Julio Gómez Biedma - Un grito: ilibertad
A atribuição do prémio Nobel da literatura ao chinês Mo Yan veio recolocar, mais uma vez, o problema da relação entre arte e política. Como se pode ver pelo artigo do Público, muitos dos intelectuais chineses oposicionistas desejariam que a recepção do prémio fosse um momento de denúncia do regime chinês. Contudo, Mo Yan recusa tomar partido entre o regime e a oposição, dizendo-se independente, o que é visto, por parte de outros, como puro colaboracionismo com o regime ditatorial.
Desde o século XVII, isto é, desde a origem, que a modernidade se caracteriza por ser um projecto de autonomização contínua das diversas esferas da actividade humana, as quais encontram dentro de si mesmas as razões da sua existência. Filosofia e ciência, bem como a política, autonomizaram-se da religião, a economia libertou-se da política, as artes tornaram-se independentes de qualquer tutela. Deste ponto de vista, a atitude de Mo Yan pode ser entendida como uma mera expressão da modernidade, o não querer confundir literatura, com os seus imperativos estético-literários, com a política e a luta pelo poder.
Aquilo que ressalta à vista, porém, é a profunda limitação do projecto moderno de autonomização contínua das diversas esferas da acção humana. Este projecto permitiu coisas inauditas. Por exemplo, a economia não apenas se libertou da tutela política como acabou por tutelar a própria actividade política, retirando-lhe a sua putativa autonomia. A questão levantada em torno de Mo Yan vem recolocar em cima da mesa a discussão das relações da arte e dos artistas tanto com a política como com a moral. Ao fazer uma literatura não denunciadora politicamente, ao não denunciar o regime chinês, Mo Yan é cilindrado moralmente por outros intelectuais chineses.
Estes dois exemplos mostram que o projecto moderno treme sempre que se trata da própria vida e não de reflexões e conceptualizações abstractas acerca dela. A vida não se deixa espartilhar por áreas diversas e estanques. Quando ela nos bate à porta não traz etiqueta a dizer se é estética, epistemológica, política, moral ou religiosa. Ela vem toda na sua completude, na sua monstruosa completude, e é com isso que teremos de lidar. Ora a educação moderna desarmou-nos ao apresentar a realidade espartilhada, ao tornar-nos cidadãos num campo e apátridas noutros. É isso que já não funciona e que torna a posição do Mo Yan tão desconfortável.
Não conheço a posição do escritor face ao regime chinês, mas penso que deve sentir um desconforto tão grande como a satisfação pelo galardão.
ResponderEliminarMas o pior é, quanto a mim, o calculismo charro de quem lhe atribuiu o prémio.
Abraço
A posição dele, parece, é de não ter posição. O que é sempre ter uma posição. O Sartre chamava a isso má-fé, mas não sei, não estou lá. Quanto ao calculismo, tudo é possível. Se há coisa dada ao calculismo é a atribuição do Nobel.
EliminarAbraç0
Não li este autor e não estou convencida a lê-lo dada a sua não posição. Por muito espartilhado que o autor se sinta (pressões sobre a família, por exemplo), por muita compreensão que se possa ter em relação aos seus medos, o não tomar posição será sempre compactuar com o regime e isso, dado a natureza do regime, é crime.
ResponderEliminarApesar de tudo, julgo que devemos fazer um esforço para separar as coisas. Talvez ele mereça ser lido pela qualidade literária e isso bastará. Depois, a posição dos intelectuais na China não deve ser fácil. A vida é uma grande embrulhada. Eu n~unca li nada dele, mas estou curioso, diga-se de passagem.
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