sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Ingerências eleitorais e decadência europeia

Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985

A Europa – refiro-me à União Europeia – está rodeada de problemas: problemas com as opções geoestratégicas da Rússia, problemas com os fluxos migratórios, problemas com o terrorismo islâmico e, agora, problemas com os EUA, versão Donald Trump e Elon Musk. Contudo, talvez o maior problema resida na própria União. Konstatin von Notz, do partido Os Verdes, presidente do comité de supervisão dos serviços secretos alemães, apela ao novo governo para que reconheça o impacto da ingerência russa nas últimas eleições e no resultado do partido de extrema-direita AfD (aqui). Ora, pelo menos desde o referendo inglês, que levou ao Brexit, em 2016, que se fala abertamente dessa ingerência. São quase nove anos, e a situação não se alterou. Melhor: a situação alterou-se para pior.

Mais, agora não há a temer apenas a ingerência russa, mas também a do novo poder norte-americano. Ora, isto é apenas o sintoma de uma impotência europeia que parece estrutural. Se o Brexit não foi aviso suficiente para se tomarem medidas draconianas de defesa dos processos eleitorais dos países membros, o que será necessário acontecer? A continuar assim, em poucos anos, os inimigos da União Europeia farão eleger, sem grandes dificuldades, governos que terão por finalidade destruí-la. Este problema não é apenas de cada país onde essas ingerências acontecem, mas de toda a União, e é esta que, em estreita cooperação com cada um dos seus membros, deve tomar as medidas necessárias para salvaguardar a autenticidade dos processos eleitorais.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Comentários (27)

Maria Helena Vieira da Silva, La Bibliothèque en Feu, 1974 (Gulbenkian)

Não há nada mais próximo da ruindade
do que uma exígua biblioteca de província
desabando ao sol das cinco e meia da tarde.
Frederico Pedreira

Também das bibliotecas o destino é perecer, pois a fixidez que habita o discurso de cada um dos livros não é antídoto ou amuleto suficiente para as raptar à transitoriedade que o tempo sobre tudo faz cair. Umas desabam ao sol das cinco e meia da tarde. São pequenas bibliotecas esculpidas na lentidão da província. Outras, as grandes bibliotecas metropolitanas, entregam-se ao fogo, como é hábito acontecer quando um rebanho humano já não consegue suportar o peso excessivo da verdade que nelas se esconde. Nem a piedade filial, nem o amor dos devotos, nem o silêncio que as habita são escudo suficiente para parar o tempo e suster a derrocada ou a cintilação do incêndio; a ruindade dos homens será sempre a agência que Cronos precisa para fazer cumprir os seus éditos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (4)

Mário Cesariny, Pintura lacerada II, 1970 (Gulbenkian)

Os ramos frios, as letras ardentes,

a luz onde poiso, se cai a maresia.

Um som brame na esquina da rua,

semeia bolor no centro do peito.

 

Nos dias de sol, a voz das aves,

presa na mudez, desce do céu,

canta o segredo do silêncio,

o fulgor da tarde, a chuva a cair.

 

Parda de granizo, a ave de rapina

plana, suspensa da plumagem:

espreita a lua, espera a morte.

 

O destino vem na maresia do voo,

na cintilação da água sobre a terra:

o grito do animal na fuligem do fogo.

 

[1993]


sábado, 22 de fevereiro de 2025

Simulacros e simulações (71)

Manuel Botelho, 155. est-mr (da série «confidencial/desclassificado: estado-maior»), 2012

Num mapa, simula-se um mundo, para que a vida se torne um simulacro de si mesma. Segue-se então as rotas assinaladas, evita-se os obstáculos e pondera-se a influência da hidrografia sobre a beleza do território. Talvez seja possível uma floresta ali, uma estrada acolá, uma cidade no centro, para que nela tudo convirja e se perca no rumor do trânsito nocturno.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Uma ameaça existencial

 

Julgo que, depois do telefonema entre Trump e Putin e da intervenção do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance, em Munique, os líderes europeus terão percebido o grande sarilho em que estamos metidos. Na prática, a actual liderança americana entregou parte da Ucrânia, ou talvez toda, à Rússia. Mas não foi apenas a Ucrânia que foi entregue aos russos; toda a Europa parece agora aos seu alcance. A NATO, neste momento, não é mais do que uma sigla que ecoa um passado recente, um incómodo para o movimento MAGA, que suporta Donald Trump e que parece a caminho do fim. E, sem a NATO – ou mesmo com a NATO, mas sem compromisso militar norte-americano –, a Europa fica indefesa perante uma superpotência nuclear como a Rússia.

