quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A planície sinuosa (iii)

Bernardo Marques, Campo - Alentejo (Gulbenkian)

Terra amarela, suja de sangue e poeira,

cariada nos interstícios dos campos.

O verde dos sobreiros,

a cortiça devorada pela água do dia.

Avistam-se rios de alcatrão.

Degolam o silêncio da planície,

o trémulo cantar das aves.

 

Sonhava vestir de cotim cinzento

e cavalgar pelos campos,

cheirar o aroma das horas,

ouvir a dor inscrita na espádua ferida.

Quão perto me aproximei,

com olhos puídos de luz,

da substância da terra,

do segredo na raiz do mundo?

 

A planície era página em branco

aberta à caligrafia do lavrador,

ao ronco hostil da máquina.

Escrita nua, indecifrável,

um código invertido na sombra do céu,

um labor arcaico ferido pela noite,

um rosto aberto ao sopro da morte.

 

Os olhos do viajante são portas

abertas ao amarelo da campina,

às mulheres ensanguentadas pela sombra.

A planície clama pela cinza do Outono,

o chão devora as cearas

e o segredo da mão que escreve

abre-se na terra amarela, suja de saibro,

ao temor da noite na fímbria da aurora.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

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