domingo, 2 de dezembro de 2012

Meditações taoistas (6)

Quem procura modificar o mundo,
Vejo, não o conseguirá.
O mundo, como o espírito, não pode ser modificado.
Quem o modela, destruí-lo-á.
Quem o possui, perdê-lo-á.
Lao Tse, Tao Te King, XXIX

Também Orfeu, filho de Eagro e Calíope, julgou um dia poder arrebatar da morte Eurídice, a sua amada. Desceu aos infernos e, entre espectros e fantasmas, armado da lira e do canto quis sobre a morte fazer reinar as leis do amor. Rendeu-se ao seu canto Tântalo, o supliciado, rendeu-se Sísifo cansado de tanto rolar a enorme pedra montanha acima, renderam-se as Euménides, fúrias devastadoras em cujos olhos o canto de Orfeu fez crescer uma água sem fim, rendeu-se, por último, Perséfone, a rainha das trevas, administradora dos mortos, deusa severa de olhar frio como as noites de Janeiro.

Por um momento, no coração de Orfeu, na parca esperança dos homens, tudo foi possível: um mundo novo emergira no ânimo das gentes e era agora uma matéria plástica dada à ávida fabricação de cada um. Aquele queria um rio azul de águas claras, o outro, a neve branca como o sal, um outro aspirava a um reino onde a luz fosse eterna. Orfeu, porém, apenas desejava Eurídice, a ninfa de pele suave que um dia em suas mãos suspirara.

Perséfone, a voz da álgida necessidade, uma condição prescreveu para entregar à vida a mais bela sombra que habitava o reino da morte: "Eurídice será livre das cadeias mortais, se tu, Orfeu, enquanto atravessares o meu reino não virares a cabeça para trás em busca do olhar doce de Eurídice. Se o fizeres, ela perder-se-á para sempre." Animado de esperança, ele assentiu, e iniciou a longa jornada de regresso. Mas Orfeu já era apenas um mortal, uma sombra adiada.

Esquecera as águas de manchadas negro pelo homem que um dia desejou um rio azul de águas claras, esquecera o enxofre semeado por aquele outro que sonhara com a neve branca como o sal. Da sua memória desaparecera mesmo aquele homem que extinguiu na cidade, onde com tanta veemência proclamara um reino de luz eterna, o último raio de sol. No coração de Orfeu, inscreveu-se um aguilhão insuportável, um anseio sombrio de reter em suas as mãos de Eurídice. Nesse instante, a amada tornou-se, presa ao desejo daquele que a conduzia, na sombra de uma sombra, iluminada pela luz negra que do olhar de Orfeu se desprendia.

4 comentários:

  1. sempre achei que foi a palavra a culpada pelo desabar deste desafio à morte, Eurídice e um sussurro.
    Continuo a achar, só não sei o que terá sido pronunciado por Eurídice para demover Orfeu da sua tarefa de a libertar das sombras.
    Bom Dia.

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    1. Talvez tenha sido a palavra. Há muitos anos, quando começava a leccionar Descartes, passava o Orfeu de Monteverdi. A ideia era opor a racionalidade ao desejo e aos sentidos, mostrar como, em obras da mesma época mas de registo diferentes, havia uma certa propensão para ler a realidade da mesma forma. Mas o Orfeu de Monteverdi não é o Orfeu grego. Talvez este tenha perdido a amada por causa da palavra (do logos). Talvez...

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  2. Terei de falar de Sísifo. Também eu estou cansado de empurrar vezes sem conta a "banda larga", para depois assistir impotente e desiludido à sua queda impiedosa.
    Isto não é um mito, é a realidade frustrante que se me depara sempre que venho passar uns dias ao meu refúgio. É um "mundo" que não consigo modificar
    (veremos se o comentário entra)

    Um abraço

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    1. O comentário entrou na perfeição. O mundo, por vezes, surpreende mesmo.

      Abraço

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