Quem procura modificar o
mundo,
Vejo, não o conseguirá.
O mundo, como o espírito, não
pode ser modificado.
Quem o modela, destruí-lo-á.
Quem o possui, perdê-lo-á.
Lao Tse, Tao Te
King, XXIX
Também
Orfeu, filho de Eagro e Calíope, julgou um dia poder arrebatar da morte
Eurídice, a sua amada. Desceu aos infernos e, entre espectros e fantasmas,
armado da lira e do canto quis sobre a morte fazer reinar as leis do amor.
Rendeu-se ao seu canto Tântalo, o supliciado, rendeu-se Sísifo cansado de tanto
rolar a enorme pedra montanha acima, renderam-se as Euménides, fúrias
devastadoras em cujos olhos o canto de Orfeu fez crescer uma água sem fim,
rendeu-se, por último, Perséfone, a rainha das trevas, administradora dos
mortos, deusa severa de olhar frio como as noites de Janeiro.
Por um
momento, no coração de Orfeu, na parca esperança dos homens, tudo foi possível:
um mundo novo emergira no ânimo das gentes e era agora uma matéria plástica
dada à ávida fabricação de cada um. Aquele queria um rio azul de águas claras,
o outro, a neve branca como o sal, um outro aspirava a um reino onde a luz
fosse eterna. Orfeu, porém, apenas desejava Eurídice, a ninfa de pele suave que
um dia em suas mãos suspirara.
Perséfone,
a voz da álgida necessidade, uma condição prescreveu para entregar à vida a
mais bela sombra que habitava o reino da morte: "Eurídice será livre das
cadeias mortais, se tu, Orfeu, enquanto atravessares o meu reino não virares a
cabeça para trás em busca do olhar doce de Eurídice. Se o fizeres, ela
perder-se-á para sempre." Animado de esperança, ele assentiu, e iniciou a
longa jornada de regresso. Mas Orfeu já era apenas um mortal, uma sombra
adiada.
Esquecera
as águas de manchadas negro pelo homem que um dia desejou um rio azul de águas
claras, esquecera o enxofre semeado por aquele outro que sonhara com a neve
branca como o sal. Da sua memória desaparecera mesmo aquele homem que extinguiu
na cidade, onde com tanta veemência proclamara um reino de luz eterna, o último
raio de sol. No coração de Orfeu, inscreveu-se um aguilhão insuportável, um
anseio sombrio de reter em suas as mãos de Eurídice. Nesse instante, a amada
tornou-se, presa ao desejo daquele que a conduzia, na sombra de uma sombra,
iluminada pela luz negra que do olhar de Orfeu se desprendia.
sempre achei que foi a palavra a culpada pelo desabar deste desafio à morte, Eurídice e um sussurro.
ResponderEliminarContinuo a achar, só não sei o que terá sido pronunciado por Eurídice para demover Orfeu da sua tarefa de a libertar das sombras.
Bom Dia.
Talvez tenha sido a palavra. Há muitos anos, quando começava a leccionar Descartes, passava o Orfeu de Monteverdi. A ideia era opor a racionalidade ao desejo e aos sentidos, mostrar como, em obras da mesma época mas de registo diferentes, havia uma certa propensão para ler a realidade da mesma forma. Mas o Orfeu de Monteverdi não é o Orfeu grego. Talvez este tenha perdido a amada por causa da palavra (do logos). Talvez...
EliminarTerei de falar de Sísifo. Também eu estou cansado de empurrar vezes sem conta a "banda larga", para depois assistir impotente e desiludido à sua queda impiedosa.
ResponderEliminarIsto não é um mito, é a realidade frustrante que se me depara sempre que venho passar uns dias ao meu refúgio. É um "mundo" que não consigo modificar
(veremos se o comentário entra)
Um abraço
O comentário entrou na perfeição. O mundo, por vezes, surpreende mesmo.
EliminarAbraço