Escrito em 1943 e publicado em
1947, Os Dados Estão Lançados (Les Jeux Sont Faits) é um guião
cinematográfico para um filme como o mesmo título de Jean Delannoy, também de
1947. O horizonte narrativo é o de uma interpretação moderna do Mito de Orfeu.
O amor entre Ève Charlier e Pierre Dumaine não enfrenta apenas a tentação.
Orfeu perde Eurídice por não resistir à tentação de olhar para trás, de olhar
para ela antes da saída do mundo dos mortos. É a necessidade de certificação,
de possuir uma certeza, que perde os amantes no mito grego. No texto de Sartre,
é ainda o passado que perde Ève e Pierre, mas um passado marcado pelas
estruturas e compromissos sociais. Se o conflito inerente ao mito de Orfeu é
entre o amor e o desejo, na obra de Sartre situa-se na escolha – isto é, um
exercício da liberdade – entre um determinismo metafísico que lhes destina o
amor ou um determinismo social que os afasta eternamente.
A narrativa desenrola-se entre
dois espaços: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos vivos é
caracterizado por um regime político distópico. Um regente controla, através da
sua milícia, toda a sociedade, a qual se encontra estruturalmente dividida em
classes sociais rígidas e conflituantes. Ève, uma bela mulher, pertence às
classes dominantes, casada com André
Charlier, um secretário da milícia, uma figura importante do regime. Pierre vem
do mundo operário, um militante que organiza uma insurreição contra o
despotismo do Regente. Têm uma coisa em comum: são ambos traídos. Ève pelo
marido, que a envenena; Pierre por um jovem correligionário tido por traidor,
que dispara sobre ele. É no mundo dos mortos que se encontram. Ora, este mundo
surge como uma estrutura, no início, altamente burocratizada. Os mortos –
melhor, os candidatos a mortos – têm de cumprir formalidades, como se tivessem
de passar numa fronteira. Só quando assinam o documento adequado é que se podem
considerar, efectivamente, mortos.
O mundo dos mortos, no texto de
Sartre, não é o frio Hades, mas o mesmo mundo dos vivos. É nele que os mortos
deambulam sem serem vistos, sem serem ouvidos, sem ocupar espaço. Observam os
vivos, mas não podem interferir nas suas vidas. A morte não á passagem para um
além, mas a transição para o mundo onde se estava, mas agora noutra condição.
Morrer é mudar de condição. A morte é definitiva, a não ser que haja um erro
burocrático. Se um homem e uma mulher estavam destinados um ao outro e não se
chegam a encontrar em vida, é-lhes dada, depois de mortos, uma segunda
oportunidade. Regressam à vida para cumprir o seu destino. Ora, a bela burguesa
Ève e o simples operário Pierre estavam destinados um ao outro, mas na vida
nunca se encontraram. Foi a morte que os aproximou. Ao verem-se no mundo dos
mortos, descobrem o amor.
Retornados à vida, mantendo as
recordações do que viveram no mundo de onde saíram, têm de consumar o amor e
partilhar a existência. Caso falhem, o seu destino é o de Eurídice no mito
grego. Ève e Pierre enfrentam, no entanto, dois obstáculos. Por um lado, o
facto de pertencerem a mundos sociais distintos, o que o amor terá capacidade
de superar. Por outro, a teia de compromissos que os liga às a esses mundo de
onde provêem. Pierre, quando morto, descobre que a tentativa de insurreição que
dirigia está condenada ao fracasso, que a milícia do regente conhece todo o
plano e tem as forças militares preparadas para sufocar a revolta e pôr fim, através
de um banho de sangue, à resistência ao regime opressor. Ève, mais do que
descobrir, constata que o marido a assassinou, por causa da sua fortuna, e se
prepara para enredar Lucette, a jovem irmã de Ève, apenas com 17 anos, numa
teia de sedução, de modo a poder apropriar-se também da herança desta.
Ao voltar à vida devido ao amor
não cumprido, eles deparam-se com a grande pressão do passado. Pierre pretende
avisar os seus camaradas do perigo que correm, mas eles sabem que ele se
relaciona com a mulher do secretário da milícia e, perplexos por ele não estar
morto, apesar do atentado, desconfiam que os traiu. Ève pretende, por seu lado,
avisar a irmã da natureza do marido, do seu carácter malévolo e das intenções
que ele tem tanto para com ela, Ève, como para com a própria Lucette. Esta,
porém, não acredita na irmã. Não crê que o cunhado seja aquilo que é. Pelo
contrário, dele apenas vê a aparência gentil e sedutora. Sartre une os dois
casos sob uma mesma rubrica. A impotência da verdade para tocar aqueles a quem
ela se dirige. Pierre não consegue vencer a reserva dos seus correligionários;
Ève é incapaz de fazer com que a irmã encare a realidade tal como ela é.
É nesta tentativa de levar a verdade àqueles com quem tinham ligações no passado que vai funcionar como uma analogia com o desejo de Orfeu em se certificar, olhando para trás, que Eurídice o segue em direcção ao mundo dos vivos, perdendo-a irrevogavelmente. Tanto Ève como Pierre olham para trás, para o mundo que tinham deixado ao morrer, e isso terá um preço elevado. A grande questão que o texto de Sartre coloca é se o determinismo social é de tal modo forte que funciona como uma causa necessária no comportamento dos indivíduos. Estariam Ève e Pierre de tal modo determinados a não viverem o amor que lhes tinha sido destinado, que eles apenas cumpriram um guião que não dependeria deles? Ora, se se tiver em conta a ideia sartriana de que estamos condenados a ser livres, que todas as nossas decisões e escolhas dependem de um acto livre, o que se poderá dizer é que Ève e Pierre escolheram submeter-se ao determinismo social que exercia sobre eles pressão, em vez de se submeterem a uma espécie de determinismo metafísico que, apesar da improbabilidade, lhes abria o caminho para um grande amor. A subtiliza da obra de Sartre é de mostrar que mesmo a escolha de um determinismo e não de outro é ainda um acto livre, e como todos os actos livres torna os seus autores responsáveis por aquilo em que se tornam. É a isto que alude a máxima sartriana de que a existência precede a essência: aquilo que somos é o fruto das escolhas que fazemos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.