sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Malditos factos

Imagem gerada por DALL-E

A nossa direita democrática e sensata, não aquela que se entretém com as alarvidades cheganas, anda preocupadíssima com a insegurança. Vários políticos, onde se encontram presidentes de câmara e até um primeiro-ministro, ficaram indignados com a realidade não estar de acordo com a sua percepção. Queriam um país a ferro e fogo e uma capital em estado de sítio criminal, mas os relatórios policiais parecem não estar alinhados com as percepções dos ilustres combatentes da vaga de insegurança e preferem concentrar-se em factos. Ora, os factos são coisas de que ninguém gosta. Ainda por cima se desmentem as percepções exaltados dos nossos pequenos Quixotes. O Dr. Johnson, um dia, terá dito, mas não escrito, que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Ora, a retórica sobre a insegurança é o último refúgio dos incompetentes. Não se pense, porém, que isso não atrai eleitores. Os canalhas tiveram a capacidade de arrastar a Europa para duas guerras mundiais. Mais fácil será a incompetência arrastar os votos dos eleitores que odeiam factos e confiam apenas nas suas percepções.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Ensaio sobre a luz (126)

Alphonse Gibory, La Seine au Trocadéro, 1906

No rio, um último reflexo de luz surge como uma promessa contra a noite desenhada no horizonte. Antes de morrer, o dia escreve nas águas uma mensagem efémera. Talvez os transeuntes, inconscientes e perdidos no descuido da viagem, encontrem naquela tímida reverberação uma esperança contra a eternidade das trevas.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Nocturnos 126

Egon Schiele, Durch Europa bei Nacht, 1906

Viajar durante a noite é trazer a escuridão da terra para dentro de si mesmo. Na ausência da luz, a paisagem tornada uma impressão difusa e sem contornos cresce no peito, lateja no coração, pulsa como um mistério indecifrável no interior do pensamento, contaminando a imaginação com os terrores arcaicos que submergiam os homens ao cair da noite.

sábado, 25 de janeiro de 2025

As inquietações do Presidente


A preocupação do Presidente da República, nas suas últimas intervenções, com a situação internacional faz  muito sentido, muito mais do que seria desejável. Estamos a entrar num tempo novo com a promessa de grande turbulência. O retorno de Donald Trump aniquila, a partir do seu próprio centro, os EUA, a ordem internacional liberal. Iniciada no pós segunda guerra mundial, incrementada com a derrota do bloco soviético no início dos anos 90 do século passado, começou a ser questionada no início do século XXI. A invasão da Ucrânia representou um enorme golpe para essa visão do mundo. A mudança nos EUA, com a retórica de ocupação da Gronelândia, canal do Panamá e Canadá, mesmo que nada disso ocorra, significa que a moribunda ordem internacional já está substituída, mesmo ao nível das ideias, pela lei do mais forte.

O tempo novo é marcado pelo facto de os EUA deixarem de ser uma potência liberal, e de se alinharem pelas concepções de política internacional que vigoram na Rússia e na China. Uma das consequências será o fim da estabilidade das fronteiras e a fragilização das independências nacionais. Tudo dependerá dos interesses das grandes potências. Isso afecta de imediato parte substancial da Europa de Leste, onde os interesses russos estão ao rubro. Por outro lado, a União Europeia fica confrontada com três grandes potências interessadas no seu desmantelamento: Rússia, China e EUA. Irão destabilizá-la tanto externamente como através do fomento de forças nacionais extremistas contrárias ao projecto Europeu. Uma desintegração da União Europeia afectará tanto a capacidade dos europeus em defenderem-se de agressões militares, como de sobreviverem economicamente.

