sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A. da Silva Gaio, Mário


Publicado em 1868, Mário – Episódios das Lutas Civis Portuguesas é o único romance do médico e professor de Higiene, na Universidade de Coimbra, António de Oliveira da Silva Gaio. João Gaspar Simões integrou-o, nos anos setenta do século XX, numa colecção denominada Grandes Esquecidos da Editora Arcádia. Se é verdade que A. da Silva Gaio é um autor esquecido – quem lerá hoje o seu romance? –, talvez seja um exagero considerá-lo um dos grandes da nossa literatura. Uma literatura nacional, contudo, não se faz apenas dos grandes nomes, daqueles que os críticos e os programas escolares canonizam. Outros autores existem que, apesar de não serem – e para falar só do século XIX – um Eça, um Garrett, um Camilo ou um Herculano, merecem ser lidos e merecem ser disponibilizados senão em livro de papel pelo menos em livro digital. Silva Gaio seria um desses autores.

Mário, como alguns estudiosos assinalam, está a meio caminho entre o romance histórico e o romance de actualidade. Os factos históricos que representam o cenário onde se desenrola a acção romanesca medeiam entre 1828 e 1834, e dizem respeito à guerra civil que foi desencadeada após as Cortes de 1828 terem aclamado D. Miguel como rei de Portugal. Portanto, a publicação do romance é feita 40 anos após o começo do conflito, o que significa que os factos, as lutas entre liberais e absolutistas, ainda estariam presentes na memória e na vida de muita gente à data da escrita e publicação do romance. É neste horizonte que Silva Gaio cruza uma história de amor e um conflito político, cujas intrigas, tecidas de múltiplas peripécias, se misturam e encontram desenlaces intimamente ligados. A difícil vitória da liberdade foi também a difícil vitória do amor ou vice-versa.

Um dos aspectos centrais é o carácter eminentemente político e partidário do narrador. Este não é um observador neutro que conta uma história cujo destino lhe é indiferente. Pelo contrário, o narrador toma partido pelos defensores do liberalismo, não lhe sendo indiferente o desfecho da guerra civil. Há um claro e procurado subjectivismo na apresentação dos factos narrados. Mais do que a apologia de um espírito liberal, tal como ele é entendido hoje em dia, encontramos a defesa da liberdade e a execração dos despotismo absolutista. Para tal, as personagens centrais são marcadas com vincos fortes e claros, na verdade efectivas idealizações do mal e do bem. O freire da ordem de Malta, Jorge Pinto, é um absolutista empedernido, um cacique beirão, corajoso, mulherengo, autoritário e despótico, com uma capacidade manipulatória servida por uma inteligência aguda. As personagens do lado liberal também são nítidas, sem claros-escuros. O padre Maurício é um santo homem, Teresa é bela, inocente, culta e virtuosa, e Mário é um homem de carácter, corajoso e fiel à liberdade. Durante o tempo da narrativa, nenhuma das personagens atraiçoa, por um instante que seja, a figura ideal que representa.

O romance apesar de ser construído a partir da apreciação subjectiva dos factos pelo narrador, não nos dá uma visão funda da subjectividade das personagens, dos seus dramas internos, das suas incertezas e dúvidas. Elas são, na realidade ideias que se confrontam e combatem, tal como no terreno os exércitos liberais e miguelistas se combatiam. Por outro lado, a obra de Silva Gaio consegue dar a ver ao leitor um momento da nossa história, das visões políticas em confronto, bem como das estruturas sociais que dão forma ao Portugal da época. Existe mesmo uma longa digressão sobre essa história. Talvez o mais surpreendente – mas é possível que o não seja para os historiadores – resida na figura do padre Maurício. Normalmente, tem-se a impressão de que o clero e a Igreja estavam claramente conluiados com os absolutistas, e tinham uma acção deletéria das aspirações à liberdade. Silva Gaio dá-nos a ver um outro clero, não apenas bondoso mas amigo da liberdade e aberto aos novos ideais. De certa maneira, esta visão da Igreja Católica perante os acontecimentos de 1828-1834 não deixa de ter notáveis semelhanças com a visão que se tem da mesma Igreja durante o Estado Novo de Oliveira Salazar. Se a inocência do amor entre Teresa e Mário nos faz sorrir hoje em dia, a ambiência política descrita pelo romance não só ajuda a compreender aquela época histórica, como nos permite perceber alguma coisa da nossa história mais recente, tornando patentes certas linhas de continuidade.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Ensaio sobre a luz (42)