Há uma convergência estratégica e de interesses entre a liderança russa e a nova liderança norte-americana, e essa convergência pode passar pela dominação territorial ou, pelo menos, pela submissão de países livres à esfera de influência das duas grandes superpotências nucleares. No pior dos cenários, teríamos uma “operação especial” russa para dominar militarmente toda a Europa e, do outro lado, a “transformação” do Canadá no 51.º estado dos EUA e a ocupação da Gronelândia. Num cenário menos dramático, teríamos a submissão dos países europeus à Rússia através de processos eleitorais, onde a extrema-direita pode ter um papel importante, bem como a cedência das lideranças nacionais europeias aos interesses russos, numa espécie de servidão voluntária; enquanto, no outro lado do Atlântico, os EUA sufocariam economicamente o Canadá e desestabilizariam a Gronelândia.

Neste momento, a União Europeia e a Europa Ocidental não integrada na União enfrentam um problema existencial. O que está em jogo já não é salvar as democracias e evitar o retorno a regimes autoritários, mas assegurar a independência e a capacidade dos países europeus de decidirem o seu destino. E este é o principal problema. Esta capacidade era débil, pois assentava na dependência do amigo americano. Agora que o amigo americano está a caminho de se tornar inimigo, essa fragilidade tornou-se dolorosamente clara. Resta saber se as lideranças europeias – onde a inglesa deve ser incluída – estão dispostas a enfrentar os perigos que se perfilam no horizonte e se os povos europeus estão dispostos a defender a sua liberdade e os seus valores ou se, adormecidos por oitenta anos de paz e liberdade, preferem entregar-se nas mãos de quem os queira dominar. Se há coisa que me alegraria, nesta parte final da vida, seria que tudo isto não passasse de uma fantasia de um velho esclerosado. Duvido, porém, que o seja.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

A doença do Bloco de Esquerda

Ana Hatherly, Doenças, 1971 (Gulbenkian)

Uma notícia do Jornal Económico dá conta de que, no distrito de Portalegre, 73 militantes, num universo de "mais de duas centenas", abandonaram o Bloco de Esquerda (aqui). A notícia é interessante a vários títulos.

Em primeiro lugar, porque é mais um sinal de que esta força de esquerda está em desagregação. Para além de maus resultados eleitorais, de práticas laborais em contradição com as crenças dos militantes do partido e de quezílias internas, os próprios militantes, outrora tão empenhados, parecem estar a desistir paulatinamente do partido.

Em segundo lugar, porque uma excelente deputada, Mariana Mortágua, não tem necessariamente de dar uma excelente líder de partido. Hoje, para o observador externo, parece claro que Mariana Mortágua segue um processo inverso ao de Catarina Martins. Esta, no início, parecia bastante frágil em comparação com Francisco Louçã. Essa fragilidade tinha fundamento. Contudo, Catarina Martins excedeu-se: lentamente, tornou-se uma líder com capacidade de afirmação e cumpriu a sua função com honra. Mariana Mortágua, pelo contrário, parecia uma líder forte, mas o tempo tem revelado a sua fragilidade.

Por fim, esta crise no Bloco de Esquerda é mais um episódio de uma crise estrutural da esquerda, que não compreende o mundo em que nos encontramos e está presa a arquétipos ideológicos que perderam sentido ou foram derrotados. Um exemplo disso é a tentativa de estruturar a identidade política em identitarismos particulares e conflitos de ordem cultural. A debandada dos militantes de Portalegre é muito mais do que um episódio paroquial: é o sintoma de uma grave doença do Bloco de Esquerda e da esquerda em geral.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O progresso moral da humanidade (20)

Giotto di Bondone, La Traición de Judas, 1292-1305

A traição de Judas é o modelo arquetípico da traição entre amigos. Este tipo de traição é um sintoma de grande degradação moral. Entrega-se um amigo em troco de uma vantagem material ou outra. Se a ideia iluminista de um progresso moral da humanidade faz sentido, nesse progresso dever-se-á pensar que não mais será possível Judas trair Cristo. Ora, não apenas, entre os indivíduos, os amigos continuam a trair-se, como entre as comunidades políticas se assiste a trágicas traições. Por 30 dinheiros, isto é, por interesse, líderes moralmente repugnantes não têm pejo de entregar ao inimigo aqueles que durante décadas foram amigos e partilharam modos de vida e objectivos estratégicos e civilizacionais. Talvez para esses líderes a moral seja trair os amigos, se se imagina nisso uma vantagem pessoal. Têm a moral de Judas. Ver-se-á sem têm o seu destino. Isso não representaria um progresso moral, mas seria antes um efeito do velho mito da lei das compensações.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (3)

António Areal, Opus II, n.º 78, 1963 (Gulbenkian)

A chama ateada do passado

rumoreja se chega o Verão,

uiva se perdida pela estrada.