Por tudo isto se compreende a preocupação de Marcelo Rebelo de Sousa. Sabe-se que Portugal dificilmente é viável, do ponto de vista económico, sem a União Europeia. Os recursos humanos e de matérias-primas são escassos e o mercado nacional diminuto. A turbulência que se adivinha pode colocar o país numa situação económica de grande fragilidade. O problema, porém, pode não ficar por aqui. Numa nova ordem, ou desordem, internacional, onde nenhuma fronteira está segura, um país frágil económica e militarmente pode tornar-se incapaz de assegurar a sua independência nacional. É preciso não esquecer que em política, aqueles que hoje são nossos amigos, amanhã podem ser inimigos. O que se perfila no horizonte, tanto na economia como na dimensão militar, é, para um país como Portugal, muito inquietante. Terão os europeus, para sobreviverem, capacidade e vontade de se adaptar ao novo mundo?

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (1)

Rafael Barradas, Paisaje con organillo, 1927

Terra de cal e calcário,

canoa de silêncio

aberta ao pó da estrada.

 

Nas fronteiras, febris,

as figuras da infância

tomadas pela cólera,

o súbito soar dos sinos,

a cárie as consumia.

 

[1993]


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Prosa dos dias (30) Lugares vazios

Henri Cartier-Bresson, Florence, 1933

Quando damos por isso, o sítio onde residiam os nossos sonhos mais benevolentes e as esperanças mais autênticas não é mais do que um imenso e desolado lugar vazio. Olhamo-lo com indiferença, não porque exista dor ou decepção por sonhos e esperanças não encontrarem possibilidade de realização. A questão é outra. Trata-se de não ter sonhos, nem esperanças. O que não é uma coisa má, pelo contrário. A libertação do império da expectativa abre a mente para a realidade tal como ela se manifesta diante dos nossos olhos, que começam, por fim, a ajustar-se àquilo que devem ver.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Comentários (26)

Francisco Bayeu y Subias, El Olimpo: Batalla de los gigantes

Cometeram soberbos os Gigantes
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro
Luís de Camões

É eterna essa batalha que opõe os olímpicos aos irados gigantes, seja ela travada nos contos das velhas mitologias, seja combatida no mundo raso onde o homem faz a sua casa. E se deuses olímpicos e gigantes míticos estão mortos, ainda hoje, na espécie humana, uns e outros se confrontam. Homens há que se imaginam gigantes e, a cada instante, destilam no peito o espírito de rebelião, prontos para lançar sobre o mundo o seu ataque, pois não suportam na terra aquilo que é claro e puro. Muitas vezes, os olímpicos terrenos parecem perdidos, a sua derrota é anunciada aos quatro ventos, mas uma razão estranha dá-lhes um ânimo feroz que, não eliminando as vãs pretensões desses imaginados gigantes, os acantonam numa casa feita com o junco da escuridão, para que a luz, ainda que indecisa, possa iluminar o mundo.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Simulacros e simulações (70)

Lucio Muñoz, 7-86, 1986

Simule-se o progresso da destruição, abram-se os olhos para o corroer dos materiais, oiça-se a música do aluimento das estruturas mais sólidas. Espere-se, na sobriedade do silêncio, o crescimento das ruínas, a desagregação dos palácios e a morte da matéria. Então, o mundo, como um simulacro cantante, pulsará sonâmbulo no ritmo de um coração tomado pelo zinabre da loucura. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Invocação ao Sol (5)

Paul Klee, Castle with Setting Sun, 1918

Soltavam palavras de fogo

na superfície sulfatada da terra,

um jardim de ânimo transfigurado,

provérbios esquecidos

no porão da memória.

 

Os barcos vinham vazios,

sentavam-se mulheres ao sol,

a conversa para enxaguar

a mancha no descompasso da vida.

 

Acreditavam nos deuses,

milagres matinais entre heras,

o sol a cintilar nos fetos,

acácias na sombra da casa.

 

Terra vergada ao peso das luas,

sem o fogo do espírito,

submersa na humidade dos domingos.

Refreado pelo peso da luz,

o mundo caía na palha da noite.

