A rectidão suprema parece
sinuosa.
A habilidade suprema parece
desajeitada.
A eloquência suprema parece
balbuciante.
Lao Tse, Tao Te
King, XLV
Sentou-se
no silêncio do deserto e esperou pela noite. A areia escaldante do meio-dia tornava-se,
a cada hora, mais fria e o corpo esquecia o calor e mergulhava na recordação
longínqua dos invernos tempestuosos da montanha onde nascera. Olhava as estrelas
no firmamento e lembrava-se das velhas histórias de Zenão, o eleata. Nas
primeiras horas, considerou a remota hipótese de um dia Aquiles ultrapassar a
tartaruga e vencer essa eterna corrida. Meditou na linha recta e na sinuosidade
da curva, mas em todas elas a tartaruga já abandonara o lugar onde Aquiles,
lépido, poisava o alado pé.
Para vencer
o sono que a noite trouxera, abandonou Aquiles e a tartaruga ao seu destino e
contemplou a flecha que, voando, estava em repouso. Parece desajeitado o
arqueiro que lança tal flecha, mas isso é apenas uma ilusão trazida pela
precipitação dos frágeis e enganadores sentidos. Na verdade, não há mais
perigoso guerreiro do que aquele que, pegando com suavidade no arco, lança a
flecha que imóvel se move, nunca trocando o aqui por um ali. Assim, vê cair o
inimigo abatido não pelo projéctil que lhe entra no corpo, mas pela infinita visão
da imóvel flecha que o matará.
Quando a
noite começou a entregar-se nos braços da aurora quis esquecer os paradoxos do
eleata e deixou a consciência mover-se para o passado. Lentamente, recuou na
sua vida. Em todas as etapas, porém, assaltavam-no visões de Aquiles e da
tartaruga ou da flecha que voando repousava eternamente. Descobriu que,
impulsionado por tais paradoxos, se entregara, nos dias de maturidade, à
eloquência. Nos anfiteatros e nas praças, via-se a discorrer sobre o mundo e os
seus negócios, por vezes sobre os seus segredos. Um rio de amargura
atravessou-lhe o peito e, fugindo da dialéctica, entrou na pátria da infância.
Chegou ao tempo das primeiras letras, depois aos despreocupados dias onde os
deveres não lhe reclamavam a vida. De súbito, sentiu o instante onde as primeiras
palavras lutavam contra a insensatez da língua e saíam, balbuciantes e
incrédulas, para a rua. Nessa hora, um raio iluminou-o por dentro, ergueu-o,
translúcido, sobre as areias do deserto, enquanto o Sol rasgou o horizonte e a
luz anunciou o novo dia.
Um texto notável. Absolutamente!
ResponderEliminarO calcanhar de Aquiles do Homem é não poder regressar ao passado e, então, fazer um futuro diferente.
Um abraço
Muito obrigado, JRD.
EliminarAbraço e boa semana