Irène Némirorovsky
(1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de
expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não
ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como
a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi
publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade
parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é
Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social.
Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo
e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien
Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le
Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de
Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se
não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito
cartesiano.
Descartes rompe
não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das
sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que
pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o
conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho
para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que
pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O
sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém
sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance
moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura
de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de
reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas
variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.
Como acontece
geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas
por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é
categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca,
se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em
conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em
alavanca e vice-versa. É assim que
Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo
amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência
moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo
categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo,
da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o
respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras
ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de
dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas,
que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.
O romance de
Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do
realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva
da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna
patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra
no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a
ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e
precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do
individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade
tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações
humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem
nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o
mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.
A decadência
moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não
é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência,
mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política
é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos
uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era,
e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789.
Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes,
falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com
profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon,
um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais
e políticas que manifestam a decadência do regime.
O título do
romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa.
Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é,
cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a
transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo,
em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o
predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por
exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque
torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu
ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de
sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa
insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na
afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da
existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.