John Florea, Marilyn Monroe, 1954

Dos olhos, de onde haveria de nascer a luz, brota apenas uma sombra, e a sombra cresce, toma conta do corpo, da casa, do mundo, até que a noite desça e o desejo a tudo encerre nos seus braços de pedra. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Filhos e netos


Para o meu neto Manuel.

Há uma diferença essencial, para um pai e avô, entre o nascimento de um filho e o de um neto. O nascimento do filho traz com ele, para além do prazer que a sua vinda significa, problemas práticos. Cuidar dele, educá-lo, prepará-lo para o mundo e para a vida que vai ter de enfrentar. Um pai olha para o filho envolvido no presente. Mesmo quando considera o futuro, fá-lo sempre preso ao agora. O futuro de que fala ao filho não é uma abstracção, mas uma realidade que tem as suas raízes em cada hora que se vive. Aquilo que ele será amanhã está a ser decidido hoje. O nascimento de um neto é uma abertura para a especulação. O avô está liberto da preocupação prática e a forma como olha para o futuro, ao ver o neto recém-nascido, permite-lhe um voo da imaginação que os filhos nunca podem permitir. No neto, o avô prolonga-se num futuro em que ele avô só estará presente por breves instantes, mesmo que sejam anos.

O neto vê já, ainda antes de ter consciência, muito, mas muito mais longe do que o avô alguma vez poderá perscrutar. Embora num horizonte mais reduzido, o filho também o faz, mas o pai está demasiado absorvido no quotidiano que a paternidade impõe para poder meditar sobre isso. O neto, porém, liberta o avô da tirania do presente e abre-lhe um horizonte de esperança e de expectativa. Este horizonte que os olhos cansados do avô já não conseguem circunscrever, passou a existir para o neto, está dentro dos seus olhos e passa a tomar realidade conforme ele os vai abrindo. Um filho dá sentido ao presente. Um neto confere vida ao futuro que não se viverá. Mas esse não viver não é motivo de ressentimento. Que sejamos mortais, isso pouco importa, pois, ao olharmos o neto acabado de nascer, a imaginação e a razão especulativa põem diante de nós a imortalidade.

Estamos num tempo em que se fala muito de tradição. No entanto, a tradição mais fecunda, a mais sólida e a mais autêntica é aquela que é estabelecida dentro das famílias. Mais do que genes transmitidos, são palavras e gestos, formas de olhar o mundo. Tece-se uma corrente, mas não é uma corrente que limita e prende, mas  que leva mais longe e liberta. Um neto liberta o avô das muralhas que o tempo construiu à sua volta e oferece à imaginação a possibilidade de se transportar para um mundo que só pela vinda do neto poderá tornar-se real. A natureza quis-nos limitados e deu ao tempo o poder terrível para fazer cumprir a sua sentença, mas a vida nunca desiste de enfrentar o tempo e de lembrar à natureza que, dentro de nós, seres humanos, há uma esperança de imortalidade. Todo o neto é um símbolo dessa esperança.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

No Limiar da Porta 16. O peso da tempestade

Camille Pissarro, La calle Saint-Honoré después del mediodía. Efecto de lluvia, 1897

16. O peso da tempestade

O peso da tempestade:
grãos de areia abertos
ao dedilhar de Dezembro.

O Inverno vem coberto
de coral e flores de xisto.
O vento varre as ruas.

