segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Camilo Castelo Branco, A Queda d'um Anjo


Publicado em 1866, o romance A Queda dum Anjo (para uma visão rápida e esquemática da obra ver aqui ou aqui) será, juntamente com Amor de Perdição, uma das obras mais lidas de Camilo Castelo Branco. Algumas leituras apressadas vêem na obra uma crítica à corrupção de costumes ou uma paródia ao que se vivia em Portugal, na época, ou mesmo uma espécie de gargalhada que Camilo lança ao rir-se de si mesmo. A obra talvez permita essas leituras. No entanto, elas parecem claramente redutoras daquilo que o romance permite ler. 

A temática da queda é central na cultura judaico-cristã. A queda de Adão e Eva ou a queda de Lúcifer, o anjo da luz, são mitos estruturantes do nosso imaginário e estão presentes na própria construção da obra. Fundamentalmente, a queda do casal originador da espécie humana. O que surpreende na leitura do romance é que a queda não arrasta consigo o castigo. Pelo contrário, a queda trouxe a felicidade ao herói caído. Se há ironia na obra, ela começa com o título e a forma como a temática da queda é tratada.

Duas linhas de reflexão podem ser interessantes. Uma diz respeito à tensão entre eternidade e historicidade. A segunda mobiliza os pólos da convenção e da natureza. Da conjugação destas duas linhas poder-se-á encontrar uma chave de leitura que se coloque para além das abordagens escolares e rotineiras sobre esta obra de Camilo. A queda é o elemento central onde se cruzam estas duas linhas.

O decaído é Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas, fidalgo minhoto, casado com a sua prima D. Teodora de Figueiroa. Um conservador, de orientação miguelista e, por isso mesmo, antiliberal, de horizontes existenciais puramente paroquiais, que vive fechado na leitura dos clássicos, nomeadamente os clássicos portugueses, os quais, para o fidalgo de Agra de Freimas, não iam para além de D. Francisco Manuel de Melo. O mundo, os modos e a moda são aqueles que o tempo cristalizou e que, aos olhos de Calisto Elói, constituem a eterna essência da portugalidade. Vivendo na aldeia de Caçarelhos, no concelho de Miranda do Douro (hoje a aldeia pertence ao concelho de Vimioso), o fidalgo acaba por ser eleito para o parlamento, onde entra como uma espécie de deputado independente.

Um dos traços fundamentais para o leitor de hoje perceber o Portugal de então reside na distância a que Lisboa ficava de Miranda. A distância deve ser medida em tempo e não em quilómetros. Quinze dias levavam os protagonistas do romance da capital a Miranda do Douro. Os quinze dias simbolizam muito mais que a mera morosidade dos transportes. Simbolizam a distância que vai da eternidade à historicidade. Ao ser eleito, Calisto Elói apresenta-se no parlamento como uma figura anacrónica, intempestiva, vestido de uma forma que há muito passara de moda e com um português, também ele e apesar da sua suposta pureza, desfasado do calão político que dominava o parlamento.

Há, neste primeiro momento de Calisto Elói em Lisboa, uma construção da personagem que roça o D. Quixote. Apesar dos discursos do deputado mirandense trazerem um certo sentido moral que tocava os corações, a verdade é que, o mais das vezes, ele combatia moinhos de vento, como é o caso do célebre discurso contra o luxo e a depravação dos costumes pelo teatro. O ridículo emergia do choque daquilo que a personagem pensava ser a visão eterna da portugalidade com uma realidade mesquinha, que é a realidade historicamente determinada que é dada a viver aos homens. Contudo, este ridículo não se confunde com o da comédia grega. Nesta, o ridículo é gerado pela baixeza e vulgaridade das personagens; no romance de Camilo, o cómico nasce do deslocamento de uma personagem nobre que é transportada de um mundo supostamente imutável para o centro da história do país.

O agenciamento da queda de Calisto Elói fica a cargo do amor, do súbito apaixonamento - uma experiência incoativa aos 44 anos de idade - por uma jovem e belíssima viúva. É Ifigénia Ponce de Leão a Eva que seduz Calisto. A escolha do nome Ifigénia para este papel não deixa, também ele, de ser irónico. Ifigénia é o nome da filha de Agamémnon, a virgem sacrificada aos deuses para que a armada grega possa rumar a Tróia. Interpretar a personagem camiliana como uma mera Eva sedutora e provocadora da queda na perdição é redutor. Assim como o sacrifício - i. e., a sua entrega aos deuses - da Ifigénia grega permitiu que a armada helénica se dirigisse para Tróia e que a roda da história humana se movesse, também é a entrega de Ifigénia a Calisto Elói que vai fazer com que este se desloque da suposta e convencionada eternidade em que vivia para dentro da história, para o interior do seu próprio tempo. Através de Ifigénia, o morgado de Agra de Freimas entra na temporalidade e na historicidade, abandonando a eternidade de uma história mitificada. Em linguagem da cosmologia aristotélico-ptolemaica, Calisto Elói desceu - melhor, caiu - do mundo supralunar, puro e eterno, ao mundo sublunar das coisas vivas e corruptíveis.

A sedução que Ifigénia exerce sobre o herói conduz à ruptura do casamento deste com a sua prima Teodora Figueiroa, um casamento de conveniência sem finalidade visível. De facto, a junção dos dois morgadios, o de Agra e o de Figueiroa, era uma aliança matrimonial muito interessante, pois permitia ampliar o património do morgado a vir. Contudo, a natureza nunca suportou este casamento convencionado, pois nunca se dignou revolver as entranhas de D. Teodora de forma a que o casal tivesse descendência. É este matrimónio, que a natureza nunca subscreveu, que é arrastado com a queda de Calisto Elói. É nas situações não convencionais, resultantes da paixão erótica de Calisto ou do desejo de vingança de Teodora, que a natureza vai falar, dando dois filhos à ligação do morgado com Ifigénia, e um filho à relação, nascida do despeito e do desejo de vingança, de Teodora com um primo. Torna-se, deste modo, claro que a natureza é mais forte e potente que a convenção. Frágil é a linguagem das convenções e regras humanas perante a força da natureza. Frágeis são os contratos, alicerce de uma racionalidade civil, perante a força do desejo e do sentimento.

Estranha queda esta. Calisto Elói cai na temporalidade e na historicidade, cai na natureza humana com o que ela tem de contraditório. Esta queda, porém, deve ser lida como uma libertação a vários níveis. Libertação de uma eternidade ideológica resultado de convenções que se foram mitificando e petrificando. Libertação da convenção social e dos ardis burocráticos da razão e uma descoberta da natureza, onde o amor e o desejo erótico falam mais alto que o interesse económico e as convenções sociais de casta. Libertação, por fim, da própria personagem romanesca de Calisto Elói. Tinha tudo para ser mais um cavaleiro da triste figura, mas a queda salva-o do ridículo e devolve-o à condição de homem, recentrando a sua virilidade, abrindo-a aos imperativos de Eros, e reorientando o olhar com que passa a observar o mundo, tornando-o capaz de compreensão do tempo histórico que lhe foi dado viver.

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