domingo, 29 de setembro de 2024

A planície sinuosa (ii)

Salvador Tuset, Alquería del Pí, 1937

Urge quebrar a planície

pela linha cintilante,

pelo remo amarelo

mergulhado na volúpia,

o esplêndido fulgor

da seda branca, cerzida

no ciciar leve das ervas,

o destino de Março.

 

Um campo, um coração

de frutos azedos, sábio

como as raparigas sós,

presas nas tardes antigas,

no cansaço repartido

entre serões indolentes,

o suor frio entre pernas,

o esmalte do silêncio.

 

Conquistava um mar

de figueiras, erva rala

pulsando no coração,

na viagem esperada

ao litoral esquecido,

à embarcação moldada

no pó desfeito, nas pedras

vermelhas da amargura.

 

Uma doença, o lamento

na labareda da noite,

na crueldade cinzenta,

no muro incendiado

pelo nome do restolho.

A letra verde na face,

a chuva de Julho,

o sol e a sombra da voz.

 

A planície de palavras

é uma janela de água,

aberta, vagarosa,

debruçada no relâmpago

exausto pela lavoura

escassa do sentimento.

Exaltado, o fruto declina

no sumo o fragor da vida.


1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]




sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar

Publicado, no Japão, em 1963, o romance O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, insere-se na cruzada do autor, Yukio Mishima, contra o Japão moderno nascido da derrota na segunda Guerra Mundial e da ocupação do país pelas tropas aliadas, encabeçadas pelas dos Estados Unidos, ocupação que durou entre a rendição dos japoneses em 1945 e 1952. Essa rendição e essa ocupação militar foram, para o Japão, muito mais do que um acontecimento político e militar. Representaram a transição do país de um mundo tradicional, estruturado em torno do Imperador e dos valores da aristocracia guerreira, para o mundo moderno, onde esses valores aristocráticos do heroísmo e da honra são substituídos pelos valores burgueses do mundo dos negócios e do conformismo social. É este novo mundo – o qual, aos olhos dos ocidentais, mas também de grande parte dos japoneses, teve um êxito assinalável, transformando o Japão numa potência económica de primeira grandeza – que Mishima descreve e julga cruamente, apesar de uma linguagem poética de grande riqueza, no romance de 1963.

O enredo gira em torno de três personagens. Noboru, um adolescente de 13 anos, Fusako, uma jovem viúva e mãe de Noboru, e Ryuji, um marinheiro mercante com quem Fusako estabelece uma relação amorosa. Estas personagens não são meras representações singulares, mas funcionam, na economia do romance de Mishima, como autênticos arquétipos de atitudes sociais presentes na sociedade japonesa da época. Ryuji representa o homem com valores tradicionais que, até certa altura, aspira a um grande feito heróico, no qual encontraria o sentido da sua existência de homem solitário que atravessa os mares. Fusako, dona de uma boutique de luxo, herdada do marido, representa a mulher moderna, forte e independente, um modelo do espírito burguês triunfante, ao mesmo tempo competente nos negócios e tocada pela sentimentalidade afectiva, também ela marcadamente burguesa. Em Noboru, por seu turno, simboliza-se uma nova geração brilhante e cruel, destituída da vulnerabilidade do sentimento e cultora de uma visão distorcida da realidade. Assume os valores tradicionais do heroísmo, mas já sem o suporte da sociedade tradicional que lhes dava sentido, o que a conduz a uma visão niilista do mundo.

