sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Um universo mental perturbante

Imagem daqui

Não é perturbante que um dos argumentos mais sonoros de Donald Trump seja a de os imigrantes andarem a comer animais de estimação. Cães, gatos e, agora, gansos (aqui). No fundo, isso está de acordo com o seu universo mental. Perturbante é que isso não leve a uma debandada radical dos seus apoiantes. Há um povo trumpiano disponível para crer seja no que for que venha do seu candidato. Mesmo quando há deserções do campo republicano, como a do Procurador-Geral Alberto Gonzales, conselheiro presidencial do republicano George W. Bush no primeiro mandato deste, essas situam-se nas elites do partido e em pessoas que percebem claramente que Trump é uma ameaça ao Estado de direito (aqui). O Estado de direito, uma das grandes conquistas civilizatórias do Ocidente, não é coisa que mobilize os eleitores republicanos para a sua defesa. O que os preocupa mesmo é que, para além de cães e gatos, também os gansos estejam na mira de imigrantes haitianos. Não tarda, ainda comerão vacas, porcos, galinhas e patos.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O culto da insurgência

Imagem obtida por recuso ao ChatGPT

Em artigo, no Público, de comentário ao debate entre Kamala Harris e Donald Trump, Francisco Mendes da Silva propõe um expressivo título: Harris pareceu presidente; mas Trump permaneceu insurgente. O título é interessante não tanto por Kamala Harris, mas porque toca numa questão central da vida política em muitos países do chamado bloco ocidental e democrático. 

A direita conservadora e anti-revolucionária está a transformar-se numa direita cada vez menos apostada na defesa do Estado de direito e das instituições democráticas, e mais apostada na insurgência, criando uma mitologia romântica de declínio dos valores tradicionais e de libertação dos oprimidos pela liberdade. 

A liberdade é sentida como uma ameaça, pois ela impede esses grupos de imporem as suas crenças e regras de vida aos que não crêem nelas. E essa impossibilidade  de controlar vida e crenças de outros é emocionalmente sentida como uma opressão insuportável. Daí a retórica da libertação e uma cultura de insurgência, sempre disposta a desestruturar as instituições da liberdade.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Poemas para uma Terra Interior (iii)

Mário de Oliveira, Terras de Tabernas, 1967 (Gulbenkian)

A terra, uma frutuosa ermida,

erigida na secura dos mundos.

Os grãos de poeira são vento,

água na pia baptismal da vida.

 

Suspira Setembro pela chuva.

O mar subterrâneo inunda de luz

o centro vazio, cavernas vivas,

a constelação desfolhada do fogo.

 

No interior dos dias, cavalgam

bravios cavalos presos na noite,

vergados ao peso da ardósia.

 

Rochas brancas, cinzas vermelhas,

bandeiras arvoradas nas trevas,

o luto vivo no coração da terra.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sábado, 7 de setembro de 2024

Irène Némirovsky, A Presa


Irène Némirorovsky (1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social. Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito cartesiano.

Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.

Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa.  É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.

O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.

A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.

O título do romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa. Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é, cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo, em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Política e economia


A indicação, pelo primeiro-ministro, de Maria Luís Albuquerque para comissária europeia foi recebida com largos encómios, por parte dos apoiantes do governo, ou por críticas mais ou menos severas, por parte das oposições. Na verdade, a pessoa indicada é irrelevante, pois estará submetida a uma lógica política que não é decidida por ela.  Contudo, Maria Luís Albuquerque, como a generalidade dos políticos europeus, da área da governação, à direita e à esquerda, representa uma visão da política perigosa, visão dominante no mundo ocidental e que está na génese das dificuldades pelas quais o Ocidente passa nesta hora. O que está em jogo é a negação da autonomia da esfera política e a sua submissão à esfera da economia. Esta visão é partilhada, embora de modo diferente, tanto por liberais como por marxistas.

Por que razão esta visão é perigosa e está na base nas nossas actuais dificuldades? Para o percebermos é necessário compreender o que é a dimensão política. Para que serve a política? Serve para assegurar a existência de uma certa comunidade tanto no espaço (no seu território) como no tempo (evitar que ela não desapareça). A acção política visa apenas isto. Não se propõe salvar as almas das pessoas, ou torná-las moralmente melhores, nem, sequer, tornar as pessoas mais prósperas. A política tem por objectivo uma questão existencial. A existência no espaço e no tempo de uma comunidade humana com identidade própria que a diferencia de outras comunidades. Por exemplo, Portugal. As outras dimensões, apesar de importantes, só são relevantes como instrumentos do desígnio político e devem estar subordinadas a este.

