sábado, 30 de novembro de 2024

Invocação ao Sol (1)

José Dominguez Alvarez, sem título (Rua ao Sol), 1930 (Gulbenkian)

Treme um homem glabro

na luz violácea da doença,

uma agonia irreparável,

a ânfora solar no lento sorver

do suor pelo lenço.

 

É um homem nocturno,

dizimado pela fuligem,

carcomido pelo caruncho,

esventrado pela navalha romba

roubada ao vício da noite.

 

Quis amputar da vida a morte.

O sol semeou-lhe palha

no éter do caminho,

um feno rasteiro sobre a pele,

o cardume de silvas nas mãos.

 

Arranca do peito o vazio

sem fundo, mobiliza em palavras

redemoinhos de erva.

A ânfora solar derrama a dor,

o pesado bastão na vagem da vida.

 

(1993)

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Ensaio sobre a luz (124)

Henry Ravell, Church at Churubusco, 1908

Retirada da sombra, uma Igreja vinda do passado, ancorada no porto da memória, abre-se ao olhar. Ilumina-a uma luz difusa, coada pelas nuvens, levedada pelo adiantado da estação. O dia abre-se para que a música do vento leve o toque dos sinos ao silêncio das almas.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Nocturnos 124

Jorge Molder, Face laveé d'oubli..., 1984 (Gulbenkian)

As noites germinam no antro do esquecimento. Chegam cantantes dos porões do dia, trazendo veludos obscuros com que ocultam o Sol e semeiam, entre os incautos, as alucinações mais terríveis. Depois, cansam-se e partem para longe, sem deixar endereço. Nunca voltam.

domingo, 24 de novembro de 2024

O progresso moral da humanidade (19)

David Turnley, Elderly Bosnian Refugee Crying. Tuzla, Bosnia - Herzegovina, 1995

Imaginemos a História. Tal como um carro, um barco, um avião, precisa de combustível para fazer a sua jornada. A viagem que tem pela frente é longa e só terminará quando a humanidade, tal como a conhecemos, desaparecer. Os seus motores não se alimentam nem de gasolina, nem de hidrogénio, tão-pouco a electricidade os fará mover. Apenas o sangue e as lágrimas sustentam a ânsia de caminhar e o imperativo de correr cada vez mais depressa. Por vezes, a História parece parar, mas, como todos os viajantes, ela apenas descansa um pouco para ganhar fôlego e velocidade, o que exige mais combustível. Ter-se-á pensado, um dia, que a corrida da História nos haveria de conduzir a um reino moral, onde o sangue e as lágrimas não seriam necessários para alimentar o desejo de ir mais além. Ela, porém, manteve-se impassível e não deixou de exigir o tributo que lhe impulsiona a expedição.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Máximas (23)

João Paulo Serafim, #0033, 2005 (Gulbenkian)

Ver com clareza no turbilhão destes dias não é uma capacidade pessoal, mas uma prerrogativa cuja proveniência e razão de ser o agraciado desconhece.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Hinos marítimos (iii)

Hein Semke, Meerlandschaft-Lofoten, 1980 (Gulbenkian)

Uma pedra casta no centro do mar.

O frágil barco do coração

navega sob a inclemência marítima da luz.

Impérios de areia e algas,

dunas, vento trespassado pelo láudano

rasga a terra debruçada sobre as marés.

 

A baía vinda da infância,

o mar lento e sem ondas, o pórtico

por onde entra o fogo do sonho,

sai o incêndio do desejo.

 

Um caderno cor de cinza marítima,

o nome escrito, página a página,

nome vindo das águas, dedilhado nas ondas,

rasurado pela luz das glicínias,

o voo das gaivotas.

Escrito, o nome é uma bússola,

a salvação dos navegantes perdidos

na vertigem do mar, na fímbria do destino,

a água fremente do mar vinhoso.

 

O cais debrua a baía,

traineiras, alarido de vozes,

a luz na sonolência da tarde.

A rebentação salpica de sal a língua,

o caminho de farol a farol,

a água inquieta na púrpura dos dias:

o silêncio da serpente na sombra do mar,

a pedra na castidade do coração.