 

Grãos de areia, sílica, mica,

quartzo iluminado pelo tempo.

No revérbero solar desta sabedoria,

um arquitecto ocioso trabalha

os dias e as noites, a sombra

fortuita na mantilha da memória.

 

(1993)

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

O antigo regime e a revolução

Paul Klee, !Todo corre em pos de algo!, 1940

Steve Bannon, uma influente figura política da direita radical, não morre de amores por Elon Musk, o hiper-milionário que ajudou a eleger - talvez o melhor seja mesmo dizer que elegeu - Donald Trump. Bannon acusa Musk de se interessar apenas por si e por ir aumentando a sua colossal fortuna e com isso aumentar o seu poder (aqui). Será que o problema colocado por Musk é o de se interessar apenas por si mesmo? Não terá ele um projecto político para os EUA e para o mundo?

Um artigo de João Pedro Pereira, no Público (aqui), tem o curioso título O novo regime, por Peter Thiel. Menos conhecido do que Musk ou Zuckerberg (dono do Facebook), aos quais ajudou a criar as suas fortunas, Thiel move-se nas mesma águas e mostra que o interesse das grandes figuras ligadas ao universo das tecnologias de informação e comunicação e inteligência artificial não é meramente uma questão de criar condições para fazerem mais e melhores negócios, mas um projecto político, cuja configuração é fluida, mas que se vai afirmando.

Numa entrevista dada ao Finantial Times, citada no artigo do Público, afirma: O nosso antigo regime (refere-se às democracias liberais) tal como a aristocracia da França pré-revolução achou que a festa não acabaria. E depois de argumentar que, na verdade, a eleição de Biden em 2020 foi uma anormalidade, remata: Não haverá uma restauração reaccionária do passado pré-internet.

O que ele diz é o seguinte: a internet e o que se lhe seguiu são uma revolução política, a qual deve ser lida em consonância com o modelo de todas as revoluções, a Revolução Francesa. Ora, isso significa que o modo de fazer e pensar a política dos democratas liberais, gizado quando não havia internet, é tão anacrónico como o modo de fazer e pensar a política do Antigo Regime, que a Revolução Francesa derrubou. Diz ainda o seguinte: o modo de fazer e pensar a política à maneira das velhas democracias liberais não será restaurado. A vitória de Trump é uma derrota dos restauradores da velha ordem liberal.

A alteração mais clara que se deu na política foi a sua virtualização. A transição do conflito político do espaço público tradicional para um espaço virtual. Esta virtualização, porém, não é inócua. Dá enormes poderes de influência aos detentores das redes sociais, e são estes que transportam em si projectos políticos que pretendem estruturar o novo regime nascido da destruição, em curso, das democracias liberais, as quais ainda se movem numa dimensão analógica e pensam a política a partir dos valores morais provenientes do Iluminismo, do Liberalismo e da Revolução Francesa.

As novas configurações são obscuras, mas é provável que, com a tomada de posse de Donald Trump, se comece a perceber o que traz o novo regime, embora Trump seja apenas um figura intermédia, alguém que penetrou no regime liberal norte-americano e o começou a desestruturar, sem saber muito bem para onde pretende ir. Aquilo que parece estar a emergir é a morte dos próprios ideólogos da direita radical (para não falar já dos outros), como Steve Bannon, pois fazem parte de um mundo pré-internet. 

Se se quer perceber que novas configurações do mundo, a Ocidente, se estão a desenhar é preciso estar atento ao que pretendem estas personagens que fazem parte de um bolha de hiper-milionários ligados à internet e a tudo aquilo que lhe sucedeu. Eles não têm apenas o poder do dinheiro, como os antigos milionários, mas têm o poder de formatar a opinião, de a dirigir e de a fazer acreditar no que bem entenderem. Juntam o poder económico, preponderante nas democracias liberais, ao poder religioso, no sentido de formadores de crenças que, como as crenças religiosas, não são verificáveis. Parece desenhar-se uma oligarquia, mas os seus contornos são ainda difusos. O ano de 2025 poderá ser rico em ensinamentos sobre para onde o mundo vai correr e como se vai desenvolver a revolução em curso há décadas, uma revolução permanente.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Nacional-populismo, enraizamento e impacto