 

Pela manhã, desenha-se

a raiva no ronco do dia,

o céu azul recoberto

de arbustos e aves e astros.

 

E as horas sorriem na sombra,

presas na pedra da memória,

presas na água de âmbar.

A boca seca de tanto salivar.

 

[1993]

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Beatitudes (77) No jardim

Louise Binder-Mestro, Au Jardin, 1905
O jardim, lugar onde os corpos repousam da algazarra da cidade e a cabeça se inclina em doce rêverie. Tudo, ali, é feito para que o esquecimento cresça e o mundo, como um espectro sem rosto, permaneça longe, tão longe como se não fora mais do que uma fantasia nascida do ócio, um pesadelo gerado pela turbulência do sono. No jardim, a vida é um exercício da mais pura e maternal beatitude, como se os monstros não se escondessem na raiz de uma hera ou na ramagem das tílias.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guedes de Amorim, Morfina

Publicado em 1932, o romance Morfina, de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos, acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.

O romance centra-se num talentoso pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera, porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher, mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas e a filha uma angariadora de clientes.

É a tentação erótica representada por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda, também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia, de cabarets,  de álcool e de drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.

É também um lugar de rivalidades, de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja. Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como, aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.

A queda de Pedro António inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo. O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação. A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.

É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Jean-Paul Sartre, Os Dados Estão Lançados

 

Escrito em 1943 e publicado em 1947, Os Dados Estão Lançados (Les Jeux Sont Faits) é um guião cinematográfico para um filme como o mesmo título de Jean Delannoy, também de 1947. O horizonte narrativo é o de uma interpretação moderna do Mito de Orfeu. O amor entre Ève Charlier e Pierre Dumaine não enfrenta apenas a tentação. Orfeu perde Eurídice por não resistir à tentação de olhar para trás, de olhar para ela antes da saída do mundo dos mortos. É a necessidade de certificação, de possuir uma certeza, que perde os amantes no mito grego. No texto de Sartre, é ainda o passado que perde Ève e Pierre, mas um passado marcado pelas estruturas e compromissos sociais. Se o conflito inerente ao mito de Orfeu é entre o amor e o desejo, na obra de Sartre situa-se na escolha – isto é, um exercício da liberdade – entre um determinismo metafísico que lhes destina o amor ou um determinismo social que os afasta eternamente.

A narrativa desenrola-se entre dois espaços: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos vivos é caracterizado por um regime político distópico. Um regente controla, através da sua milícia, toda a sociedade, a qual se encontra estruturalmente dividida em classes sociais rígidas e conflituantes. Ève, uma bela mulher, pertence às classes dominantes, casada com  André Charlier, um secretário da milícia, uma figura importante do regime. Pierre vem do mundo operário, um militante que organiza uma insurreição contra o despotismo do Regente. Têm uma coisa em comum: são ambos traídos. Ève pelo marido, que a envenena; Pierre por um jovem correligionário tido por traidor, que dispara sobre ele. É no mundo dos mortos que se encontram. Ora, este mundo surge como uma estrutura, no início, altamente burocratizada. Os mortos – melhor, os candidatos a mortos – têm de cumprir formalidades, como se tivessem de passar numa fronteira. Só quando assinam o documento adequado é que se podem considerar, efectivamente, mortos.

O mundo dos mortos, no texto de Sartre, não é o frio Hades, mas o mesmo mundo dos vivos. É nele que os mortos deambulam sem serem vistos, sem serem ouvidos, sem ocupar espaço. Observam os vivos, mas não podem interferir nas suas vidas. A morte não á passagem para um além, mas a transição para o mundo onde se estava, mas agora noutra condição. Morrer é mudar de condição. A morte é definitiva, a não ser que haja um erro burocrático. Se um homem e uma mulher estavam destinados um ao outro e não se chegam a encontrar em vida, é-lhes dada, depois de mortos, uma segunda oportunidade. Regressam à vida para cumprir o seu destino. Ora, a bela burguesa Ève e o simples operário Pierre estavam destinados um ao outro, mas na vida nunca se encontraram. Foi a morte que os aproximou. Ao verem-se no mundo dos mortos, descobrem o amor.

