A minha crónica em A Barca de Fevereiro.
Em 2017, o padre Tolentino Mendonça publicou um livro de
poesia com o estranho título de “Teoria da Fronteira”. A nossa tradição definiu
o exercício da teoria como tarefa da ciência e da filosofia, mas não da poesia
ou mesmo de qualquer arte. Enquanto ciência e filosofia são saberes racionais
sobre os seus objectos de investigação, a poesia é uma saber fazer prático, uma
arte. Estará mais próxima do saber andar de bicicleta (ninguém aprende a andar
de bicicleta por explicação racional ou investigação teórica) do que da
produção de teorias.
Por que motivo um poeta mobiliza o termo teoria para o
título de um livro de poemas? Na sua raiz grega, a palavra teoria remete para o
verbo “theorein”, o qual contém a ideia de “olhar para alguma coisa” para lhe
captar o perfil ou a fisionomia. De certa maneira, esse verbo grego fala-nos do
contacto do homem com aquilo que lhe é exterior (coisas, animais, plantas,
homens) através do olhar. Sendo assim, a poesia é uma teoria pois é uma arte de
olhar. O que fazem os poetas? Os poetas olham através dos olhos que são, para
eles, as palavras. E olham para onde? O título do livro de Tolentino Mendonça é
muito claro: olham para a fronteira.
A fronteira de que fala não será a divisão artificial que
separa duas entidades políticas. Quando ouvimos a palavra fronteira
associamo-la, de imediato, às ideias de limite e de separação. As fronteiras
delimitam os estados, separando-os. Como a poesia não é um tratado de direito
internacional, compreendemos que o poeta utilize a palavra fronteira como uma
metáfora. Que domínios separará ela para que o poeta – qualquer poeta – dirija
para lá o seu olhar? O território da poesia é o da linguagem. Ela não trata de
outra coisa. Sendo assim, a fronteira será essa linha imaginária que separa o
território da linguagem corrente, da linguagem articulada que permite o
comércio quotidiano das nossas vidas, da linguagem inarticulada do silêncio com
que todas as coisas se dão ao olhar.
O poema é, então, um olhar para essa fronteira em que a linguagem,
apesar de ainda usar palavras, já as desligou – melhor, já as libertou – do seu
uso comunicativo diário. Ao escrever, o poeta olha para essas palavras que já
não são bem palavras, mas ainda não são silêncio. Todo o poema é uma arte
fronteiriça, um exercício para vencer a resistência – a linha – que separa o
articulado da linguagem do inarticulado do mundo dado ao olhar. As fronteiras
separam, mas também são pontos de união. O poeta faz da poesia esse tecer de
uma fronteira que, ao separar, une o som da linguagem ao silêncio da criação.
Talvez a poesia seja apenas a aprendizagem da mudez, da arte de estar calado.
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