Arshile Gorky - Abrazo - Good hope II (Pastoral) (1945)
Com eleições marcadas para 4 de Outubro, temos pela frente dois meses e uma semana de penosa campanha eleitoral. Não vale a pena arrancar os cabelos - os portugueses sabem-no bem - por causa da encenação de mentiras e falsas promessas, de discursos aleivosos e práticas dignas de gente desqualificada. Poderá haver excepções, mas essas contarão pouco ou nada. É a natureza da coisa, a qual é reforçada pela verdura da democracia portuguesa (40 anos, numa história de quase nove séculos, é nada) e pela, cada vez maior, imaturidade dos actores políticos. O que me interessa é sublinhar um dos traços essenciais, talvez o mais categórico, pressuposto pelos regimes democráticos.
A importância da democracia estará menos no facto de ela ser, como é habitual dizer, o pior de todos os regimes com excepção de todos os outros. Também não é fundamental ela ser um método de escolha política com menos problemas para justificar a sua legitimação. Mesmo a sua conexão ao Estado de direito e à drástica limitação da violência política não são o essencial. Tudo isto é importante, muito importante, mas o decisivo, aquilo que fundamenta os traços atrás referidos, está em a democracia ser um espelho, no campo da acção política, da natureza falível e finita do homem. Na verdade, uma sociedade ao escolher viver em democracia adopta uma atitude humildade e faz uma confissão: somos todos seres falíveis, a nossa finitude e os nossos limites recomendam prudência e que assim relativizemos os ideais políticos que acalentamos. Nenhum deles espelha uma verdade ou uma mentira absolutas, mas apenas pontos de vista incertos, precários e, acima de tudo, merecedores de contestação.
A importância suprema da democracia reside neste auto-reconhecimento que os homens fazem de si próprios e da sua natureza. Reconhecimento que indica que, qualquer que sejam as ideias e os projectos de acção, todos eles têm a marca da finitude e da falibilidade humana. Não passam de uma visão perspectivística da vida colectiva, visão sempre enviesada pelos interesses dos actores e pela incapacidade estrutural do ser humano. Era bom que este traço - por norma, escondido - da democracia não fosse rasurado, nos próximos tempos, da consciência. E aqui não me refiro à consciência dos políticos e dos militantes, pois esta está toldada pelos seus interesses - políticos ou outros -, mas dos cidadãos eleitores sem compromisso partidário.
Nós, cidadãos, devemos desconfiar das proclamações que se apresentam como verdades absolutas e relativizar o discurso dos actores em campanha eleitoral, a começar por aqueles que nos são mais próximos ideologicamente. A função dos cidadãos na democracia não é apoiar os partidos como se fossem clubes desportivos, mas exigir que eles - todos eles, a começar naquele em que pensamos votar - se moderem e compareçam, para usar um expressão de tonalidade kantiana, perante o tribunal da razão crítica. O que está em jogo, na democracia portuguesa, não é se o partido A ou a coligação B ganham. O que está em jogo é que os actores políticos sejam obrigados a perceber a sua natureza falível e a reconhecer que estão ali para servirem o soberano, isto é, os cidadãos. Em vez de abraçar causas absolutas e ter excessivas esperanças em homens finitos e mortais, devemos desconfiar e colocar o discurso político sob suspeita.
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