Retornados à vida, mantendo as recordações do que viveram no mundo de onde saíram, têm de consumar o amor e partilhar a existência. Caso falhem, o seu destino é o de Eurídice no mito grego. Ève e Pierre enfrentam, no entanto, dois obstáculos. Por um lado, o facto de pertencerem a mundos sociais distintos, o que o amor terá capacidade de superar. Por outro, a teia de compromissos que os liga às a esses mundo de onde provêem. Pierre, quando morto, descobre que a tentativa de insurreição que dirigia está condenada ao fracasso, que a milícia do regente conhece todo o plano e tem as forças militares preparadas para sufocar a revolta e pôr fim, através de um banho de sangue, à resistência ao regime opressor. Ève, mais do que descobrir, constata que o marido a assassinou, por causa da sua fortuna, e se prepara para enredar Lucette, a jovem irmã de Ève, apenas com 17 anos, numa teia de sedução, de modo a poder apropriar-se também da herança desta.

Ao voltar à vida devido ao amor não cumprido, eles deparam-se com a grande pressão do passado. Pierre pretende avisar os seus camaradas do perigo que correm, mas eles sabem que ele se relaciona com a mulher do secretário da milícia e, perplexos por ele não estar morto, apesar do atentado, desconfiam que os traiu. Ève pretende, por seu lado, avisar a irmã da natureza do marido, do seu carácter malévolo e das intenções que ele tem tanto para com ela, Ève, como para com a própria Lucette. Esta, porém, não acredita na irmã. Não crê que o cunhado seja aquilo que é. Pelo contrário, dele apenas vê a aparência gentil e sedutora. Sartre une os dois casos sob uma mesma rubrica. A impotência da verdade para tocar aqueles a quem ela se dirige. Pierre não consegue vencer a reserva dos seus correligionários; Ève é incapaz de fazer com que a irmã encare a realidade tal como ela é.

É nesta tentativa de levar a verdade àqueles com quem tinham ligações no passado que vai funcionar como uma analogia com o desejo de Orfeu em se certificar, olhando para trás, que Eurídice o segue em direcção ao mundo dos vivos, perdendo-a irrevogavelmente. Tanto Ève como Pierre olham para trás, para o mundo que tinham deixado ao morrer, e isso terá um preço elevado. A grande questão que o texto de Sartre coloca é se o determinismo social é de tal modo forte que funciona como uma causa necessária no comportamento dos indivíduos. Estariam Ève e Pierre de tal modo determinados a não viverem o amor que lhes tinha sido destinado, que eles apenas cumpriram um guião que não dependeria deles? Ora, se se tiver em conta a ideia sartriana de que estamos condenados a ser livres, que todas as nossas decisões e escolhas dependem de um acto livre, o que se poderá dizer é que Ève e Pierre escolheram submeter-se ao determinismo social que exercia sobre eles pressão, em vez de se submeterem a uma espécie de determinismo metafísico que, apesar da improbabilidade, lhes abria o caminho para um grande amor. A subtiliza da obra de Sartre é de mostrar que mesmo a escolha de um determinismo e não de outro é ainda um acto livre, e como todos os actos livres torna os seus autores responsáveis por aquilo em que se tornam. É a isto que alude a máxima sartriana de que a existência precede a essência: aquilo que somos é o fruto das escolhas que fazemos.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O que se está a passar?


Coloquemos a questão: O que se está a passar no mundo? Factualmente, temos, para além da tragédia do Médio Oriente, a invasão russa da Ucrânia, o sólido crescimento internacional do poder chinês, o fenómeno Donald Trump e a periclitante saúde das democracias europeias. Por detrás destes eventos, manifesta-se, no campo Ocidental, um conflito ideológico e político que dura desde o século XVIII, uma guerra que nunca se apaziguou entre dois campos inimigos, que parece não terem capacidade de entendimento. Por um lado, o campo Iluminista; por outro, o campo Anti-Luzes (Anti-Lumières), como lhe chamou o historiador israelita Zeev Sternhell.