1978

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, Tons Verdes em Fundo Escuro


Em Tons Verdes em Fundo Escuro (1946), quarto romance da Crónica da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos analisa dois mundos que têm origem fora do espaço social predominante neste ciclo romanesco, a aristocracia e a alta burguesia financeira, que dominavam a sociedade lisboeta dos anos quarenta do século passado. Com Helena Medeiros é retratado o mundo da pintura, da relação estética com a realidade. Com Moura Teles, o do advogado provinciano que chega a Lisboa para triunfar, jogando calculadamente cada uma das peças que a vida lhe coloca no tabuleiro. Obsequioso com os poderosos e frio e destituído de piedade ou princípios com os outros. A figura de Moura Teles – que num romance posterior chegará a ministro do governo de Salazar – é a imagem acabada, sem contemplações, daquilo a que, na nossa tradição literária, se dá o nome de videirinho.

Estes dois mundos cruzam-se através da sexualidade. Grande parte do romance está sob a égide da relação irregular entre Helena Medeiros e Moura Teles, que mantêm um caso amoroso. Essa situação, apesar de nenhum ser casado, no ambiente fechado, provinciano e marcadamente machista, de Lisboa é uma sombra que se derrama sobre a pintora, embora seja, para Moura Teles, um motivo de promoção como homem experimentado e sexualmente vivido. A situação de Helena Medeiros é bastante frágil. A mãe – uma espécie de voz da opinião pública – não lhe perdoa a ousadia e, ressentida pela situação familiar, onde o marido, um aventureiro colonial, sempre deu mais atenção, ainda que longínqua, à filha do que a si mesma, não perde ocasião para lhe dar uma leitura negra do seu estado. Para a mãe, a situação de Helena não é a de uma artista a quem se permite aventuras em nome do sublimidade da arte, mas a de uma mulher por conta do advogado. A obscuridade que paira sobre a vida da pintora é reforçada por esta ao ocultar a situação ao pai.

O romance começa com uma intervenção de Moura Teles num negócio em que está envolvida a sociedade colonial do pai de Helena, embora na altura ele não o saiba. Ele manobra a situação, enquanto advogado, de forma a que a empresa perca o que lhe resta e seja obrigada a vender os terrenos, em África, para um consórcio de que ele faz parte. Um golpe duro sem qualquer contemplação pelos perdedores, aliás seus clientes. Esta entrada em cena de Moura Teles simboliza todo o seu comportamento, nas diversas esferas de acção. Conhecedor da lei, sabendo explorar os pontos obscuros e as fragilidades humanas, o advogado provinciano insinua-se assim tanto entre as pessoas de dinheiro, como o Banqueiro Costa Vidal, como entre a aristocracia decadente, sem poder nem dinheiro, mas com nome e passado, então bens ainda de grande valor no mercado social português.

A relação entre a pintora – que tinha estado em Paris e que voltara a Portugal com a invasão alemã – e o advogado resulta de um acaso e não de uma atracção amorosa entre ambos. Ela deixa-se levar por uma certa inocência e ele pelo desejo e pelo cálculo. Na verdade, no ambiente intelectual de Lisboa, Helena Medeiros atraía os homens e tê-la como amante era motivo de valorização nesse tráfico de comparações, que os homens são incapazes de deixar de fazer para se assegurarem da respectiva virilidade. O resultado foi aquele que era expectável. Moura Teles nunca deixou de manobrar para obter um casamento que lhe permitisse outros voos. E quando descobre a sua oportunidade junto de uma jovem aristocrata desiludida no amor, não hesita em jogar a sua sorte. O videirinho provinciano, bem relacionado com o mundo do dinheiro, é um óptimo partido para o pai arruinado da sua futura mulher. O casamento de Moura Teles é um belo contrato comercial. O sogro ganha a possibilidade de resolver os seus problemas financeiros e ele adquire um estatuto social que não estaria, de outra forma, ao seu alcance.

Helena depois de uma exposição com resultados frustrantes, de um conflito com o pai e cansada dos limites da vida lisboeta, acaba por abandonar o país para voltar a Paris, já libertada da presença alemã. Como noutros romances do ciclo, o autor interroga-se sobre a questão da inocência e da culpa e retrata, com precisão, a falta de escrúpulos, a habilidade rasteira, a falta de nobreza, que se tornaram a condição necessária para o triunfo no país cinzento, paroquial que Portugal então era. A grande personagem do romance, delineada com precisão e brilho, é Moura Teles, um exemplo claro daqueles que tratam os seus semelhantes não como seres dignos de respeito, mas como meros objectos ao serviço dos seus interesses. Através do advogado provinciano e videirinho é a sociedade de então que Paço d’Arcos torna patente ao leitor.