O estatuto de Ryuji é marcado por uma equivocidade inicial que será o fundamento do desenvolvimento da personagem ao longo do romance. Ryuji, ele que é um homem do mar, habituado à solidão das viagens marítimas, aspira a um grande gesto, a um acto heróico que dê sentido à sua existência. Contudo, a oportunidade desse gesto decisivo nunca lhe aparece disponível no horizonte existencial. Na verdade, ele não é um marinheiro militar em tempo de guerra, onde poderia haver lugar para a coragem e a heroicidade, mas um marinheiro mercante, um agente do mundo burguês cuja função é o prosaico transporte de mercadorias e não a realização de qualquer acto que o sublinhe como homem de honra e o nobilite aos seus próprios olhos. O encontro com Fusako funciona como um revelador da inadequação do seu projecto existencial. Nasce em si o desejo de trocar a vida no mar pela vida mais segura em terra, a integração numa família burguesa. Esta transição de um espírito heróico para um espírito conformista e burguês não deve ser lido apenas como uma metamorfose subjectiva de Ryuji, mas como o sintoma de que esse mundo da honra e da glória fundada na heroicidade já não existia. A frustração de Ryuji com o seu destino e a desistência da heroicidade é o resultado de uma transformação na ordem social, marcada pela decadência e morte dos valores aristocráticos e a vitória, dinamizada pela presença americana, dos valores burgueses, que são também, aos olhos de Yukio Mishima, valores femininos.

Fusako, a bela viúva, é aquela que vai dinamizar no marinheiro a tomada de consciência da real situação em que vive. A atracção que ela sobre ele exerce é também o apelo que a terra, enquanto símbolo de uma vida tranquila e sólida, lhe começa a dirigir. Ela é o símbolo de uma nova sociedade. Independente e cheia de sucesso profissional, mas também uma mulher em busca da dimensão afectiva, onde os sentimentos são reconhecidos e precisam de espaço existencial para se manifestarem. Esta dupla vertente de Fusako – a competência empresarial e a sentimentalidade feminina ou uma certa vulnerabilidade emocional – são também um retrato, na perspectiva tradicionalista de Mishima, do mundo burguês vitorioso no Japão. Fusako, também ela, não é apenas o retrato de uma mulher singular, mas a radiografia da sociedade burguesa do pós-guerra. Ela é a manifestação plena dos novos valores, os quais, depreende-se da leitura do romance, representam uma queda. Do Japão heróico, da sociedade onde o risco de vida e o sentido da honra dão uma orientação pelo menos à elite aristocrática, passa-se a uma sociedade que procura a estabilidade sempre necessária ao mundo dos negócios.

A personagem central do romance é, contudo, Noboru, o filho de Fusako. Ele, juntamente com os seus amigos, representa a nova geração que não se reconhece no mundo burguês e sentimental de Fusako e já não possui o respaldo de uma tradição heróica que lhe dê uma orientação. Noboru e os seus amigos são retratados, do ponto de vista intelectual, com extremamente precoces, mas emocionalmente frios, destituídos de qualquer tipo de sentimentalidade convencional, capazes da mais pura crueldade. Noboru e os amigos representam os velhos valores, mas sem o espaço onde estes poderiam ser exercidos, o que os torna violentos, com uma enorme vontade de poder e controlo dos outros. A princípio Noboru entusiasma-se com a presença do marinheiro, vê nele o homem autêntico que vive no mar, o símbolo de uma liberdade absoluta e dos grandes perigos. No entanto, a relação afectiva de Ryuji com a sua mãe, assim como a equação de deixar a vida no mar e trocá-la por uma vida estável e de conforto, invertem a visão de Noboru sobre o marinheiro. É visto, tanto por ele como pelos seus amigos, como um traidor que deve ser punido com a pena que espera todos os traidores.

Yukio Mishima serve-se de uma prosa poética com grande poder evocativo para tomar posição sobre o mundo em que vive. Um mundo onde se dá uma desprezível vitória do feminino – e é assim que Norobu vê a mãe, como alguém desprezível por ceder à dimensão sentimental – sobre um outro mundo fundado nos valores aristocráticos da honra e do heroísmo. O pior e o mais digno de punição é aquele que pertencendo à velha ordem cede à nova e se acomoda nela, como é o caso do marinheiro. Aqueles que conhecem os valores tradicionais e que um dia aspiraram à honra dos grandes feitos e agora se acomodam são traidores. Mishima, apesar desta visão crítica do novo Japão, não alimenta, no romance, qualquer expectativa de um retorno. A nova geração, mesmo que tocada pelo desprezo da moral convencional e do estilo de vida burguês, centra-se numa visão distorcida da realidade e da própria tradição. Almeja uma liberdade absoluta, assente na pura crueldade e na ausência de quaisquer outros valores, que não conduzirá a mais nada do que a uma violência sem sentido.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Lobos e homens

