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sexta-feira, 13 de setembro de 2024
Um universo mental perturbante
quarta-feira, 11 de setembro de 2024
O culto da insurgência
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segunda-feira, 9 de setembro de 2024
Poemas para uma Terra Interior (iii)
Mário de Oliveira, Terras de Tabernas, 1967 (Gulbenkian) |
A
terra, uma frutuosa ermida,
erigida
na secura dos mundos.
Os
grãos de poeira são vento,
água
na pia baptismal da vida.
Suspira
Setembro pela chuva.
O
mar subterrâneo inunda de luz
o
centro vazio, cavernas vivas,
a
constelação desfolhada do fogo.
No
interior dos dias, cavalgam
bravios
cavalos presos na noite,
vergados
ao peso da ardósia.
Rochas
brancas, cinzas vermelhas,
bandeiras
arvoradas nas trevas,
o
luto vivo no coração da terra.
1993
sábado, 7 de setembro de 2024
Irène Némirovsky, A Presa
Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.
Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa. É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.
O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.
A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.
O título do
romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa.
Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é,
cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a
transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo,
em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o
predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por
exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque
torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu
ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de
sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa
insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na
afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da
existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.
quinta-feira, 5 de setembro de 2024
Política e economia
Por que razão esta visão é perigosa e está na base nas nossas actuais dificuldades? Para o percebermos é necessário compreender o que é a dimensão política. Para que serve a política? Serve para assegurar a existência de uma certa comunidade tanto no espaço (no seu território) como no tempo (evitar que ela não desapareça). A acção política visa apenas isto. Não se propõe salvar as almas das pessoas, ou torná-las moralmente melhores, nem, sequer, tornar as pessoas mais prósperas. A política tem por objectivo uma questão existencial. A existência no espaço e no tempo de uma comunidade humana com identidade própria que a diferencia de outras comunidades. Por exemplo, Portugal. As outras dimensões, apesar de importantes, só são relevantes como instrumentos do desígnio político e devem estar subordinadas a este.
Os problemas
que assolam a União Europeia estão relacionados com isto. Ela submeteu a
política aos interesses económicos. Os países europeus abdicaram da sua
soberania não para uma entidade política superior como a União Europeia, mas
para os denominados mercados. É esta submissão da política à economia que não
permitiu aos países europeus perceber o caminho que a Rússia estava a trilhar e
a onde ele iria conduzir. Também os desarmou perante os interesses das grandes
multinacionais, que sobrepõem os seus interesses privados aos das comunidades.
É patética a impotência dos países perante os gigantes tecnológicos e as redes
sociais. A submissão da política à economia está a destruir as nações europeias
e a dar espaço à extrema-direita. Se o projecto marxista é acabar com a
dimensão política, o liberal, onde se insere Maria Luís Albuquerque, é
reduzi-la ao mínimo, submetendo-a aos mercados. O primeiro é utópico, o segundo
é suicidário.
terça-feira, 3 de setembro de 2024
Um populismo de esquerda, na Alemanha
domingo, 1 de setembro de 2024
Um longo estertor
Assiste-se, no mundo ocidental, a uma crescente polarização política, que se traduz tanto na perplexidade dos cidadãos como no aumento da rispidez e da rudeza do confronto entre partidos. Não são poucos os que têm a sensação de que se vive no fim de um mundo, aquele em que a Europa e os seus valores eram dominantes. Olhar para a polarização política e social é fundamental para perceber o que se está a passar. Na verdade, estamos perante uma situação tripolar, a qual existe há muito, embora sem os actuais contornos belicosos. Temos um pólo conservador, cada vez mais encostado à extrema-direita, um pólo liberal, que dominou, de modo radical, o mundo ocidental desde a queda do Muro de Berlim, e um pólo socialista, que sobreviveu a essa queda e encontrou outros caminhos de afirmação. Todos estes pólos têm a sua origem última no cristianismo.
O pólo conservador sublinha cada vez mais fortemente a tradição e a hierarquia, uma clara herança da Igreja Católica, onde o papel tanto da tradição apostólica como o da hierarquia eclesiástica são centrais. O pólo liberal salienta as consequências do livre-arbítrio (a liberdade de escolha) defendido pelos grandes filósofos cristãos e parte integrante da doutrina da Igreja. O pólo socialista destaca a ideia de igualdade, a qual provém da concepção cristã de que todos os homens são iguais perante Deus. As três grandes ideologias políticas têm as suas raízes fundamentais no mesmo lugar, o cristianismo. Essas concepções de tradição, hierarquia, liberdade e igualdade existiam em harmonia dentro de um corpo que as estruturava e lhes dava sentido. Ora, a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa estilhaçaram essa unidade e harmonia. Uma das consequências é a transformação dessas ideias em ideologia política secular.
As ideias irmãs, agora politicamente estruturadas, começam a separar-se e a propor modos de vida cada vez mais estranhos uns aos outros. A polarização política, a que assistimos no Ocidente, está ligada a estes projectos de vida e de organização política que estão a perder o contacto entre si, radicalizando-se. O que estamos a assistir é a um período de agonia da influência das ideias centrais do cristianismo romano na política e na sociedade. É preciso perceber, também, que este cristianismo romano não é o cristianismo originário, mas aquele que foi produzido pela fusão da religião cristã com o Império Romano, tendo este, de alguma forma, sobrevivido durante séculos, através da Igreja, à sua própria queda. As convulsões políticas actuais ainda são um reflexo desse estertor, que parece sem fim, do Império Romano e do cristianismo que com ele se fundiu.