Interpretado, por vezes, como um romance de amor, Pan,
do norueguês Knut Hamsun (Nobel em 1920), publicado em 1894, encena o conflito
entre a vida livre do bom selvagem e a vida civilizada. É, também, uma
releitura do mito de Pã, do deus grego dos bosques e das florestas, e da sua
paixão pela náiade Sírinx. Nessa releitura não falta sequer o piloto Tamo que
anuncia ao mundo a morte do grande Pã. O romance faz parte do conjunto de obras
onde o autor contesta radicalmente a vida e os valores burgueses, esse mundo
regulado pela burocracia e por regras que aniquilam o instinto vital. Não o faz,
todavia, numa perspectiva social que tocou o realismo ou o naturalismo
literários e, mais tarde, o neo-realismo, mas do ponto de vista do herói
individual, da afirmação do carácter único do indivíduo. Não como uma
singularidade que persegue o interesse próprio, tal como o burguês, mas de uma
individualidade que emerge do tumulto da natureza e que nele pretende voltar a mergulhar.
O Tenente Thomas Glahn, aos 28 anos, foi para as terras selvagens do norte da Noruega, onde aluga uma cabana de caça, adoptando um modo de vida frugal. Os dias eram passados na floresta, na companhia do seu fiel cão de caça Esopo. A vida selvagem e desordenada eram o ambiente natural onde florescia a vida espiritual do militar. Uma espiritualidade tipicamente pagã, vivida através da divinização da natureza. Aquele era o lugar para um homem meio selvagem. No entanto, a vida civilizada, de uma povoação próxima, cruzava-se com os seus caminhos. Neles atravessou-se Edwarda e uma paixão exaltada nasceu no coração de Glahn.
Essa paixão, aliás correspondida, arrastou-o para contactos com a sociedade organizada do povoado adjacente, onde o pai de Edwarda, Herr Mack, um rico comerciante, tinha um papel central. Estes contactos sociais são, então, ocasiões para que Thomas Glahn ostente um carácter imprevisível, surpreendente e, quase sempre, pronto a quebrar as regras da civilidade. Hamsun explora aqui a tensão entre a espontaneidade do homem bravio e a artificialidade e afectação que as pessoas em sociedade necessitam de ostentar. Está em jogo o confronto entre a autenticidade existencial, por vezes brutal, e a vida falsificada produzida num mundo em que as arestas são limadas para que se evite o espectáculo da dor ou do prazer excessivos. Ora, era essa disrupção que a conduta de Glahn introduzia na vida social que conduziram a um ostensivo afastamento de Edwarda. Acabada a época de caça, esse Verão das terras do Norte, o militar foi-se embora. A sua náiade rejeitara-o.
O romance é composto por duas partes. A primeira, com cerca de 150 páginas, tem por título ‘Segundo os papéis do Tenente Thomas Glahn’. É narrada na primeira pessoa, uma espécie de rememoração do próprio Tenente. Começa assim: Ultimamente tenho pensado e repensado no Verão do Nordland e nos seus dias intermináveis. Estou aqui sentado a pensar nisso, mas também numa cabana onde vivi, e no bosque atrás dessa cabana, e vou anotando essas coisas para passar o tempo; para me entreter, nada mais. A rememoração nunca é inocente. Ela refere-se a algo que passou e que deixou de fazer parte do leque de possibilidades disponíveis para uma existência, mas que continua a afectar aquele que viveu esses acontecimentos, de tal maneira que tem necessidade não apenas de os rememorar como de os anotar. Essa vida selvagem e esse delírio erótico pertencem a um mundo acabado. Tudo o que é substancial na relação entre Glahn e Edwarda encontra-se nesses papéis deixados pelo Tenente.
A segunda parte, com pouco mais de 20 páginas, tem por título ‘A morte de Glahn – Um documento de 1861’. Está também ela narrada na primeira pessoa, mas agora essa primeira pessoa não é o protagonista do romance. Inicia-se do seguinte modo: A família de Glahn pode perfeitamente continuar a anunciar o desaparecimento do Tenente Thomas Glahn durante o tempo que quiser, mas ele nunca mais regressará. Está morto e, além disso, eu sei como morreu. Como o piloto de navios Tamo anunciou a morte do deus Pã, também este narrador anuncia a morte dessa sua encarnação, que era o Tenente Glahn. No entanto, contrariamente a Tamo que apenas obedece a uma ordem e não faz ideia como morreu o deus, este narrador sabe como morreu Glahn e sabe aquilo que no coração de Thomas Glahn o abriu para a morte. O que ele não sabe, pois essa não é a sabedoria de um narrador, mas do autor, é que a morte de Glahn significa o fim de um mundo e de uma tradição e a vitória da ordem burguesa, burocrática e feita de artifícios, onde impera o culto da inautenticidade. Essa morte encontra a sua simbolização plena no carácter póstumo da publicação dos papéis do Tenente Glahn.
muito curiosa fiquei em conhecer esta história!
ResponderEliminar(entretanto li um bocadito que a Bertrand disponibiliza)
obrigada!
De nada. Em tudo o que li até agora de Hamsun não registo nenhuma desilusão.
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