terça-feira, 17 de novembro de 2020

Perfis 8. O homem do saco

Margaret Bourke-White, World’s Highest Standart of Living. There’s no way like the American Way, 1937

O boné protege-lhe os olhos da luz e impede-o de olhar para cima. Aquilo que está no alto não lhe diz respeito, pertence a outro mundo que não o dele. Chegou à fila dos necessitados, dos que precisam que lhes dêem comida e roupa, ainda tomado pela vergonha. De fato completo, com gravata presa por alfinete, por cima um sobretudo que o protegerá do frio. Será a última réstia de um orgulho ferido, um exercício de respeito por si, uma rememoração doutros tempos. Tudo já teve melhores dias e, talvez, outrora tivesse havido no coração um princípio de esperança e no olhar cintilações de alegria, no peito e no cérebro projectos de uma vida feliz. Agora parece que perdeu a alma, quase uma estátua entre estátuas que estendem a mão como se não a tivessem. Não há na face um sorriso nem um esgar de dor, nem de ódio, nem de revolta. Apenas a pacificação de estar ali onde não queria estar, apenas o desconsolo de ter de transportar na mão um velho saco de papel, que alguém há-de encher, para que o corpo suporte a fome e o frio que dançam tão perto. Vemo-lo a dar pequenos passos, discretos e silenciosos, enquanto a fila se move para o seu destino. Vemo-lo como se já poucas coisas no mundo lhe interessassem. Os olhos fixam-se no horizonte, mas nada vêem. Uma cegueira, nascida no fundo da alma, tomou conta deles e começou a espalhar-se pela envolvência. A realidade não passa de um conjunto de vultos sombrios, de vozes distorcidas, de crenças desfeitas pelas ondas turbulentas da existência. A única coisa viva naquele corpo é a mão que, discreta e delicada, pega no saco de papel, como se pegasse na possibilidade de ainda haver um amanhã, de ainda ter um nome, de poder andar nas ruas e de olhar para o alto e para a luz.

2 comentários:

  1. Uma história que reflecte bem muitas das realidades do quotidiano actual.

    Um abraço

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