Charles M. Russell, Roping a Wolf, 1904

O estatuto de conservação do lobo vai sofrer, na União Europeia, uma diminuição de grau. Vai passar de espécie estritamente protegida para espécie protegida. Cai o estritamente. Isto acontece, segundo notícia do Público, por influência do lobby agrícola. No comunicado da associação que representa os agricultores de diversos países, incluindo Portugal, lê-se: Chegou a altura de introduzir as alterações correctas para garantir que esta população (a dos lobos) seja gerida. A afirmação, com outras, faz parte da retórica usada no conflito com as associações ambientalistas. Contudo, é mais do que isso, pois esse conflito entre agricultores e ambientalistas assenta numa visão também ela conflitual da Terra. 

Tendencialmente, os ambientalistas, ou parte deles, vêem as espécies num jogo de equilíbrios e de harmonização na ocupação da Terra, onde a humana não terá qualquer prerrogativa. O animal racional é um animal entre outros e deve cingir-se a esse estatuto. Ora, A ideia de gestão introduzida no comunicado do lobby agrícola diz-nos uma outra coisa. O homem é o gestor da Terra. Deve geri-la segundo os interesses do accionista - isto é, do próprio homem - e todas as espécies devem estar sob estrita gestão do homem. É a própria razão que impele o homem ao domínio gestionário da Terra, numa racionalização de recursos, segundo os seus interesses. Imaginar que a espécie humana, em algum momento, vai abdicar desta sua vantagem competitiva em relação às outras espécies é enganar-se acerca de quem é o homem.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Ensaio sobre a luz (122)

Fernando Calhau, sem título #634, 1965 (Gulbenkian)

A combustão interior das trevas torna-se em incêndio luminoso, uma luz que se propaga pela vastidão do mundo, descobrindo montanhas e florestas, o perigo dos oceanos, a brancura das neves, a planura das campinas e, como uma memória dilatada pelo exercício, o júbilo ocioso das cidades.

sábado, 21 de setembro de 2024

A dimensão intelectual da extrema-direita

Quando se avalia o crescimento da extrema-direita, raramente se dá atenção à dimensão cultural. Esta é rasurada de imediato pois considera-se que quem apoia o populismo radical é, por natureza, inculto, crente em teorias da conspiração e se, por um acaso improvável, consegue distinguir o verdadeiro do falso, é para escolher o falso e escarnecer o verdadeiro. Tudo isso se sintetiza nas palavras de Hilary Clinton, na corrida presidencial de 2016, quando afirmou que metade dos apoiantes de Donald Trump eram deploráveis. Esta visão das forças de extrema-direita, mesmo que muitos dos seus apoiantes tenham crenças deploráveis e níveis culturais baixíssimos, esconde uma outra realidade que tanto liberais como socialistas ignoram ou não sabem lidar com ela.

Nas últimas décadas, emergiu com alguma força, a vários níveis institucionais, um grupo significativo de intelectuais de extrema-direita, que desenvolvem um trabalho sistemático no âmbito das artes, da História, das ciências sociais e da Filosofia, trabalho que alimenta as guerras culturais que a militância leva a efeito, muitas vezes pela boca de agentes políticos ignorantes, contra a cultura influenciada pela esquerda e pelas elites liberais. Existe uma recuperação intelectual dos pensadores da contra-revolução francesa como Joseph de Maistre e Louis de Bonald, do ultraconservador Donoso Cortés, assim como do importante filósofo político alemão Carl Schmitt, um autor pelo menos tão comprometido com o nazismo quanto Martin Heidegger, assim como de Oswald Spengler, do romancista Ernst Jünger ou do poeta Stephan George.