 

Revisito um livro de que já falei aqui em artigo de Abril de 2023. Trata-se de Populismo - A revolta contra a democracia liberal (2018), de Roger Goodwin & Mathew Eatwell. Naquele artigo, o sublinhei os quatro D que, segundo os autores, estarão na base do crescimento do fenómeno nacional-populista: Desconfiança dos cidadãos, devido ao elitismo político e institucional da democracia liberal. Destruição das comunidades e da identidade nacional pela imigração e a mudança étnica. Despojamento sentido pelas pessoas em consequência da globalização, do aumento das desigualdades e da perda de esperança. Desalinhamento entre o povo e os partidos tradicionais, com a quebra dos laços que ligavam eleitores e partidos.

Interessa-me, agora, uma outra tese dos autores. Em 2018, rebateram a ideia que corria em meios académicos, políticos e comunicacionais de que o fenómeno do nacional-populismo, tal como uma epidemia, já tinha atingido o seu pico e que estaria em recessão. Goodwin & Eatwell defenderam o contrário, em dois pontos: 1. O nacional-populismo é um movimento de desafio às políticas e valores liberais, um fenómeno enraizado em correntes históricas profundas e não um acidente passageiro. 2. O nacional-populismo representa uma mudança estrutural na política ocidental, com um impacto duradouro nas relações entre eleitores e sistemas políticos. Ora, ter-se-á pensado que com as posteriores vitórias de Joe Biden, nos EUA, e de Lula da Silva, no Brasil, que os autores em questão estariam errados, que afinal o nacional-populismo era um episódio desagradável, mas passageiro.

A vitória de Trump em 2024 e o crescimento do nacional-populismo na Europa vieram mostrar que Goodwin & Eatwell tinham razão. É uma corrente política enraizada no mundo ocidental e com impacto duradouro na política ocidental. O nacional-populismo não é uma doença episódica, mas crónica, que coloca graves problemas. O primeiro é o de aprender a lidar com ele. Foram tentadas várias soluções (cercos sanitários, coligações de circunstância, cedências programáticas, etc.), mas nenhuma diminuiu o impacto dessa corrente. Um dos desafios políticos para 2025 será o de aprender a lidar com uma corrente iliberal, que faz do comportamento errático e, em aparência, irracional a força com que atrai eleitores e abre brechas nas democracias. Se as forças democráticas tradicionais não aprenderem a lidar com o nacional-populismo, este, com o retorno de Trump, pode transformar-se numa doença fatal. Ora, a aprendizagem deve começar por prestar atenção aos quatro D que levam os eleitores para os braços destes movimentos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O caos anunciado

Manuel Filipe, Guerra, 1945 (Gulbenkian)
As recentes declarações do futuro presidente dos EUA, Donald Trump, sobre aquisições e anexações, que vão desde o Canal do Panamá até à Gronelândia, passando pelo Canadá, bem como as contínuas interferências na política dos países europeus do seu aliada momentâneo, Elon Musk, vieram legitimar as práticas de interferência internacional e de invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Isto significa que o débil direito internacional e e a ordem internacional de cariz liberal estão mortos. Os EUA vão trocar uma posição de enfrentamento das pretensões russas para uma posição de cópia da política russa. A ordem internacional nascida da segunda guerra mundial acabou e voltámos, em novas circunstâncias, para a uma situação hobbesiana de guerra de todos contra todos. Retornou o direito de conquista e nenhuma independência está segura. Tudo depende dos interesses e da força de uma potência superior. Um aliado pode, de um momento para o outro, tornar-se um inimigo, quebrando os pactos de amizade, apenas porque convém aos seus instintos de predador. Resta saber o que os europeus vão fazer. Serão eles os últimos moicanos, os defensores de uma ordem internacional regulado pelo direito e pelo respeito entre nações, ou cederão ao Zeitgeist, fracturando a sua unidade e tornando-se lobos uns dos outros e presas de potências mais fortes. Reside na Europa uma pequena e frágil luz de liberdade e de moralidade. Veremos se se mantém acesa ou se os ventos que correm a apagarão.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Meditações melancólicas (94) Afinal, nem parece um rei