 

(1993)

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Os avisos da Suécia, Noruega e Finlândia

Marc Chagall, War, 1964-66

Um dos efeitos da eleição de Donald Trump é o de se ter tornado mais plausível um conflito alargado na Europa. Não por acaso, os governos da Suécia, da Finlândia e da Noruega estão a aconselhar os seus cidadãos para se prepararem para a guerra (aqui). Isto significa que, de um momento para o outro, a NATO deixou de ser uma ameaça dissuasora dos inimigos das democracias europeias, e que estas se encontram numa situação de grande fragilidade defensiva.  Numa coisa os governos dos países citados acima merecem aplauso: não escondem dos seus cidadãos o perigo que ronda as suas vidas.

sábado, 16 de novembro de 2024

Comentários (24)

Darío de Regoyos y Valdés, Nocturno, 1899

 A noite mexe-se, agita-se, demora, e no entanto,
a noite é lenta e arrasta-se
a noite é populosa
Maria Andresen

A noite é uma configuração de estrelas perdidas no céu, arrastando-se no turbilhão das eras, fugindo no espaço, escavando túneis para dormirem, presas em constelações, inertes no descanso eterno que as aguarda. Ou, então, a noite é apenas um manto de nuvens e o lençol das névoas, iluminada pelo radar da luz eléctrica, uma noite escrita nas antigas fábricas de tecelagem, agora abandonadas ao vendaval dos homens, agitados pela insónia, perdidos na palidez sonâmbula com que os seus passos rasgam a escuridão. Não; a noite pode ser ainda um mapa onde se inscreve um caminho que oferece, a quem nele se mantém imóvel, a promessa da luz e o fogo da aurora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Mérito e inveja


O milagre – a eventual vitória de Kamala Harris nas eleições norte-americanas – esteve longe, muito longe, de acontecer. Os americanos escolheram em consciência e disseram claramente o que queriam. Não votaram enganados ou iludidos; escolheram o pior porque queriam o pior. Votaram em Trump pelos seus vícios e defeitos, que são os vícios e os defeitos dos eleitores. Rejeitaram Harris devido às suas virtudes. Esta podia ser uma má candidata, mas dificilmente alguém pode ser um presidente mais errático e perigoso do que Donald Trump – e disso há provas. E os eleitores sabem-no. Não o escolheram porque vai engrandecer a América, mas porque é misógino, racista, pouco ou nada respeitador das instituições. Pior: escolheram-no porque ele ameaça as instituições e a liberdade.

Kamala Harris sempre me pareceu uma má candidata. Porque era mulher e porque não era branca? Também por isso, mas essa não é a questão central. De facto, Kamala Harris é tudo aquilo que o eleitor de Trump odeia. Sabemos que ele não odeia a incompetência; odeia a virtude, a vida conseguida, a capacidade de afirmação. Kamala Harris é uma mulher que não veio das elites norte-americanas, mas é refinada e transpira superioridade, apesar da simpatia. Kamala Harris foi um espelho em que milhões de eleitores norte-americanos viram a sua própria derrota existencial. Ela conseguiu aquilo que muitos desejavam e não foram capazes. Não se trata de dinheiro, mas de classe. Os eleitores norte-americanos caíram uma vez com Obama; não caíram segunda com Harris. Uma parte da derrota da candidata democrata deve-se à pura inveja e ao ressentimento que a sua presença gera.

Harris, como Obama, são casos claros de uma cultura meritocrática, fundada em concepções liberais da sociedade. O filósofo norte-americano Michael J. Sandel escreveu, em 2020, um livro com o curioso título A Tirania do Mérito. Ele argumenta que esta tirania está a corroer as nossas sociedades e a empurrá-las para o populismo. As elites meritocráticas estão a afastar-se do homem comum, e esse afastamento, juntamente com a quebra do elevador social, gera um enorme ressentimento que se manifesta nas cabines de voto. Kamala Harris era uma má candidata – isso não significa que seria uma má presidente; são coisas diferentes – porque, quisesse ou não, ela era a face dessa elite que atormenta as entranhas do homem comum. Ela perde porque foi virtuosa na sua vida, perde porque é um caso de mérito. Ora, os democratas deviam ter lido com muita atenção o livro de Sandel. O resultado é o que se viu e o que se verá no futuro.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Trump e os trabalhadores

Álvaro Lapa, Conversa (quadro geral e exemplo), 1980 (Gulbenkian)

Alexandria Ocasio-Cortez, membro da Câmara dos Representantes dos EUA e um dos elementos mais à esquerda do Partido Democrata, ficou perplexa ao perceber que parte daqueles que a elegeram também escolheram Trump para presidente. Decidiu perguntar, aos seus seguidores numa rede social, a razão de terem votado em perspectivas políticas tão diferentes. Três respostas que podem ser consideradas exemplares: (1) "Sinto que ambos são outsiders em comparação com o resto de D.C., e menos establishment". (2)"É muito simples... Trump e você preocupam-se com a classe trabalhadora."  (3) "Trump vai arranjar-nos o dinheiro e vai permitir que os homens tenham voz. És brilhante e tens uma paixão incrível!"