Este movimento intelectual defende a importância tanto dos preconceitos como da discriminação e, acima de tudo, visa desconstruir duas ideias centrais provenientes do Iluminismo e da Revolução Francesa. Em primeiro lugar, a ideia de igualdade. Não se trata de um ataque a uma concepção ingénua de igualitarismo, mas de um ataque sofisticado à ideia de que todos somos iguais perante a lei, a igualdade básica nascida da laicização da ideia cristã de igualdade perante Deus. Esta desconstrução da importância da igualdade perante a lei, um assalto às crenças da esquerda e da direita liberal, é um passo para a desconstrução de uma outra ideia fundamental, a da liberdade. Se não somos todos iguais, como justificar que todos tenhamos as mesmas liberdades? Quando se observa o comportamento da militância raramente se compreende que por detrás existe um pensamento conceptualmente estruturado e que trabalha para implodir duas das nossas crenças sociais e políticas mais fundamentais.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A planície sinuosa (i)

Jorge Martins, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Insinua-se uma árvore no limiar da linguagem,

um esforço exacto na tremura do horizonte.

A casa sob as folhas é uma fonte de pontos

e linhas, uma arquitectura lábil,

o nascimento do silêncio na poeira da planície.

 

Da cruz dilacerada pelos ventos,

germinam pontos cardeais,

vozes no fundo da vinha,

luas prisioneiras do vento entre ramos.

 

Se o rosto se cerra na areia das mãos,

insectos crepitam na escuridão das órbitas,

no mundo proscrito, a seda póstuma da tarde.

 

A planície desfolha-se em navios,

nuvens de cinza sobre os lados do Ocidente.

A rapariga traz água pelo cântaro,

a distância insinuada na sombra das searas.

É uma rapariga aberta à luz, a túnica pelo chão.

 

Os homens sentam-se na madeira da memória,

pensam na rapariga perdida na espuma da paisagem,

um travo de cerveja tecido no lúpulo do olhar.


Nenhuma espiga oscila na pedra do desejo,

na praia coberta de veludo.

Nos olhos dos homens, nascem planícies

onde raparigas desaparecem na luz do dia.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Julien Green, Moïra


Julien Green (1900-1998) foi um escritor norte-americano de expressão francesa. Converteu-se em 1916, após a morte da mãe, de orientação protestante, ao catolicismo. A sua temática romanesca está ligada às grandes questões colocadas pela fé. O romance de 1950 Moïra não foge a esse interesse central do autor. O protagonista, Joseph Day, é um jovem recém-entrado na Universidade, vindo de um mundo rural, educado num estrito espírito protestante, onde o pecado, a culpa e a necessidade de redenção têm um papel central na existência do crente. A obra é dinamizada pelo conflito entre natureza e fé. Deslocado do ambiente protegido da ruralidade e da obediência quase cega à tradição, vê-se confrontado com um ambiente que está muito longe daquele onde se sente em casa, um ambiente em que os valores religiosos parecem ter pouco sentido. É neste universo estranho e adverso que o conflito entre a natureza, a sua natureza, e a fé, aquela que o move e dá sentido à sua existência, se desencadeia.

A estratégia narrativa de Green é marcada por uma deslocação da personagem central, Joseph Day, de um mundo para outro. É nesse outro mundo, muito diferente daquele onde viveu a infância e adolescência, no qual recebeu os valores que o orientam e formou as suas crenças religiosas e sociais, que aquilo que ele é vai ser posto à prova. Na economia romanesca, a universidade, a grande cidade e mesmo a casa onde se vai hospedar, e onde se hospedam outros estudantes, são espaços que representam, cada um à sua maneira, provações existenciais, partes de um universo onde ele se sente como um estranho, pois nesses lugares a cultura, os valores e as crenças são completamente diferentes dos seus. Há, na construção romanesca de Green, um exercício experimental que tem por finalidade descobrir como é que um jovem protestante, ancorado naquilo a que hoje se chamaria fundamentalismo religioso, se comporta num espaço completamente distinto daquele de onde veio e no qual adquiriu e consolidou a fé. Na verdade, é um exercício onde um Green maduro, na casa dos cinquenta anos, interroga o que poderia ter sido caso permanecesse protestante.

