segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Pulsão suicidária

Albert Bloch, Suicide, 1911
Parece haver no Partido Comunista Português, nesta fase da sua existência, uma pulsão suicidária desmedida. Depois de lhe ter sido aberta a porta para se tornar parte de uma solução para o país, decidiu, em plena crise pandémica, sem que alguém, a não ser os seus dirigentes e quadros, compreendesse a razão e a pertinência, ajudar a derrubar o governo. Pagou, nas urnas, bem caro o gesto. Não contente com isso, embrulhou-se com a invasão russa da Ucrânia, ficando completamente isolado no país. Não apenas dos restantes partidos políticos, mas do cidadão comum, que sente uma indignação moral profunda perante a decisão do Kremlin. É verosímil que muitos dos que ainda votaram na CDU nas últimas eleições se sintam perplexos. Como é possível, perguntarão. O problema para o PCP é que a situação na Ucrânia é de tal modo chocante que dificilmente se lhe perdoará a atitude, contrariamente ao que tem acontecido com as suas posições sobre a Coreia do Norte, a Venezuela ou Cuba. Numa democracia liberal, cada um terá o direito a suicidar-se como bem entender.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Um tempo de Requiem

Arnulf Rainer, Croce, 1956
Um tempo de Requiem. O terrível que está a acontecer na Ucrânia assinala a morte tanto das regras internacionais que resultaram da segunda guerra mundial, como dos novos equilíbrios que emergiram com a queda do Muro de Berlim. Nada permanece. Enquanto houver homens, a história não pára, nem acaba. E a história não é outra coisa senão um cortejo de injustiças, dores, ajustes de contas e violências. Percebe-se bem que certos pensadores desejem abolir a história, chegar ao momento em que já não existe esse trabalho doloroso do negativo, mas o que a experiência tem mostrado é que isso não passa de pura ilusão. Haverá quem argumente de que não podemos justificar a conclusão de que o amanhã será também violento a partir de premissas radicadas na experiência do passado. Numa lógica dedutiva isso é verdade, mas não me parece existir melhor expectativa acerca dos homens do que aquela que diz que o amanhã será, apesar das diferentes figuras que a realidade assume, idêntico ao hoje.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Garrafa Vazia 79

Gárgula do Mosteiro da Batalha (Origem da Foto: Coisas do Arco da Velha - Museu do Imaginário)
Pela gárgula do tempo
escorre a peçonha
dos dias,
o veneno acidulado
da voracidade,
as letras de câmbio
no balanço
nunca fechado da morte.

Fevereiro de 2022

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

O progresso moral da humanidade (5)

Alexey Titarenko, Crowd 2, St. Petersburg, Russia, 1993
Não se trata sequer do comportamento em grupo assumir os contornos de uma manifestação do mal, como tantas vezes acontece, quando os homens levados pela paixão se sentem confortáveis no meio da massa e cometem os crimes mais hediondos. O próprio deslocar-se em grupo, formar uma massa, mesmo que o motivo seja tão prosaico como ter de ir trabalhar para enfrentar a dura necessidade, é já um sinal não desprezível de algo tenebroso. Essa necessidade de se deslocar no seio do rebanho por pouco que, aparentemente, seja desejada é um sintoma incontestável de que caso exista um progresso moral da humanidade, ele é lento, tão lento que talvez ninguém dê por ele.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

A questão central da política


Um dos aspectos centrais da última campanha eleitoral foi o crescimento económico. O Professor Viriato Soromenho Marques, em conferência na Academia de Ciências de Lisboa, sublinha o facto dizendo: “Chegou a ser escandaloso, o conceito de crescimento ocupou o palco como se estivéssemos no século XIX”. No Público de 11 de Fevereiro, António Guerreiro chama a atenção para a grande denegação em que as pessoas e as elites políticas vivem em relação ao gravíssimo problema das alterações climáticas de origem humana. Enquanto um terrível desastre se apresta para chegar, onde a sobrevivência da espécie está em jogo, as pessoas – e os políticos, em primeiro lugar – estão surdas aos avisos e cegas aos sinais que apontam para a catástrofe.

