domingo, 8 de novembro de 2020

Faure da Rosa, Nós e os outros

Publicado em 1979, Nós e os outros, de Faure da Rosa, passa-se num curto espaço de tempo, quatro dias de uma semana de Maio de 1973. Bernardo, o narrador, conta, num tempo já bem posterior e demarcado no calendário político do país, a sua vida quotidiana nesses dias em que a ditadura entrara em pleno, embora não visível, estertor. A obra é cruzada pela tensão entre duas linhas narrativas. Por um lado, a preocupação com a análise de um certo tipo de família burguesa. Por outro, a questão do compromisso político, de um compromisso com o único partido que, apesar da sua ideologia materialista e ateia, tem qualquer coisa de efectivamente religioso. Aliás, essa ligação devocional ao partido surge várias vezes na narrativa, sugerindo-se, por vezes, quase uma ligação a um corpo místico. A tensão desenha-se, deste modo, entre o cosmos da vida privada, uma vida real e efectiva, e o da vida pública, mais sonhada e desejada do que autêntica.

Em busca de um filho na noite lisboeta, o narrador, de 64 anos, acaba por encontrar Carol, uma jovem, na casa dos 20 anos, sexualmente caridosa com velhos e rejeitados, que o provoca. Acabam por se envolver eroticamente. É a partir desta deriva extraconjugal, que as relações familiares vão sendo exploradas. Uma vida inteira ao lado de Luci, dois filhos, e, de súbito, a figura da mulher surge a uma outra luz. Torna-se enigmática, obscura. Esta obscuridade provém, contudo, da própria mentira que esconde a infidelidade. Na verdade, há em Bernardo uma ânsia em ser descoberto, um desejo de ver a situação revelada, uma necessidade de confissão, como se isso pusesse um ponto final ao desvario. É o facto de Luci não se dar conta da situação, ou de não deixar transparecer que a pressente, que a torna obscura aos olhos do marido, como se ele supusesse o casamento, depois de uma vida inteira lado a lado, um lugar da mais pura transparência. O que preocupa, todavia, Luci não é o marido e os eventuais desvarios eróticos, mas o filho mais novo que desapareceu. Tendo-se radicalizado politicamente, participado em acções de natureza terrorista contra o regime, acaba por sair do país.

O romance não espreita apenas para dentro desta família. Olha as relações entre Antonieta, irmã do narrador, e César, um professor universitário que, na juventude, militou na oposição, mas que, com o passar dos anos e da carreira, se foi tornando complacente com o regime, se não mesmo defensor. É a figura negra do romance, aquele que tanto Bernardo como os filhos – Nuno, o fugitivo, e Paulo – não suportam, embora ele tenha diligenciado, no âmbito da vida profissional e pessoal destes, várias vezes em favor do cunhado e dos sobrinhos. É uma personagem quase estereotipada, o vilão da história, aquele que Bernardo se revê como um negativo e perante o qual se sente múltiplas vezes derrotado. A tensão dentro desse casal cresce motivada pela própria política, pela fidelidade de Antonieta aos ideais comunistas de Bernardo e dos outros irmãos já mortos e pelo desprezo de César por esse mundo. Também o casal Paulo e Gabi é observado e questionado pelo narrador. Paulo é o filho perfeito, o homem que, apesar de ter uma carreira profissional, se comprometeu com o partido e a luta contra a o regime. Todavia, é estéril. Bernardo teme que a nora acabe por ceder a uma forte inclinação amorosa pelo outro filho, pelo carácter aventureiro e radical deste.

Estes pequenos dramas familiares, de famílias tipicamente burguesas, de uma certa classe média lisboeta e oposicionista, são contrastados pelo seu, de Bernardo, compromisso político com o Partido Comunista. Um compromisso relativamente distante. A sua ligação à família, a sua preocupação com os filhos e a educação destes, a relação com a mulher pouco interessada nos ideais do marido, impedem Bernardo de se entregar a um compromisso radical com a organização que encarna os seus ideias de justiça social desde a juventude, de entrar no corpo místico que é o partido. Contenta-se em ser um homem da segunda linha, um devoto, alguém que não tem estatuto para se tornar o herói revolucionário que um dia terá sonhado ser. Aos 64 anos, essa figura do herói suscita-lhe a nostalgia do passado e também a melancolia que a realidade vivida lhe trouxe, a qual é agora, por um curto espaço de tempo, substituída pela aventura erótica. O tempo do adultério é um exercício compensatório para a sua impotência de revolucionário. A fusão erótica está no lugar da fusão no corpo místico do partido e através dele no povo.

A estratégia narrativa assenta no contínuo cruzamento entre o tempo curto, o daqueles quatro dias, e o tempo longo de uma vida. O tempo curto é aquele em que o narrador conta a sua vida banal. A procura do filho por injunção da mulher, o encontro com uma futura e breve amante, um jantar de família, os sonhos que lhe povoam a noite, as cenas da vida profissional, as frustrações existenciais. Este tempo da banalidade quotidiana, mesmo que atravessado pela fuga do filho e a conquista de uma jovem amante, é posto em tensão, através de um constante exercício mnésico, com o tempo longo da sua vida, um tempo que vai do passado ao futuro. O narrador entrega-se a contínuas analepses e prolepses, que lhe dão uma densidade temporal, lhe conferem uma identidade e uma história. Permitem compreender o percurso que o leva àqueles quatro dias e o caminho que esses quatros dias abriram até depois de 25 de Abril de 1974, até ao momento que em 1978 escreve a história, um romance que pretende ser também a confissão de um adultério. Nós e os outros é a história de um homem da classe média a entrar na parte final da vida. De um homem que um dia sonhou ser revolucionário e ficou preso dentro desse sonho, impotente para o realizar, como o faz o filho, e impotente para sair dele, como o fez o cunhado. O ano de 74, permitiu-lhe, todavia, mergulhar na militância comunista, embora sem o encanto mítico do herói da resistência, sem a experiência sobrenatural de comunhão com um corpo que é sentido, pelos que dele fazem parte, como sendo mais do que humano.

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