Como se irá comportar a natureza de Joseph Day quando deslocada do espaço onde a fé se gerou e que, pela própria estrutura social, a protegia? Esta natureza é, claro, o corpo e neste, para além e acima da força física, o sexo. É a sexualidade a mola dinamizadora da acção narrativa. Melhor é o conflito entre a libido, as pulsões sexuais, e um desejo de pureza sentido como caminho de redenção, de conquista do paraíso, de salvação da alma. O romance organiza-se através de um conflito entre dois desejos, o que impele o corpo para outro corpo e o que impele a alma para outra dimensão. O conflito nasce da incompatibilidade que as grandes religiões monoteístas determinam entre a consumação de ambos os desejos. O desejo de imortalidade impõe a repressão do desejo sexual. A consumação do desejo sexual arrasta a perdição da imortalidade.

O romance apresenta um conjunto de conflitos e alianças secundários, cuja finalidade é testar e preparar Joseph Day para o encontro com o destino. E o destino é Moïra, a filha adoptiva da senhoria, que se encontra, do ponto de vista religioso e moral, num lado completamente oposto ao de Day. Julien Green tece, com esta personagem, uma complexa trama de simbolizações que se sobrepõem e intensificam. Moïra é, como o autor referiu, um nome irlandês, o equivalente a Maria. Contudo, no romance, Moïra é uma Eva tentadora. Enquanto na tradição do cristianismo Maria é uma segunda Eva, mas uma Eva reparadora, a Maria (Moïra) do romance representa uma regressão a essa Eva primitiva que tentou Adão e com ele se perdeu. A ambiguidade da personagem é interessante, pois era possível que essa Moïra que tenta Joseph Day e o perde, perdendo-se com ele, fosse também ela reparadora, integrando-o num mundo estranho, cujas regras ele desconhecia e temia. Contudo, a ambiguidade de Moïra é mais ampla, pois, na mitologia grega, Moïra representava o destino, representava uma lei que nem os homens nem os deuses podiam transgredir e aos se deveriam submeter. E Moïra foi, de facto, o destino de Day.

No entanto, essa Moïra que o tenta, que lhe desperta a libido, que o ameaça arrastar para a perdição, não é mais do que uma projecção da sua própria natureza reprimida e recalcada na sexualidade. Nessa rapariga que o atrai condensa-se aquilo que ele é, um homem dotado de sexualidade e que, na verdade, não é capaz de compatibilizar a violência da libido desencadeada pelo objecto sexual e a violência repressiva trazida pela fé, pelos códigos de conduta que, segundo a instituição religiosa, asseguram o paraíso eterno. Como acontece numa guerra civil, também o resultado do conflito interior que se acendeu em Joseph Day, ao ser deslocado do seu espaço natural para um espaço adverso, é a destruição que, curiosamente, como também acontece após tremendas guerras civis, pode abrir ainda um caminho para uma redenção, uma outra redenção, um outro destino.

domingo, 15 de setembro de 2024

Nocturnos 122

Henry Moore, 14. Moonlight Fall, 1973 (Gulbenkian)

Quase cegos, os deuses da noite suplicam por luz. Então, a Lua derrama os raios que, como um Prometeu astral, roubou ao Sol e derrama-os por campos e cidades, para que essas divindades nocturnas não se deixem tomar pelo desespero e não enlouqueçam os sonhos dos homens.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Um universo mental perturbante

Imagem daqui

Não é perturbante que um dos argumentos mais sonoros de Donald Trump seja a de os imigrantes andarem a comer animais de estimação. Cães, gatos e, agora, gansos (aqui). No fundo, isso está de acordo com o seu universo mental. Perturbante é que isso não leve a uma debandada radical dos seus apoiantes. Há um povo trumpiano disponível para crer seja no que for que venha do seu candidato. Mesmo quando há deserções do campo republicano, como a do Procurador-Geral Alberto Gonzales, conselheiro presidencial do republicano George W. Bush no primeiro mandato deste, essas situam-se nas elites do partido e em pessoas que percebem claramente que Trump é uma ameaça ao Estado de direito (aqui). O Estado de direito, uma das grandes conquistas civilizatórias do Ocidente, não é coisa que mobilize os eleitores republicanos para a sua defesa. O que os preocupa mesmo é que, para além de cães e gatos, também os gansos estejam na mira de imigrantes haitianos. Não tarda, ainda comerão vacas, porcos, galinhas e patos.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O culto da insurgência

Imagem obtida por recuso ao ChatGPT

Em artigo, no Público, de comentário ao debate entre Kamala Harris e Donald Trump, Francisco Mendes da Silva propõe um expressivo título: Harris pareceu presidente; mas Trump permaneceu insurgente. O título é interessante não tanto por Kamala Harris, mas porque toca numa questão central da vida política em muitos países do chamado bloco ocidental e democrático. 