Estas respostas são interessantes porque são sintomáticas; manifestam uma dor e deixam perceber a existência de uma doença ou, melhor, de várias. É verdade que tanto nos EUA como na União Europeia as instituições políticas foram capturadas pelas grandes multinacionais e as suas políticas económicas são, na verdade, uma defesa dos interesses dos grandes accionistas dessas empresas. As instituições democráticas tornaram-se aquilo que o marxismo disse que eram: formas de impor os interesses de uma classe - neste caso, muito específica e restrita - em detrimento dos interesses das outras, uma ditadura de classe, digamos assim. Isso implicou, devido aos processos de globalização e de imigração (os imigrantes vêm concorrer com os trabalhadores já existentes, o que traz a diminuição dos salários) o empobrecimento das tradicionais classes trabalhadoras, mesmo quando os países se tornam mais ricos.

No entanto, a votação dos trabalhadores norte-americanos em Trump não se deve apenas ao que poderíamos chamar a luta de classes. A terceira resposta, talvez a mais interessante, mostra duas coisas. O facto de alguém ter mais ou menos rendimento não se deve a si mesmo, ao seu esforço ou ao seu mérito. Deve-se aos políticos, isto é, ao Estado. Trump vai arranjar-nos o dinheiro. Há aqui a substituição do pensamento racional pelo pensamento mágico, onde o Estado, nas mãos do ungido, vai salvar quem está em apuros. A segunda parte da resposta mostra um outro problema quando se afirma que Trump (...) vai permitir que os homens tenham voz. É interessante que numa sociedade americana dominada por homens, onde existe uma cultura misógina e patriarcal, os homens sintam não ter voz. 

Ora, muito do sucesso na vida está relacionado com o desempenho escolar e a iniciativa de cuidar do próprio futuro através da procura de formações académicas mais exigentes e mais elevadas. Como em Portugal, também nos EUA uma grande fatia do insucesso escolar e académico é dos homens. Enquanto as mulheres, pelo seu trabalho e exigência consigo mesmas, progridem, parte substancial dos homens fica fora da formação superior, acedendo apenas a empregos mal remunerados. São estes que esperam que Trump lhes traga dinheiro e que lhes dê voz. Há um problema grave nos sistemas educativos ocidentais que está a gerar uma situação explosiva. Tal como estão estruturados estes sistemas, parte substancial dos elementos masculinos da espécie ficará de fora da formação superior, o que trará ressentimento social e fará crescer a misoginia. O problema é de difícil resolução, pois a cultura em que é educada a maioria dos rapazes é adversa à disciplina e perseverança exigidas pelo sucesso académico. Só uma sociedade muito doente elege uma pessoa como Donald Trump.

domingo, 10 de novembro de 2024

Beatitudes (74) A disciplina da dança

George C. Bell, Interpretive dancing study, 1924

São múltiplos os motivos que levam os seres humanos a dançar. A maioria, talvez, será movida pela inquietude do deus Eros. Contudo, sob os motivos manifestos presentes em cada um que dança, existe uma outra razão, mais funda e, por isso, esquecida. Dançar é a expressão de uma guerra contra a condição caída. Em cada gesto esconde-se um combate com a gravidade e um desejo de imponderabilidade, como se o céu fosse para a humanidade a casa a que só as aves, pelo seu corpo, podem habitar. E desse desejo nasce a beatitude que se espelha no corpo de quem se entrega à disciplina da dança.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Hinos marítimos (ii)

Ana Hatherly, O Mar, 1971 (Gulbenkian)

Balança-se o líquido viscoso

entre as carumas brandas do vento,

um insecto ígneo a cintilar na noite,

preso na areia, uma dor sem nome,

a página pura rasurada pelo tempo.

 

Vieram, na maresia da aurora, marinheiros.

De uma língua rasa fizeram barcos,

enfrentaram o ondular das ondas,

o uivo da memória,

a vida quebrada na gramática do naufrágio.

 

Mareantes perdidos no visco marítimo,

algas fétidas da proa ao convés.

As palavras ecoam na fragilidade do coração,

sombras suspensas na face.