domingo, 25 de novembro de 2018

Ensaio sobre a luz (41)

Yousuf Karsh, Pablo Casals playing, 1954

No princípio, era a música e a música iluminou o mundo, expandindo-se as ondas sonoras como raios de luz, que nos oferecem, ao tocar-nos, a música das esferas celestes.

sábado, 24 de novembro de 2018

Descrições fenomenológicas 34. A mão vazia

Francisco Soto Mesa, 5.01.1, 2001

Fixou os olhos e, como se fosse cego, tirou um cigarro do maço e levou-o à boca. Depois, abriu a caixa de fósforos, subtraiu um e fê-lo deslizar pela superfície áspera da lixa, colada à lateral da caixa. Uma chama viva acrescentou um pouco de luz àquela que caía sobre ele. Os seus olhos não se moviam. A mão, com o fósforo preso nos dedos, viajou até ao cigarro e abrasou-lhe a ponta. Uma baforada de fumo soltou-se da boca e traçou, como se anunciassem o caos, espirais e labirintos que logo se desfizeram, perdendo-se no amarelado do tecto. Tornou a sugar o cigarro, não sem que uma imagem de ansiosa dor lhe toldasse o rosto. Quem o olhasse podia perceber o movimento do peito enquanto o fumo chegava aos pulmões, para logo sair, ora pelo nariz, ora pela boca. O olhar, porém, parecia inamovível, preso a qualquer coisa que o fascinava. Um rito escarninho riscou-lhe a face, mas logo a mão levou o cigarro à boca e tudo se recompôs. Não havia silêncio naquele lugar, pessoas iam e vinham, conversavam, trocavam olhares, as portas abriam-se e fechavam-se. Tudo era movimento, apenas o seu olhar estava preso, suspenso, extático. Com a mão esquerda acariciou a garrafa de bourbon, ergueu-a e inclinou o gargalo para o copo vazio. Quando líquido atingiu uma altura de dois dedos, parou sem olhar, mas não largou a garrafa. A mão parecia encontrar ali um ponto de salvação. Os dedos engalfinhavam-se a apertavam o vidro com força. Então, os olhos moveram-se lentamente, acompanharam um vulto. Viram-no caminhar, abrir a portar e sair. Quando a porta se fechou ouviu-se os estilhaços de um garrafa a tilintar no chão de mármore. A sua mão estava vazia.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Machismo e ideologia

Gustav Klimt, O beijo, 1907-8

A ideia da superioridade moral dos comunistas infestou até uma pessoa como Joaquim Vieira. Ao realizar a biografia de José Saramago terá descoberto que o Nobel português da literatura era um machista. Na entrevista agora concedida ao Público é dito: "O machismo é mais surpreendente no Saramago por causa da sua posição ideológica. Uma pessoa não está à espera disso”. Não me interessa, diga-se de passagem, se Saramago era ou não machista. Interessa-me, porém, esta associação entre moral e posicionamento político-ideológico. No momento em que aceitarmos que uma dada posição política implica uma conduta moral superior à de outras posições políticas, então já matámos - nem que seja no espírito - a democracia. Fará sentido escolher políticos que são moralmente inferiores? A ideia de superioridade moral dos comunistas nada tem a ver com a moral, mas com uma estratégia política dos próprios comunistas. Que eles a usem, ainda se entende. Que pessoas como Joaquim Vieira fiquem surpreendidas por verem um comunista sofrer dos mesmos pecados que qualquer outra pessoa é que é surpreendente.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

No Limiar da Porta 15. Pássaros e anjos poisam na árvore

Mateo Hernández, Pájaros

15. Pássaros e anjos poisam na árvore

Pássaros e anjos poisam na árvore
dos teus dedos e vacilam ao cantar.

São o silêncio no estio dos ramos
e esperam no silvar do fogo
a cinza rude da folha calcinada.