René Magritte, El Mutilado, 1947

Há coisas que o melhor era não as fazer. Nada pior do que a transição que nos leva de uma imagem idealizada para outra que é real ou mais próxima da realidade. Foi uma péssima ideia a reconstituição facial em 3D do rei D. Dinis (ver aqui). Olhamos para a imagem, presumidamente mais autêntica do velho rei, e não vemos ali nem o homem de poder, nem o visionário, nem o poeta. Nada. Vemos um pobre diabo que parece nem acreditar no que lhe sucedeu, com uma coroa enterrada na cabeça. Os grandes homens históricos são iguais aos outros, mas nós temos uma necessidade de ver na sua imagem a grandeza que lhe atribuímos. Eles são, na realidade, idênticos aos políticos de hoje, mas estavam cobertos pelo véu do passado e pelas imagens idealizadas, que nos faziam pensar que eles eram de outra natureza. Revelar-lhes o rosto é, mais do que matá-los, matar as ilusões que usamos para nos identificarmos. Qualquer país preciso de uma mitologia e não há mitos sem encantamento. Inventem lá outro rosto ao pobre rei.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Cadernos do esquecimento 55 Imagens

Abel Manta, sem título, 1932 (Gulbenkian)

Há imagens que perduram como se fossem marcos a assinalar as etapas de uma viagem. Vivem puras e livres, mesmo que a realidade que as trouxe se tenha dissolvido. Uma certa ruralidade que inundou este país até tarde permanece na memórias de muitas gerações ainda vivas. Há uma resistência feroz ao esquecimento, tecida na lentidão com que a vida se desenrolava naqueles dias, uma vida incrustada na argamassa da pobreza e no barro de  um atraso ancestral, como se uma tradição tenaz prendesse os homens num mundo imutável.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Beatitudes (76) Das coisas raras

Alfred Stieglitz, Lago di Misurina, The Tyrol, 1891  

A quietude das montanhas, as águas paradas do lago, o silêncio que sombreia a floresta. Caminha-se pela senda rasgada na terra e espera-se encontrar a cabana que acolherá a solidão do viandante. Ali, pensa-se, a felicidade será possível, mesmo que a noite seja visitada por terríveis tempestades e a presença humana se rarefaça. Só o que é raro tem valor, mesmo se o perigo aí se oculta.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Invocação ao Sol (4)

Edward Hopper, Morning Sun, 1952

Sol de Verão rasgado pela corola,

a lógica animal trazida

pelos dias de Agosto,

o símbolo da abundância

semeado na ânfora da noite.

 

Árvores espraiam a seiva da sombra

sobre um campo de luz,

sobre oceanos de surda solidão,

a folhagem agreste a rasgar o corpo.

 

Quando o Verão vem,

as dunas deslizam pelas praias.

Mares de areia à solta

em paisagens de rochas e limos,

a lâmina curva a cintilar

no verde-azul a cerzir o horizonte.

 

Vigora uma ordem perfeita,

rasgão no pano-cru da atmosfera.

Da boca solar caem dias de lume,

lâmpadas de fogo na senda subterrânea,

no trabalho do espírito abrindo a carne

ao grito trémulo da língua.

 

Sobre o comboio dos dias

arde o bulício do astro,

o mosto entre as pernas das mulheres,

o sacrifício solar

no mármore opaco da escuridão.

 

(1993)

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]