A direita conservadora e anti-revolucionária está a transformar-se numa direita cada vez menos apostada na defesa do Estado de direito e das instituições democráticas, e mais apostada na insurgência, criando uma mitologia romântica de declínio dos valores tradicionais e de libertação dos oprimidos pela liberdade. 

A liberdade é sentida como uma ameaça, pois ela impede esses grupos de imporem as suas crenças e regras de vida aos que não crêem nelas. E essa impossibilidade  de controlar vida e crenças de outros é emocionalmente sentida como uma opressão insuportável. Daí a retórica da libertação e uma cultura de insurgência, sempre disposta a desestruturar as instituições da liberdade.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Poemas para uma Terra Interior (iii)

Mário de Oliveira, Terras de Tabernas, 1967 (Gulbenkian)

A terra, uma frutuosa ermida,

erigida na secura dos mundos.

Os grãos de poeira são vento,

água na pia baptismal da vida.

 

Suspira Setembro pela chuva.

O mar subterrâneo inunda de luz

o centro vazio, cavernas vivas,

a constelação desfolhada do fogo.

 

No interior dos dias, cavalgam

bravios cavalos presos na noite,

vergados ao peso da ardósia.

 

Rochas brancas, cinzas vermelhas,

bandeiras arvoradas nas trevas,

o luto vivo no coração da terra.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sábado, 7 de setembro de 2024

Irène Némirovsky, A Presa


Irène Némirorovsky (1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social. Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito cartesiano.

Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.

Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa.  É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.

O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.

A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.

O título do romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa. Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é, cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo, em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Política e economia


A indicação, pelo primeiro-ministro, de Maria Luís Albuquerque para comissária europeia foi recebida com largos encómios, por parte dos apoiantes do governo, ou por críticas mais ou menos severas, por parte das oposições. Na verdade, a pessoa indicada é irrelevante, pois estará submetida a uma lógica política que não é decidida por ela.  Contudo, Maria Luís Albuquerque, como a generalidade dos políticos europeus, da área da governação, à direita e à esquerda, representa uma visão da política perigosa, visão dominante no mundo ocidental e que está na génese das dificuldades pelas quais o Ocidente passa nesta hora. O que está em jogo é a negação da autonomia da esfera política e a sua submissão à esfera da economia. Esta visão é partilhada, embora de modo diferente, tanto por liberais como por marxistas.

Por que razão esta visão é perigosa e está na base nas nossas actuais dificuldades? Para o percebermos é necessário compreender o que é a dimensão política. Para que serve a política? Serve para assegurar a existência de uma certa comunidade tanto no espaço (no seu território) como no tempo (evitar que ela não desapareça). A acção política visa apenas isto. Não se propõe salvar as almas das pessoas, ou torná-las moralmente melhores, nem, sequer, tornar as pessoas mais prósperas. A política tem por objectivo uma questão existencial. A existência no espaço e no tempo de uma comunidade humana com identidade própria que a diferencia de outras comunidades. Por exemplo, Portugal. As outras dimensões, apesar de importantes, só são relevantes como instrumentos do desígnio político e devem estar subordinadas a este.

Os problemas que assolam a União Europeia estão relacionados com isto. Ela submeteu a política aos interesses económicos. Os países europeus abdicaram da sua soberania não para uma entidade política superior como a União Europeia, mas para os denominados mercados. É esta submissão da política à economia que não permitiu aos países europeus perceber o caminho que a Rússia estava a trilhar e a onde ele iria conduzir. Também os desarmou perante os interesses das grandes multinacionais, que sobrepõem os seus interesses privados aos das comunidades. É patética a impotência dos países perante os gigantes tecnológicos e as redes sociais. A submissão da política à economia está a destruir as nações europeias e a dar espaço à extrema-direita. Se o projecto marxista é acabar com a dimensão política, o liberal, onde se insere Maria Luís Albuquerque, é reduzi-la ao mínimo, submetendo-a aos mercados. O primeiro é utópico, o segundo é suicidário. 