1978

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 7

Kees Scherer, Amsterdam, 1951-1956

Era tanto o calor que, durante o passeio nocturno, me sentei no banco do velho jardim. O corpo, submetido à inclemência do Verão, parecia incapaz de suportar o peso e, contra o que era o hábito, as pálpebras queriam acrescentar escuridão à escuridão da noite. Nem a iluminação pública impediu que inclinasse a cabeça nas costas do banco e adormecesse. Quando acordei, estava regelado e noite escura cobria-se de neve. Árvores e arbustos tinham perdido o folhedo e o Inverno descia impiedoso sobre os meus ombros. Se sonhei, não retive o sonho. 

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Irvin D. Yalom, A Cura de Schopenhauer


Na literatura ocidental a relação entre Eros e Thanatos, entre o amor e a morte, tem uma vasta fortuna, por norma marcada pelo infortúnio dos amantes, como se a morte fosse o castigo pela desmedida da paixão amorosa. O romance do psicanalista Irvin D. Yalom, A Cura de Schopenhauer, traz consigo uma inusitada relação entre os dois termos, na qual se quebra a relação de continuidade entre o amor e a morte, para a considerar numa relação em que o destino da compulsão erótica e o trabalho da morte surgem desligados da tradicional figura do par amoroso.

Jules Hertzfeld, um psicoterapeuta de sucesso, descobre subitamente que, devido a uma doença oncológica, o prazo da sua vida está reduzido a um ano. Perante a entrada em cena de Thanatos, decide procurar um dos casos de insucesso da sua prática terapêutica. Phillip Slate foi seu paciente durante cerca de três anos. Era adicto em sexo e, durante o tratamento, não registou qualquer melhoria. Assim, um Eros compulsivo e um Thanatos inexorável encontram-se não na figura de dois amantes mas na de paciente e de terapeuta. Quando Hertzfeld encontra Slate, este diz-se curado da sua compulsão. A leitura de Schopenhauer, com o seu pessimismo e a sua misantropia empedernidos, salvou-o da dependência viciosa da sexualidade. Liberto do tormento, está mesmo em vias de se tornar, ele mesmo, um terapeuta filosófico.

O psicoterapeuta condenado está decidido a prosseguir o seu trabalho até que a morte chegue. É no âmbito desta decisão que estabelece um acordo com o seu ex-paciente. Este necessita, para poder exercer, de uma supervisão. Hertzfeld aceita ser seu supervisor, devendo Slate passar a frequentar as sessões de terapia de um grupo, que o primeiro dirige. Por seu turno, Hertzfeld vai deixar-se instruir pela filosofia de Schopenhauer, sob orientação de Slate. A terapia de grupo, essa pequena comunidade de pacientes em busca de si, é o lugar que o autor escolhe para mediar essa relação sem fim entre o amor e a morte, sob a égide da sombra tutelar do filósofo alemão.

No grupo, as várias figurações do amor, da sua perda, da sua ilusão convivem com as figurações da morte, tanto a que está omnipresente na figura do terapeuta como a que se manifesta nos temores dos pacientes. O interessante é que há uma espécie de troca entre Hertzfeld e Slate. Slate curado da compulsão erótica tornou-se, à imagem de Schopenhauer, um misantropo que evita olhar os outros nos olhos, enquanto oferece explicações filosofantes, despidas de emoções, sobre os problemas dos companheiros de terapia. O Eros compulsivo tornou-se numa espécie de morte emocional. Por seu lado, Hertzfeld condenado à morte pela doença esforça-se para se abrir ao grupo, num acto amoroso, num Eros que de algum modo se transmuta em Ágape, em amor compassivo.

Este romance de Yalom, como os outros que escreveu, tem uma função pedagógica no âmbito da formação de psicoterapeutas. No entanto, ele ultrapassa essa função formativa e afirma-se como obra literária onde se entretecem, no círculo do grupo em terapia, as narrativas daquele que vai morrer, Hertzfeld, daquele que está morto e, sem o saber, procura a vida, Slate, mas também a de Schopenhauer, do qual, ao longo do romance, é traçado um retrato psicológico e filosófico fundado na sua biografia. O grupo de terapia revela-se desse modo mais do que um instrumento de cura para patologias existenciais, revela-se como um dispositivo literário que tem por função revelar as personagens e o sentido dos seus actos e das opções que fazem na vida.