Os Iluministas valorizam os direitos do homem, a capacidade da razão individual para tomar decisões e melhorar o mundo e a vida dos indivíduos, as liberdades individuais, a ideia de valores universais – isto é, possíveis de partilhar por todos os seres humanos – e a democracia política. Os Anti-Luzes opõem-se, como mostra Sternhell, aos direitos humanos, negam a capacidade da razão para moldar as instituições e a vida das pessoas, opõem-se à emancipação dos indivíduos, defendem a importância da tradição, dos costumes, da pertença a uma comunidade histórica, cultural e linguística e desdenham da democracia. Estas campos estão em guerra declarada desde o século XVIII, guerra que não abrandou no século XIX, e que no século XX deu origem aos dois conflitos mundiais. Houve um momento ilusório, após a queda do Muro de Berlim, que se chegou a pensar na vitória definitiva do campo das Luzes.

O século XXI traz uma novidade. A passagem, ainda em esboço, da principal potência Iluminista, os Estados Unidos, para o campo dos Anti-Luzes. É isso que significa o retorno de Donald Trump à presidência. O recém empossado presidente americano, com o apoio de tecno-milionários, como Elon Musk, está a afrontar uma a uma as crenças Iluministas que deram origem aos EUA e fizeram parte da sua natureza até aos dias de hoje. Ver-se-á, nos próximos tempos, até que ponto os valores do Iluminismo conseguirão resistir, nos EUA, à avalanche Trump. O que estamos a viver é, depois da ascensão do fascismo e do nazismo, o maior ataque aos valores das Luzes. Dito de forma clara: um ataque ao papel da razão e dos valores universais, aos direitos humanos, às liberdades individuais e à democracia política. Neste momento, os valores Iluministas subsistem na Europa, mas estão a ser atacados de fora – veja-se o papel de Elon Musk – e por dentro, através dos partidos de extrema-direita e direita radical, que ocupam já o poder em alguns países ou estão em crescimento significativo. É isto o que se está a passar.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (2)

Marcelle Cahn, sem título, 1964 (Gulbenkian)

A litania do amor

sobre o corpo suado,

a severa paisagem,

o sal de um sonho

na tua mão branca

aberta num deserto

de poeira e servidão.


(1993)


domingo, 2 de fevereiro de 2025

O valor da liberdade e da democracia

O que está em jogo na arte transcende a dimensão ideológica, cujo peso pode sufocar e aniquilar uma obra de arte. Existem, porém, grandes obras de arte que não excluem – pelo contrário – uma natureza interventiva. Esta introdução vem a propósito de duas obras com que lidei recentemente e que, do ponto de vista da intervenção política, têm esclarecem a importância de aspectos da vida política que parecem estar em desvalorização acentuada nos dias que vivemos. As obras são o filme brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), realizado por Walter Salles, com o extraordinário desempenho de Fernanda Torres; e o romance Isso Não Pode Acontecer Aqui (1935), do Nobel norte-americano Sinclair Lewis. Os aspecto esclarecidos são a liberdade e a democracia.

O filme parte de um caso verídico, o assassinato do antigo deputado Rubens Paiva pela ditadura brasileira em 1971. Retrata o modo como a mulher e os cinco filhos sobrevivem à prisão, desaparecimento e morte do marido e pai. Morte que a ditadura nunca reconheceu. O romance de Sinclair Lewis é uma ficção distópica que parte da premissa de uma vitória, nas eleições de 1936, de um fictício senador democrata, Berzelius “Buzz” Windrip. Este instaura nos EUA um estado totalitário, combinando aspectos do fascismo e do nazismo europeus com tendências populistas norte-americanas. Estas obras tornam muito claro para o auditório o que é viver num país onde as liberdades foram destruídas. Ambas mostram o que é o poder político quando aqueles que o detêm não têm quaisquer limites para o exercer. A vida de qualquer pessoa passa a valer menos que nada. Tudo depende dos humores de quem tem o poder e daqueles que o servem – e nunca lhes faltam dedicados e cruéis servidores.

O grande valor político-ideológico que as duas obras veiculam é o valor da liberdade: das liberdades cívicas e das liberdades políticas. Mostram, indirectamente, que uma democracia liberal, onde o próprio poder está dividido e submetido à lei, onde as pessoas não são perseguidas pelo que pensam e pelo que querem para o país, dentro de regras explicitadas pela lei, é o único regime que respeita a dignidade do homem enquanto ser dotado de razão. Aquilo que qualquer ditadura faz, seja um regime autoritário ou um regime totalitário, não é apenas perseguir os seus oponentes. Ao aniquilar a liberdade dos homens, destrói-lhes a dignidade e nega-lhes a capacidade de dirigir a sua vida e participar, com os seus valores e crenças, na vida da comunidade. Nos dias que correm, estas duas obras recordam aquilo que muitos querem esquecer – e destruir. O valor liberdade e da democracia.