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Um populismo de esquerda, na Alemanha


Tem sido dada muita atenção, e justificada, aos resultados eleitorais da AfD, um partido alemão de extrema-direita, nas eleições dos estados da Turíngia e da Saxónia. Contudo, o BSW, do pólo oposto, não é menos interessante. É um partido centrado na figura de Sahra Wagenknecht, o que não é muito habitual em partidos de esquerda e de extrema-esquerda, que tendem a salientar como marca a ideologia e não tanto os chefes, mesmo quando, chegados ao poder, se entregam ao culto da personalidade. Isto faz lembrar os partidos de extrema-direita centrados em figuras com Le Pen em França, Ventura em Portugal, Meloni em Itália, etc., mas de um forma ainda mais personalizada, com o nome da dirigente máxima a figurar no nome do partido. Estamos perante um populismo de esquerda que, curiosamente, também é anti-imigração e, ainda por cima, contra a ajuda à Ucrânia e as sanções à Rússia. A Alemanha parece estar a passar por uma forte convulsão política, enquanto o SPD (centro-esquerda), o principal partido do governo, se vai afundando.

domingo, 1 de setembro de 2024

Um longo estertor


Assiste-se, no mundo ocidental, a uma crescente polarização política, que se traduz tanto na perplexidade dos cidadãos como no aumento da rispidez e da rudeza do confronto entre partidos. Não são poucos os que têm a sensação de que se vive no fim de um mundo, aquele em que a Europa e os seus valores eram dominantes. Olhar para a polarização política e social é fundamental para perceber o que se está a passar. Na verdade, estamos perante uma situação tripolar, a qual existe há muito, embora sem os actuais contornos belicosos. Temos um pólo conservador, cada vez mais encostado à extrema-direita, um pólo liberal, que dominou, de modo radical, o mundo ocidental desde a queda do Muro de Berlim, e um pólo socialista, que sobreviveu a essa queda e encontrou outros caminhos de afirmação. Todos estes pólos têm a sua origem última no cristianismo.

O pólo conservador sublinha cada vez mais fortemente a tradição e a hierarquia, uma clara herança da Igreja Católica, onde o papel tanto da tradição apostólica como o da hierarquia eclesiástica são centrais. O pólo liberal salienta as consequências do livre-arbítrio (a liberdade de escolha) defendido pelos grandes filósofos cristãos e parte integrante da doutrina da Igreja. O pólo socialista destaca a ideia de igualdade, a qual provém da concepção cristã de que todos os homens são iguais perante Deus. As três grandes ideologias políticas têm as suas raízes fundamentais no mesmo lugar, o cristianismo. Essas concepções de tradição, hierarquia, liberdade e igualdade existiam em harmonia dentro de um corpo que as estruturava e lhes dava sentido. Ora, a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa estilhaçaram essa unidade e harmonia. Uma das consequências é a transformação dessas ideias em ideologia política secular.

As ideias irmãs, agora politicamente estruturadas, começam a separar-se e a propor modos de vida cada vez mais estranhos uns aos outros. A polarização política, a que assistimos no Ocidente, está ligada a estes projectos de vida e de organização política que estão a perder o contacto entre si, radicalizando-se. O que estamos a assistir é a um período de agonia da influência das ideias centrais do cristianismo romano na política e na sociedade. É preciso perceber, também, que este cristianismo romano não é o cristianismo originário, mas aquele que foi produzido pela fusão da religião cristã com o Império Romano, tendo este, de alguma forma, sobrevivido durante séculos, através da Igreja, à sua própria queda. As convulsões políticas actuais ainda são um reflexo desse estertor, que parece sem fim, do Império Romano e do cristianismo que com ele se fundiu.