sábado, 17 de novembro de 2018

Ensaio sobre a luz (40)

Erwin Blumenfeld, 3 profiles, 1952

A luz decompõe-se com obstinado rigor. Áspera, ardente, alva, vacila sobre os rostos, torna-se crepúsculo se uma rosa se desfolha, funde-se na noite quando o silêncio desce sobre a intimidade de uma boca.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 6

Erwin Blumenfeld, Pictured in the cat’s eyes -  Lilli Palmer and Rex Harrison, 1950

Sonhei que existia nos olhos abertos de um gato. Se ele os fechava, eu deixava de existir. Quando ele os abria, retornava à existência e contemplava o mundo não com os olhos de um gato mas a partir dos olhos do gato. Não sei se o sonho foi longo ou um dos que, apesar de parecer interminável, dura apenas uns instantes. Quando a luz daquele Verão interrompeu a noite, acordei, bocejei e espreguicei-me. Não me lembro do que pensei, mas sei, ainda hoje, no que me transformei. Sou agora, para minha perdição, um gato, negro e brilhante, que habita nos olhos de um homem.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

No Limiar da Porta 14. Esse corpo, lago

Erwin Blumenfeld, Variant of Vogue U.S. cover March 15, 1945

14. Esse corpo, lago

Esse corpo, lago
de brancura
na porta esquiva
da obscuridade.
Uma geografia
de sombra e sede,
a duna do deserto
a dançar ao sol.

1978

sábado, 10 de novembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos


Foi só agora que cheguei à leitura de Joaquim Paço d’Arcos (1908-1979). Não fazia parte daquele grupo de escritores tidos por referência, apesar de ter sido bastante lido nos anos 40 e 50 do século passado. Visto como próximo do Estado Novo, no qual foi, entre 1936 e 1960, chefe dos Serviços de Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, isso não terá ajudado, numa época em que grande parte dos escritores mais importantes estavam do lado da oposição, a que o seu nome persistisse na memória. Também o seu opúsculo A Dolorosa Razão duma Atitude (1965), onde se demarca da Sociedade Portuguesa de Escritores, da qual era Presidente da Assembleia Geral, quando esta atribui o prémio de Novelística a Luandino Vieira (preso político acusado de terrorismo), terá contribuído para o seu relativo apagamento no panorama literário nacional.

Esta rasura do autor, porém, parece-me claramente injustificada. O ciclo romanesco Crónica da Vida Lisboeta, composto por seis romances (Ana Paula, Ansiedade, O Caminho da Culpa, Tons Verde em Fundo Escuro, Espelho de Três Faces e A Corça Prisioneira), é uma obra de grande fôlego e cuja leitura é essencial para perceber o país entre os finais dos anos 30 e meados dos anos 50. Do ponto de vista literário, a leitura ordenada do ciclo mostra que o escritor vai crescendo de um romance para o outro. Os enredos vão-se tornando mais complexos, as personagens mais ricas e a análise psicológica e social mais subtil. A própria linguagem, que no primeiro romance soa como levemente anacrónica, talvez ainda presa aos costumes da época, sofre uma evolução modernizadora no decurso dos outro romances.

A sociedade lisboeta retratada é a da aristocracia, em fase de decadência, e a da alta burguesia financeira, tendo como pano de fundo o regime do Estado Novo. O retrato destas classes é impiedoso. Um mundo de interesses, de traições, de patetas emproados e videirinhos impiedosos e loquazes. O retrato irónico das classes altas não pode deixar de contaminar o próprio regime, com o seu provincianismo. Ao mesmo tempo, percebe-se, através destes romances, a acção das oposições, tanto dos reviralhistas republicanos, como dos monárquicos saudosos do Rei e, acima de todos, do próprio Partido Comunista. Sobre todos este figurantes do drama nacional daqueles tempos abate-se um olhar penetrante e irónico, uma visão crítica e, surpreendentemente, descomprometida e livre. A leitura destes romances de Paço d’Arcos é fundamental para compreender uma certa Lisboa – e um certo Portugal – de que o país actual, muito mais do que pensamos, é herdeiro e continuador.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, O Caminho da Culpa


Se em Ana Paula, primeiro romance do ciclo Crónica da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos retrata a resistência da moral apolínea, encarnada pela protagonista, aos avanços de Eros, em O Caminho da Culpa, é o Eros vitorioso que se manifesta em toda a sua amplitude e em todas as suas consequências. A fortaleza das convenções sociais, da moral comum e da tradição, as máscaras sob as quais a moral apolínea impõe o seu jugo aos impulsos eróticos, mostra-se impotente para conter o fluxo do desejo que essa mesma moral visa domesticar e ordenar.