Os problemas que assolam a União Europeia estão relacionados com isto. Ela submeteu a política aos interesses económicos. Os países europeus abdicaram da sua soberania não para uma entidade política superior como a União Europeia, mas para os denominados mercados. É esta submissão da política à economia que não permitiu aos países europeus perceber o caminho que a Rússia estava a trilhar e a onde ele iria conduzir. Também os desarmou perante os interesses das grandes multinacionais, que sobrepõem os seus interesses privados aos das comunidades. É patética a impotência dos países perante os gigantes tecnológicos e as redes sociais. A submissão da política à economia está a destruir as nações europeias e a dar espaço à extrema-direita. Se o projecto marxista é acabar com a dimensão política, o liberal, onde se insere Maria Luís Albuquerque, é reduzi-la ao mínimo, submetendo-a aos mercados. O primeiro é utópico, o segundo é suicidário. 

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Um populismo de esquerda, na Alemanha


Tem sido dada muita atenção, e justificada, aos resultados eleitorais da AfD, um partido alemão de extrema-direita, nas eleições dos estados da Turíngia e da Saxónia. Contudo, o BSW, do pólo oposto, não é menos interessante. É um partido centrado na figura de Sahra Wagenknecht, o que não é muito habitual em partidos de esquerda e de extrema-esquerda, que tendem a salientar como marca a ideologia e não tanto os chefes, mesmo quando, chegados ao poder, se entregam ao culto da personalidade. Isto faz lembrar os partidos de extrema-direita centrados em figuras com Le Pen em França, Ventura em Portugal, Meloni em Itália, etc., mas de um forma ainda mais personalizada, com o nome da dirigente máxima a figurar no nome do partido. Estamos perante um populismo de esquerda que, curiosamente, também é anti-imigração e, ainda por cima, contra a ajuda à Ucrânia e as sanções à Rússia. A Alemanha parece estar a passar por uma forte convulsão política, enquanto o SPD (centro-esquerda), o principal partido do governo, se vai afundando.

domingo, 1 de setembro de 2024

Um longo estertor


Assiste-se, no mundo ocidental, a uma crescente polarização política, que se traduz tanto na perplexidade dos cidadãos como no aumento da rispidez e da rudeza do confronto entre partidos. Não são poucos os que têm a sensação de que se vive no fim de um mundo, aquele em que a Europa e os seus valores eram dominantes. Olhar para a polarização política e social é fundamental para perceber o que se está a passar. Na verdade, estamos perante uma situação tripolar, a qual existe há muito, embora sem os actuais contornos belicosos. Temos um pólo conservador, cada vez mais encostado à extrema-direita, um pólo liberal, que dominou, de modo radical, o mundo ocidental desde a queda do Muro de Berlim, e um pólo socialista, que sobreviveu a essa queda e encontrou outros caminhos de afirmação. Todos estes pólos têm a sua origem última no cristianismo.

O pólo conservador sublinha cada vez mais fortemente a tradição e a hierarquia, uma clara herança da Igreja Católica, onde o papel tanto da tradição apostólica como o da hierarquia eclesiástica são centrais. O pólo liberal salienta as consequências do livre-arbítrio (a liberdade de escolha) defendido pelos grandes filósofos cristãos e parte integrante da doutrina da Igreja. O pólo socialista destaca a ideia de igualdade, a qual provém da concepção cristã de que todos os homens são iguais perante Deus. As três grandes ideologias políticas têm as suas raízes fundamentais no mesmo lugar, o cristianismo. Essas concepções de tradição, hierarquia, liberdade e igualdade existiam em harmonia dentro de um corpo que as estruturava e lhes dava sentido. Ora, a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa estilhaçaram essa unidade e harmonia. Uma das consequências é a transformação dessas ideias em ideologia política secular.

As ideias irmãs, agora politicamente estruturadas, começam a separar-se e a propor modos de vida cada vez mais estranhos uns aos outros. A polarização política, a que assistimos no Ocidente, está ligada a estes projectos de vida e de organização política que estão a perder o contacto entre si, radicalizando-se. O que estamos a assistir é a um período de agonia da influência das ideias centrais do cristianismo romano na política e na sociedade. É preciso perceber, também, que este cristianismo romano não é o cristianismo originário, mas aquele que foi produzido pela fusão da religião cristã com o Império Romano, tendo este, de alguma forma, sobrevivido durante séculos, através da Igreja, à sua própria queda. As convulsões políticas actuais ainda são um reflexo desse estertor, que parece sem fim, do Império Romano e do cristianismo que com ele se fundiu.