O que motivará a cegueira e a surdez tanto dos cidadãos como dos responsáveis políticos? Há, claro, razões económicas, socias e psicológicas, as quais, por norma, são arroladas como causa da incapacidade em lidar com a ameaça. Contudo, o problema tem uma natureza política e reside no esquecimento daquilo que nos torna animais políticos e, consequentemente, aquilo que a política deve, antes de tudo, cuidar. O que está em jogo na política, como sublinhou Hannah Arendt na leitura que fez dos gregos, é a imortalidade da espécie humana. Não se trata de uma imortalidade metafísica, mas da prosaica persistência da espécie ao cimo deste planeta. A política existe, em primeiro lugar, porque a espécie humana está, continuamente, em vias de extinção. A política é o antídoto a essa ameaça.

A modernidade, a partir de certa altura, esqueceu essa função originária da política. Embrenhou-se nos debates entre liberdade e igualdade, entre tradição e inovação, entre conservar e progredir. Tudo querelas interessantes, mas que não tocam no problema com que a espécie, neste momento, se confronta: como assegurar a sua imortalidade, isto é, a sua persistência na Terra, agora que, mais que nunca, somos, por culpa própria, uma espécie em vias de extinção? Ora, recentrar a política na questão fundamental é, nos tempos que correm, uma tarefa de Hércules. Como poderemos admitir que, para sobrevivermos enquanto espécie, teremos de nos tornar drasticamente mais pobres, eliminar muitos dos nossos prazeres, compreender que a natureza não é um armazém à nossa disposição? Aqui enfrentamos o maior dos perigos, pois ninguém com um programa adequado à realidade, prometendo empobrecimento e frugalidade, consegue ganhar eleições, e, mergulhados no esquecimento da função originária da política, não se vislumbra tratamento para a surdez e para a cegueira que nos atingem.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A persistência da memória (8)

Sebastião Salgado, Guatemala, 1978

Investida de uma ciência cujo nome há muito esqueceu, uma mulher está suspensa do postigo que a deixa olhar para fora de si. Não ouve os murmúrios que lhe atravessam o coração, não sente o frémito do tempo que lhe vibra nas veias. Olha e vê-se passar na rua décadas antes, quando tudo ainda era possível. No seu rosto há uma sombra de tristeza articulada por uma gramática de desconsolo. Vê-se no que foi e perdeu a fé naquilo em que se tornou.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Nocturnos 73

Wright Morris, Untitled, 1940s
A chama de um velho candeeiro, as horas no relógio de parede, a rememoração dos mortos, o sangue quase coagulado nas veias, assim corre a noite por dentro de quem, retido no sono, se entrega ao sonho para antecipar nas trevas e na escuridão o esplendor da madrugada.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Simulacros e simulações (31)

Ho Fan, Approaching shadow, 1954
A sombra é um simulacro da noite. Tira desta o prazer pela escuridão, mas ao contrário dela falta-lhe a ausência de luz. É uma cópia imperfeita das trevas ou o sinal de que elas podem chegar com o seu império tecido de obscuridade.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A Garrafa Vazia 78

Georges Braque, Bottle, Newspaper, Pipe and Glass, 1913
Dura a disciplina
da desgraça,
persiste no tempo,
escava sulcos
na memória,
abre o corpo
para a mórbida
maldição
do copo vazio.

Janeiro de 2022

 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A maioria absoluta e a situação da esquerda

A maioria absoluta obtida pelo PS confirmou o instinto político de António Costa. Não cedeu às exigências do BE e do PCP e não hesitou em correr riscos. Na sua vitória confluem o reconhecimento pela governação e pelo combate à pandemia, a necessidade de estabilidade, o cansaço com o tom do BE e com a incapacidade do PCP alterar o seu tipo de discurso e, não menos importante, o medo de um governo do PSD dependente do apoio do Chega e da Iniciativa Liberal. Em resumo, derrotou os seus ex-parceiros, a direita e, de passagem, Marcelo Rebelo de Sousa. Tem quatro anos para mostrar, definitivamente, que, para além de um óptimo político, é um óptimo primeiro-ministro, com capacidade para fazer sair o país do impasse em que se encontra.