Seria uma leitura pobre ver no romance a mera tematização do adultério e do suicídio, tomados na sua dimensão meramente moral e social. O que nos é mostrado é a tensão entre o desejo e a convenção, é a luta entre o ser e o dever. Eros desafia não apenas as convenções sociais mas também, e fundamentalmente, as convenções pessoais e psicológicas, para revelar a realidade crua. O tempo da narrativa é o dos anos quarenta do século passado. A obra foi publicada em 1944 e nota-se nela a percepção de que a guerra, que então grassava pelo mundo, estava a deixar de pender para o lado alemão. Este tempo de convulsão exterior é rebatido numa Lisboa em paz, onde se pode especular sobre o desígnio dos deuses da vitória, sem que os portugueses tenham de se confrontar com a dura realidade da violência e da destruição.

É nesta ambiência morna que os negócios prosperam e as ambições humanas, das classes altas de Lisboa, encontram terreno para a sua concretização. É aí que se movem, como se não lhe pertencessem, o médico Paulo de Morais e a aristocrata Eugénia de Macedo. O médico – que seria, do ponto de vista ideológico, um comunista, embora não praticante – tinha, devido à sua reputação, por clientela os sectores mais elevados da sociedade lisboeta e era entre estes estratos sociais que se movia. Íntegro como pessoa e com um casamento ordenado, fecundo e feliz. Eugénia dedicava-se a uma vaga organização de caridade e mantinha um casamento convencional, do qual não havia filhos, mas que ela nunca pensara pôr em causa ou encontrar, para a monotonia da vida conjugal, uma compensação numa aventura extramatrimonial.

É a aproximação dos dois, por motivo de doença do pai dela, que desencadeia o violento ataque de Eros. Mais do que o adultério e a destruição dos casamentos, o que está em causa é a tensão que o desejo provoca em dois seres tão racionais e tão submetidos a um modo de vida apolíneo, com a submissão às regras que a razão ordena na vida social e pessoal. Não é a instituição social do casamento que o impetuoso Eros atinge, mas a pessoa de cada um dos amantes, a vida dela e a consciência dele.

Como é norma na tradição ocidental, Eros está ligado aos impulsos de vida e de morte e são esses impulsos que tomam corpo em Eugénia. Ela que sempre desejara um filho, estava agora grávida do médico. Por outro lado, os impulsos de morte manifestam-se no surgimento de um cancro no seio. O ponto central do romance joga-se aqui. Paulo de Morais sabe que a doença de Eugénia é mortal, não tendo sido ela, por culpa própria, operada a tempo, sabe que o seu amor não tem futuro e perante a tragédia da mulher amada e a vida que tem pela frente, opta por não abalar nenhum dos casamentos. Apolo estendeu-lhe a mão e ter-lhe-á parecido uma bravata inútil romper as aparências e as convenções sociais. Do outro lado, porém, Eugénia está dilacerada entre a morte que a chama e a vida de um filho – o qual se nascesse abalaria o seu casamento – que tinha surgido no tempo e no espaço errados. O suicídio é a solução do dilema que, literalmente, lhe rasgava a carne.

