domingo, 1 de setembro de 2024

Um longo estertor


Assiste-se, no mundo ocidental, a uma crescente polarização política, que se traduz tanto na perplexidade dos cidadãos como no aumento da rispidez e da rudeza do confronto entre partidos. Não são poucos os que têm a sensação de que se vive no fim de um mundo, aquele em que a Europa e os seus valores eram dominantes. Olhar para a polarização política e social é fundamental para perceber o que se está a passar. Na verdade, estamos perante uma situação tripolar, a qual existe há muito, embora sem os actuais contornos belicosos. Temos um pólo conservador, cada vez mais encostado à extrema-direita, um pólo liberal, que dominou, de modo radical, o mundo ocidental desde a queda do Muro de Berlim, e um pólo socialista, que sobreviveu a essa queda e encontrou outros caminhos de afirmação. Todos estes pólos têm a sua origem última no cristianismo.

O pólo conservador sublinha cada vez mais fortemente a tradição e a hierarquia, uma clara herança da Igreja Católica, onde o papel tanto da tradição apostólica como o da hierarquia eclesiástica são centrais. O pólo liberal salienta as consequências do livre-arbítrio (a liberdade de escolha) defendido pelos grandes filósofos cristãos e parte integrante da doutrina da Igreja. O pólo socialista destaca a ideia de igualdade, a qual provém da concepção cristã de que todos os homens são iguais perante Deus. As três grandes ideologias políticas têm as suas raízes fundamentais no mesmo lugar, o cristianismo. Essas concepções de tradição, hierarquia, liberdade e igualdade existiam em harmonia dentro de um corpo que as estruturava e lhes dava sentido. Ora, a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa estilhaçaram essa unidade e harmonia. Uma das consequências é a transformação dessas ideias em ideologia política secular.

As ideias irmãs, agora politicamente estruturadas, começam a separar-se e a propor modos de vida cada vez mais estranhos uns aos outros. A polarização política, a que assistimos no Ocidente, está ligada a estes projectos de vida e de organização política que estão a perder o contacto entre si, radicalizando-se. O que estamos a assistir é a um período de agonia da influência das ideias centrais do cristianismo romano na política e na sociedade. É preciso perceber, também, que este cristianismo romano não é o cristianismo originário, mas aquele que foi produzido pela fusão da religião cristã com o Império Romano, tendo este, de alguma forma, sobrevivido durante séculos, através da Igreja, à sua própria queda. As convulsões políticas actuais ainda são um reflexo desse estertor, que parece sem fim, do Império Romano e do cristianismo que com ele se fundiu.

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