Publicado em 1932, o romance Morfina,
de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para
exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em
situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A
estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos,
acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão
em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro
República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e
reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a
oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções
individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e
provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.
O romance centra-se num talentoso
pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo
das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera,
porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar
um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da
tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através
de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher,
mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece
interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas
e a filha uma angariadora de clientes.
É a tentação erótica representada
por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda,
também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução
de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca
com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz
esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para
dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio
artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia,
de cabarets, de álcool e de
drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.
É também um lugar de rivalidades,
de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja.
Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de
um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade
que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu
presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como,
aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a
negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim
retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.
A queda de Pedro António
inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de
drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa
amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é
um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é
inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo
que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do
ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a
narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles
que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das
personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo.
O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação.
A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas
livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma
escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.
É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.
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