O romance, na verdade, é uma reencarnação da velha tragédia grega, marcada pela tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, entre as forças da ordem e as forças do caos. Paulo de Morais e Eugénia de Macedo, ao libertarem-se do convencionalismo das suas vidas, que fazia deles marionetas dos respectivos papéis sociais, submeteram-se a um senhor mais poderoso e mais impiedoso. As forças dionisíacas levaram para a morte a parte mais fraca, Maria Eugénia, e, apesar do recurso à razão apolínea, abriram uma brecha na consciência do médico perante a hesitação entre o amor sem destino e a convenção da vida respeitável de um médico das classes altas, preocupado com o destino dos desvalidos deste mundo. Com o suicídio dela e a hesitação dele, Eros tornou patente a crueza da realidade e, como é normal, Diónisos e Apolo obtiveram um empate.

domingo, 4 de novembro de 2018

A voz do diabo


Há um poema de Jorge de Sena, escrito em 1971, que começa com a seguinte estrofe: “Passando onde haja túmulos / - e há pó de humanos sempre onde se passe - / quanta maldade jaz ali dispersa / pronta a ser respirada por outros homens / que a têm na carne como herança dela: / quanta traição mesquinha range os dentes / e faz as suas contas de futuro: quanta vileza ainda se espoja em raiva / de não ter sido uma vileza inteira. / E é isto a humanidade.” ( J. de Sena, Exorcismos, 1972) A maldade é a mais persistente das heranças humanas. O cristianismo, na sequência do judaísmo, fê-la nascer no advento do próprio Homem, naquilo que ficou conhecido pelo pecado original. Esse momento simbólico abriu caminho para que, a cada instante, um qualquer Caim mate um qualquer Abel.

Durante muito tempo, na infeliz história da nossa espécie, a violência e a maldade foram respondidas com violência e maldade, muitas vezes acrescidas exponencialmente. A partir do século XVIII, com o Iluminismo, o mundo ocidental começou a moderar as suas respostas a essa violência e a essa maldade. Direitos constitucionais e códigos penais civilizados tiveram o inesperado efeito de ir reduzindo a violência e o mal nessas sociedades. Não devemos, contudo, esquecer as palavras do poeta. Temos a maldade na carne como herança. E a maldade que habita a carne de qualquer cidadão pacato é suficiente para, num tempo como aquele em que vivemos, lhe fazer perder a cabeça e, ao mergulhar a sua voz na da turbamulta, pôr em causa os princípios civilizados que desde o Iluminismo temos vindo – por vezes, com trágicos recuos – a construir.

Quando escutamos a voz do povo – e hoje em dia a voz do povo está nas redes sociais – temos o dever de ficar bastante preocupados. Com frequência, demasiada frequência, vêem-se ataques raivosos aos principais pilares da vida civilizada, pressente-se um desejo de destruição daquilo que foi codificado sob o nome de direitos humanos, observa-se, mesmo num país pacífico e de baixa criminalidade como o nosso, uma pulsão letal para a vingança, para um justicialismo primário e perigoso. Esse mal que habita a nossa carne está cansado de estar contido, de ser obrigado a refrear a sua natureza e está a tomar conta das pessoas. A voz do povo é a voz de Deus, diz um velho provérbio tão ao gosto do senso comum. O senso comum, por norma, engana-se. A voz que se escuta não é a de Deus. É a voz desse mal que habita na nossa carne, é a voz do diabo, cuja língua se está a soltar.

sábado, 3 de novembro de 2018

No Limiar da Porta 13. A fronda da ausência

Sebastião Salgado, Oil wells firefighter, Greater Burhan, Kuwait, 1991

13. A fronda da ausência

in memoriam de Jorge de Sena (2)

A fronda da ausência,
o destino e a distância,
a letra lêveda
moída
na mó do poema.

Pátrias são palavras,
flocos de neve
na poeira do verso.

Na ermida do exílio,
um cometa e erva canária.

1978

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 5

Justenus van Rijkom, Canal Amsterdam, 1890s

Esse sonho que volta sempre, que me invade as noites com a sua luz irreal para desaparecer chegada a manhã. As águas do canal deslizam sonâmbulas, reflectem o casario gasto pelos anos e eu ali vou, vestido de negro, fúnebre. Do outro lado vem sempre a mesma rapariga vestida de branco. Quero falar-lhe, esboço um gesto e quando ela me olha, os seus olhos são apenas dois buracos vazios. Nesse instante, acordo, a luz da manhã entra pelas portadas mal fechadas. Levanto-me mal refeito da surpresa.