade, a evolução das classes sociais e as mudanças no
espectro cultural. É verdade que, no romance, também África aparece retratada,
na relação de Jorge com esse universo onde fez fortuna. Contudo, na economia da
obra, a cidade de Lisboa é o palco das tensões e dos confrontos familiares, dos
conflitos e das mudanças sociais, das transformações existenciais. É numa rua
de Lisboa que, perante o desabar de uma tempestade, Jorge e Manuela sentem, por
uma única vez, que poderiam ser um casal efectivamente realizado, unido por
laços que ultrapassariam o mero contrato do casamento, um casal ligado pelo
amor. Tudo o que é decisivo no romance passa-se em Lisboa e diz respeito a
Lisboa.
O tempo, porém,
é a personagem principal do romance de Isabel Barreno. Por isso, a crónica não
é sobre Jorge, mas sobre o tempo, como ele vai esculpindo as personagens e os
seus conflitos, como traz a mudança e as rupturas à sociedade, aos desejos, às
crenças e aos modos de vida. Cada nova geração parece ser mais filha do tempo
do que da geração anterior. O romance traça um percurso não apenas no espaço lisboeta,
mas em cerca de setenta anos de história do país e dos indivíduos. A autora capta
essa complexidade de Cronos através de uma narrativa não linear, com o
recurso à memória dos mais velhos, ao exercício da analepse, à reflexão sobre o
sentido de uma vida ou dos acontecimentos sociais e políticos. O tempo trouxe
os personagens e o tempo os levará, assim como traz e leva as configurações
sociais, culturais e políticas, bem como os desejos, esperanças e ilusões de
cada um. O tempo configura o espaço e desenha-lhe as metamorfoses. Ele é o
senhor absoluto, que torna tudo em que toca relativo. O romance de Barreno ecoa,
de um modo bem lisboeta, esse título magnífico de uma obra de Marguerite
Yourcenar, O Tempo, Esse grande Escultor.