domingo, 27 de outubro de 2024

Philip K. Dick, Valis


Publicado em 1981, um ano antes da morte do autor, Valis, de Philip K. Dick, é um romance que combina interesses temáticos de múltiplas ordens, desde os que provêm da Filosofia até aos que se inscrevem na área da mística religiosa, passando pela literatura de ficção científica. Uma leitura possível, entre as inumeráveis que podem emergir do romance, pode fundar-se numa espécie de crítica da modernidade. Não na perspectiva de um tradicionalismo desejoso de um retorno aos tempos pré-modernos, mas na manifestação de uma subjectividade fragmentada e alienada. Se há um marco simbólico da emergência da modernidade, esse marco é o sujeito cartesiano que se afirma como fundamento do conhecimento, capaz de conhecer a realidade, desde que não deixe interferir o seu arbítrio no julgamento das crenças. Esse sujeito transparente é, no romance de Philip K. Dick, uma subjectividade tocada pela loucura, fragmentada, uma identidade cindida e perdida na realidade.

O optimismo epistemológico cartesiano dá lugar a uma desconfiança na possibilidade de conhecer a realidade. Esta deixa de ser transparente a uma razão autocontrolada, fundada em evidências garantidas pela veracidade divina, para poder ser o fruto de uma manipulação, talvez de um génio maligno, para retomar a retórica epistémica de Descartes. A razão não é suficiente para compreender um mundo manipulado. Aqui é perceptível a necessidade de o protagonista Horselover Fat, um alter-ego do autor, se aproximar da religião, na esperança de que a experiência a mística abra o caminho que a razão é impotente para abrir. É aqui que se insere o título do romance. VALIS é o acrónimo de Vast Active Living Intelligence Service, uma entidade, tida pelo protagonista como divina, que se manifestaria através de um raio rosa que o atinge e lhe abre o caminho para o questionamento da realidade e a desconstrução das representações correntes que dela fazem os seres humanos.

Contudo, naquilo que se poderia chamar uma visão pós-moderna, a mística do romance não se inscreve já na tradição cristã, mas está mais próxima de uma revivescência da gnose e de perspectivas gnósticas acerca do mundo, o que convoca a discussão sobre a origem do mal. Esta questão, a da origem do mal, liga-se ao problema da realidade. Esta é percebida pelo protagonista, a partir das suas experiências místicas, como informação. O universo seria, na sua essência, informação, uma perspectiva ontológica que combina teologia e ciência. É esta informação que pode ser interpretada ou manipulada por quem tenha o conhecimento adequado, podendo haver intérpretes de natureza benévola, como VALIS, ou outros cujas intenções sejam menos benevolentes. Isto permite integrar uma outra temática de índole filosófica na estrutura narrativa de VALIS. Trata-se do problema do livre-arbítrio. Por um lado, a percepção de que essa informação constitutiva da realidade é manipulada e a crença de que somos livres não passa de uma ilusão. Por outro lado, Horselover Fat empreende uma espécie de viagem em busca de uma realidade não manipulada, da realidade conformada por VALIS, de uma realidade onde seja genuinamente livre.

A natureza fragmentária da mente do protagonista, assim como a da própria narrativa, a pluralidade de referências e o recurso a jogos de linguagem de proveniência tão diversa como a ciência ou a teologia, tudo isto compõe uma estratégia narrativa que pretende reconstruir um mundo romanesco que dê conta da experiência existencial da América dos anos sessenta e setenta, onde uma explosão social e cultural tornou a paisagem humana complexa e de difícil decifração para subjectividades que perderam a capacidade de sustentar a certeza cartesiana. O romance de Philip K. Dick surge assim coma a reconstrução de uma experiência social e existencial de que faziam parte a guerra do Vietname, o desenvolvimento de um capitalismo avassalador, apesar da crise dos anos setenta, a explosão de experiências estéticas e artísticas e a proliferação de culturas alternativas à cultura americana dominante. Em VALIS, essa paisagem disfórica, de alguma forma, procura encontrar um sentido.

Se se percebe na leitura do romance a preocupação do autor com temas que actualmente se tornaram essenciais na vida das sociedades ocidentais, temas como o das teorias da conspiração e o das paranóias sociais, também se encontra, desse o início, uma visão crítica da contracultura que naquelas décadas de sessenta e setenta tomou conta das novas gerações, uma contracultura fundada no uso de alucinogénios como caminho de uma busca espiritual fora das exigências das estruturas do cristianismo ocidental. O suicídio de Gloria, uma amiga do protagonista, é o ponto de partida para essa crítica de uma visão do mundo na qual a juventude norte-americana tinha embarcado e que arrastou atrás dela também partes substanciais da juventude europeia. Entre as muitas coisas paradoxais que se manifestam em VALIS, encontra-se essa crítica da contracultura norte-americana num dos produtos intelectuais mais emblemáticos dessa contracultura, o próprio romance VALIS.

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