Jorge Carreira Maia - Itineraria. Copenhaga (2015)
Não tenho alma de turista, confesso. Talvez ela - a minha alma - seja paroquial e sedentária, pouco dada a nomadismos. Com isto justifico um desgosto pelo facto de viajar e a prática contumaz de o evitar. Numa época em que todos gostam, animados por um espírito folião, de se estrangeirar por uns dias ou semanas, eu estou assim fora do Zeitgeist. Sei, porém, que isso é uma ficção que construí por não poder fazer aquilo que gostaria de fazer. O meu problema não é viajar mas o não poder ficar, o ter de voltar, o ter de ser turista e olhar para as coisas e a vida com os olhos de turista que colecciona imagens e locais, roteiros e mapas. Não sou um coleccionador. Passar aqui e ali é uma coisa, outra é ficar, beber a vida do local, apossar-se da alma de uma cidade, de uma comunidade, espreitar-lhe para dentro e ver como funciona. Dito isto, nem sempre consigo furtar-me a uns dias estrangeirados e a sofrer no espírito as peripécias do turista.
A última incursão levou-me a Copenhaga. Acompanhava-me a célebre frase do Hamlet: Algo está podre no Reino da Dinamarca. Eu sei que isso foi ficcionado e que não se deve levar os artistas a sério. Ao aterrar, na verdade, não me atingiu nenhum cheiro nauseabundo. As coisas podem estar podres, mas não cheiram mal. No entanto, se não há maus odores, se não há podridão, a minha visão de turista ocasional detectou, na superficialidade turística que era a sua, uma anormalidade. Estava numa cidade feita para os seres humanos. Num tempo em que homens e mulheres se repartem entre os seus estatutos de coisa que compra e de coisa que é comprada, onde são instrumentos da mecânica urbana, eu estava numa cidade que cumpria o imperativo kantiano que ordena que os seres humanos sejam sempre e simultaneamente tratados como fins e não apenas como meros meios. Não sei como vivem os dinamarqueses, qual é a alma do povo, o espírito da comunidade, mas tudo parece indicar que, aos olhos de quem planeia e decide, isto é, de quem os governa, eles merecem o respeito devido a todos os seres racionais. Agora volto para Portugal, quero dizer para o Hamlet.
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