domingo, 9 de dezembro de 2012

Meditações taoistas (7)

A rectidão suprema parece sinuosa.

A habilidade suprema parece desajeitada.

A eloquência suprema parece balbuciante.
Lao Tse, Tao Te King, XLV

Sentou-se no silêncio do deserto e esperou pela noite. A areia escaldante do meio-dia tornava-se, a cada hora, mais fria e o corpo esquecia o calor e mergulhava na recordação longínqua dos invernos tempestuosos da montanha onde nascera. Olhava as estrelas no firmamento e lembrava-se das velhas histórias de Zenão, o eleata. Nas primeiras horas, considerou a remota hipótese de um dia Aquiles ultrapassar a tartaruga e vencer essa eterna corrida. Meditou na linha recta e na sinuosidade da curva, mas em todas elas a tartaruga já abandonara o lugar onde Aquiles, lépido, poisava o alado pé.

Para vencer o sono que a noite trouxera, abandonou Aquiles e a tartaruga ao seu destino e contemplou a flecha que, voando, estava em repouso. Parece desajeitado o arqueiro que lança tal flecha, mas isso é apenas uma ilusão trazida pela precipitação dos frágeis e enganadores sentidos. Na verdade, não há mais perigoso guerreiro do que aquele que, pegando com suavidade no arco, lança a flecha que imóvel se move, nunca trocando o aqui por um ali. Assim, vê cair o inimigo abatido não pelo projéctil que lhe entra no corpo, mas pela infinita visão da imóvel flecha que o matará.

Quando a noite começou a entregar-se nos braços da aurora quis esquecer os paradoxos do eleata e deixou a consciência mover-se para o passado. Lentamente, recuou na sua vida. Em todas as etapas, porém, assaltavam-no visões de Aquiles e da tartaruga ou da flecha que voando repousava eternamente. Descobriu que, impulsionado por tais paradoxos, se entregara, nos dias de maturidade, à eloquência. Nos anfiteatros e nas praças, via-se a discorrer sobre o mundo e os seus negócios, por vezes sobre os seus segredos. Um rio de amargura atravessou-lhe o peito e, fugindo da dialéctica, entrou na pátria da infância. Chegou ao tempo das primeiras letras, depois aos despreocupados dias onde os deveres não lhe reclamavam a vida. De súbito, sentiu o instante onde as primeiras palavras lutavam contra a insensatez da língua e saíam, balbuciantes e incrédulas, para a rua. Nessa hora, um raio iluminou-o por dentro, ergueu-o, translúcido, sobre as areias do deserto, enquanto o Sol rasgou o horizonte e a luz anunciou o novo dia.

2 comentários:

  1. Um texto notável. Absolutamente!
    O calcanhar de Aquiles do Homem é não poder regressar ao passado e, então, fazer um futuro diferente.
    Um abraço

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.