As novas medidas de combate à crise sanitária são
promulgadas no momento em que o professor de epidemiologia Manuel Carmo Gomes,
da Universidade de Lisboa, prevê que se chegue brevemente, caso nada seja
feito, às 10 mil contaminações e 100 mortes diárias, assim como a mais de 500
pacientes nas Unidades de Cuidados Intensivos (ver aqui).
Apesar do primeiro-ministro ter declarado que Portugal se preparou para segunda
vaga, pois está mais apetrechado com meios humanos e tecnológicos (ver aqui),
a verdade é que a situação actual e aquela que se prefigura devem-se também ao
governo.
Apesar de ter tomado medidas ao nível institucional, elas não têm tido qualquer impacto sobre os comportamentos das pessoas, e era sobre esses comportamentos que era e é necessário agir com firmeza. No comportamento social, há dois traços que se desenvolveram nos últimos tempos e que são muito preocupantes. Em primeiro lugar, a indiferença perante a morte. No início da pandemia, o número de mortos, por poucos que fossem, tinha um grande impacto psicológico sobre a população. Hoje, a morte por COVID-19 está completamente integrada na psicologia colectiva e, por mais que os números cresçam, esses números deixam as pessoas (parte significativa delas, claro) indiferentes. Cresce a falsa sensação de que a morte por COVID-19 é uma coisa que só acontece a outros.
Um segundo traço liga-se aos direitos das indivíduos. Numa primeira fase da pandemia, as pessoas – falo na generalidade, mais uma vez – sentiam que o principal direito a ser preservado era a segurança, a sua segurança, o facto de serem protegidas contra a doença. Essa percepção mudou ao longo dos últimos meses. Muitas pessoas pensam, por motivos diversos, que a questão da segurança é secundária. Os direitos fundamentais são o de desfrutar da sua vida conforme entenderem. Deslocarem-se para onde quiserem, encontrarem-se com quem quiserem, comportarem-se no espaço público como bem entenderem. O risco é entendido como uma questão privada e não pública. Assim como ninguém tem nada a ver como me comporto na minha vida privada, também ninguém, muito menos o governo, tem nada a ver com o risco que corro de ser contaminado e ficar doente com COVID-19. Rapidamente, a percepção do risco colectivo foi apagada e assumida, por demasiada gente, como um risco privado que só a si diz respeito.
A grande responsabilidade do governo foi não ter antecipado estas duas transformações na psicologia da comunidade. Não percebeu que a indiferença perante a morte por COVID-19 iria crescer até ser generalizada, mesmo entre aqueles que se preocupam com os efeitos comunitários da doença. Não percebeu que, numa sociedade como a nossa, a questão do risco rapidamente transitaria da dimensão colectiva para a pessoal. São estas incompreensões que dão a António Costa, quando fala da situação, um ar, por vezes penoso, de perplexidade. O governo pode ter agido bem no domínio dos recursos, mas não teve em conta a população que governa e não antecipou o modo como os comportamentos se iriam alterar. Na verdade, achou que tudo estava na mão dos cidadãos, como António Costa não se cansa de realçar. Ora, isso só é verdade em parte. Nós temos um Estado e elegemos governos precisamente porque nem tudo está nem pode estar por completo no arbítrio dos cidadãos.
Excelente análise.
ResponderEliminarNo entanto, este é um problema que está generalizado e não diz respeito só ao nosso país e ao nosso governo.
Um abraço
Obrigado.
EliminarÉ verdade. O problema não apenas português. Parece que os governos deixaram de ter capacidade de antecipar o comportamento das pessoas, ou talvez nunca tenham tido.
Abraço