Foi penoso assistir à declaração de Jerónimo de Sousa. Falou para os seus, entregou-se a uma interpretação esotérica dos resultados eleitorais e da situação política. Foi incapaz de assumir o erro de votar contra o orçamento. Também não mostrou que o partido tenha capacidade de rasgar horizontes para além da retórica habitual sobre os trabalhadores e o povo. Na verdade, o PCP não tem qualquer projecto para governar o país na situação onde este se encontra: pertença à União Europeia, ao Euro e abertura de mercados num mundo globalizado de elevada concorrência. Os portugueses reconheceram isso, retirando-lhe votos e representantes, entre eles o excelente deputado António Filipe.

Não menos penoso foi assistir ao discurso de Catarina Martins. Acusou António Costa de querer uma maioria absoluta e não foi capaz de reconhecer que o BE cometeu um erro estratégico ao chumbar o orçamento. O BE não percebeu que grande parte do seu eleitorado vinha do PS e que votaria no BE apenas se não houvesse perigo. Problema ainda maior é que o Bloco mostrou que não serve para encontrar soluções para o país, não tendo aproveitado a abertura dos socialistas para se transformar num partido de poder credível. Por outro lado, a liderança de Catarina Martins e o estilo que adoptou estão desgastados. Fora dos fiéis, começa a haver pouca paciência para a líder do BE.

Por fim, os ecologistas de esquerda. A ficção de “Os Verdes”, com a sua submissão ao PCP, parece ter acabado. Não deixam saudades nem, tão pouco, uma marca no país. A eleição de Rui Tavares, do Livre, depois do erro de casting de 2019, com Joacine Katar Moreira, pode marcar o início de uma reconfiguração da esquerda à esquerda do PS. Apesar do líder do Livre ter entoado a Internacional, na noite das eleições, não há nele traço de radicalismo, é um político muito bem preparado, sensato e europeísta. É, se não cometer erros, uma ameaça para o BE.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Ciência e pensamento crítico


Foi para a Ciência que se viraram as esperanças quando se precisou, desesperadamente, de uma vacina para a COVID-19. Ao mesmo tempo que as expectativas se voltavam para ela, crescia no mundo uma contestação – mais ou menos dissimulada, mais ou menos violenta – dessa mesma Ciência, dos seus resultados e das teorias que ela disponibiliza para melhorar o conhecimento humano sobre a realidade e, a partir desse conhecimento, encontrar soluções para os problemas com que nos defrontamos.

Uma das formas mais insidiosas de superstição é aquela que se baseia num suposto pensamento crítico ou no direito de pensar por si mesmo, numa espécie de afirmação à outrance do lema kantiano ‘Pensar sempre por si mesmo’. A estratégia é colocar em pé de igualdade uma forma de conhecimento altamente estruturada, obedecendo a rigorosos protocolos de controlo, testagem e avaliação, isto é, a Ciência, com opiniões e conjecturas que não têm qualquer controlo. Aliás, nem se trata de colocar em pé de igualdade Ciência e estas opiniões. Pretende-se mesmo julgar a Ciência com base nessas opiniões, como se isso fosse uma atitude crítica altamente inteligente.

Não temos o dever de pensar por nós próprios? Temos, mas pensar por si próprio, de modo responsável, é avaliar, com base num método rigoroso, aquilo que nos é proposto. Isso, dir-se-á, levanta um enorme problema. Por exemplo, como posso avaliar se devo ou não ser vacinado contra a COVID-19? Não tenho conhecimento para fazer uma avaliação crítica da vacinação. Como eu está mais de 99% da humanidade. A única coisa que podemos fazer, para pensar criticamente, é confiar na autoridade científica dos cientistas. Não se trata, porém, de uma aceitação cega de uma autoridade. Há regras para aceitar argumentos de autoridade. São essas regras que permitem adoptar uma atitude crítica sobre certo assunto que não dominamos.

Só devemos aceitar um argumento de autoridade se aqueles que o propõem são efectivamente autoridades no assunto, se não existirem contra-exemplos credíveis que ponham em causa o que a autoridade afirma e se existir um forte consenso científico sobre esse assunto, por exemplo, sobre o benefício da vacinação. Ora, quando as pessoas, em nome de um suposto pensamento crítico e de um direito a pensar por si, rejeitam os resultados da Ciência, não estão a pensar criticamente. Estão a submeter-se à autoridade de pessoas que não dominam os assuntos, que emitem opiniões que ninguém controla nem avalia. Estão a trocar o conselho de autoridades competentes por crenças sem qualquer fundamento. Escolhem a superstição e não o pensamento crítico.