sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A razão delirante

Manuel Quejido, Delirio de los continentes o la razón, 1974
Estranho destino o da razão no Ocidente. Na Antiguidade clássica, ela dá os primeiros passos para se emancipar do mito e das descrições imaginárias do mundo. Na Idade Média, todavia, tornou-se um instrumento da Teologia, um poder de reconhecimento, no mundo natural, das verdades reveladas. Com a Modernidade, na versão cartesiana, transforma-se em fundamento último e decisivo da verdade. Em pleno Século das Luzes, com o kantismo, é o tribunal a cujo julgamento nada, nem o poder nem a religião, se poderia furtar. No século XIX e XX, com Nietzsche, Marx e Freud, a razão retorna à condição de instrumento não da verdade revelada, mas da suspeita sobre a falsificação que cobria o mundo, o que incluiria a suspeita sobre a própria razão. No século XXI, combinando um simulacro da razão crítica iluminista e uma hipertrofia da razão suspeitosa, chegámos ao tempo da razão delirante. É essa razão que está na base das teorias de conspiração e de todos os delírios que pululam nas redes sociais, os quais conseguiram inclusive fazer eleger uma senadora nos EUA, simpatizante de uma seita fantasiosa que responde pela sigla QAnon. É essa razão delirante que alimenta políticos clownescos, crenças inverosímeis, o desprezo e o ódio à ciência e um ressentimento sem fim. 

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