Cansados das águas, plantaram palmeiras,

árvores raquíticas suspensas nas marés.

Mastros altivos chegam na aurora,

o silêncio arcaico coberto pela névoa.

 

Sobre a voz do cais cantam sirenes,

mulheres de preto pingam pelas ruas,

o turbilhão de peixes arfa nas redes,

a noite como um pássaro pelo chão.

 

Choram sobre o mar as mulheres.

Os marinheiros, cantando, zarparam,

espera-os a voz ébria dos portos longínquos,

a seda esquiva de outras mulheres,

escorraçadas na agrura do sul,

tisnadas pelo tumulto do cansaço.

 

(1993)

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O problema

Lisa Santos Silva, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Está consumado. Abateu-se uma catástrofe sobre a Europa? Possivelmente. Em primeiro lugar, porque Trump pode desinteressar-se da Europa e da sua defesa, isto é, da NATO. Depois, porque a sua vitória dá combustível aos nossos pequenos trumpinhos. É o fim do mundo? Não, ainda é cedo. Há um problema bem mais grave do que a vitória de Trump e as pretensões dos nossos trumpinhos. É o facto de a Europa ser um puzzle de interesses, de egoísmos nacionais, uma comandita de impotências. Num mundo, de grandes actores, nós europeus entretemo-nos com a gestão dos pequeninos interesses de cada um dos comanditados e dos comanditários. Este é o problema.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Simulacros e simulações (68)


Júlio Resende, Apanha da Azeitona, 1951 (Gulbenkian)

Simulando uma dança arcaica, homens e mulheres inclinam-se para o chão, onde o fruto derrubado da árvore espera o afago silencioso das mãos. Depois, erguem-se, olham o horizonte e esperam que a luz solar deixe cair os seus raios sobre o dia, como se fosse a música que os ilumina nessa dança dolorosa vinda de mundos que o tempo apagou.

sábado, 2 de novembro de 2024

Interregno


Parece não haver grande diferença entre o actual governo e o de António Costa. Esta semelhança, porém, é meramente táctica. O governo da AD não pôde, até aqui, dizer ao que vem. Esteve a controlar a situação para evitar um chumbo do orçamento de Estado ou, o que poderia ser-lhe mais nefasto, uma aprovação com os votos do Chega. Aprovado o orçamento, o governo ganha um horizonte de vida de dois anos. Isto significa que, nesse tempo, iremos ver em acção o real programa da coligação no poder? Claro que não. O objectivo táctico de Luís Montenegro e daqueles que o rodeiam será chegar a uma maioria absoluta, com ou sem a Iniciativa Liberal, nas próximas eleições. Ora, isso será muito improvável caso o governo execute o programa que lhe anima a alma.

Sendo assim, tomará medidas que não afrontem o eleitorado do centro e o eleitorado que, pela idade, se está a aproximar da reforma. Sabe-se que há, na direita, um grande desejo de tornar as condições de reforma mais penalizadoras dos reformados. Será que isso ocorrerá na presente legislatura? Não. Vale a pena citar o programa do governo sobre as pensões de reforma: “É necessária, porém, a existência de condições de debate e discussão racional, pelo que o Governo assume que a legislatura iniciada em 2024 deve ser dedicada ao estudo (sic), com uma análise e discussão dos desafios e respostas para a Segurança Social.” Isto significa apenas que o governo não tem maioria política que lhe permita realizar aquilo que deseja. Outro caso é o da abertura das escolas não superiores à iniciativa privada (com apoio do Estado). Um desígnio do governo de Passos Coelho e de parte importante da direita ligada à educação. Sobre isso, não há uma palavra nem no programa eleitoral da AD, nem no do actual governo. Porquê? Porque afastaria muitos votos dos professores e respectivas famílias.

Com a aprovação do orçamento, entrámos na segunda fase do interregno. A primeira era fazer aprovar o orçamento e assegurar mais dois anos de governação. A segunda vai estar concentrada em alcançar uma maioria absoluta daqui a dois anos. Os portugueses só perceberão o efectivo programa da Aliança Democrática nessa ocasião. Nenhuma das reformas que os analistas e comentadores de direita exigem – e que agradariam ao actual governo – será levada para a frente antes de novas eleições. Porquê? Porque elas são a continuação das políticas de Passos Coelho e atingirão duramente parte substancial das classes médias. Ora, a Aliança Democrática precisa dos votos dessas classes médias e só as afrontará quando tiver uma maioria absoluta na mão. Até lá vivemos num interregno.