quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (28)

José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian)

Assim escurecida,

a terra é um

rumor errante,

mácula

de sol e sombra,

uma pedra

no silêncio

das estrelas,

na poeira do luar.


[1993]


terça-feira, 25 de novembro de 2025

Meditações melancólicas (97) Uma eleição

Carlo Carra, Gentiluomo Ubriaco, 1916
Não tarda, e temos de ir escolher o próximo Presidente da República. A eleição presidencial tornou-se, se não numa coisa dolorosa, pelo menos num acontecimento melancólico. Talvez se tenha imaginado que o cargo só deveria ser ocupado por um grande, mulher ou homem, que tivesse adquirido esse estatuto na vida política. E essa tem sido a regra, embora o actual Presidente já tenha sido eleito com pé e meio fora dessa regra. Contudo, ao olharmos os candidatos, entre altos e baixos, não se vislumbra um que, pela sua acção política, tenha meio pé dentro do círculo dos grandes deste país. São umas eleições tristonhas, com candidatos comprados nos saldos, em que não se vislumbra um em que apeteça votar. Muitos deles são esforçados, mas a quem falta pedigree, não aquele herdado por via da genética - isto não é uma Monarquia -, mas adquirido pelo combate pelo bem comum. Uma eleição entre valetes e arrivistas, em pleno e melancólico Inverno. O Inverno do nosso descontentamento. 

domingo, 23 de novembro de 2025

Simulacros e simulações (76)

Marcelino Vespeira, Óleo 131, 1960 (Gulbenkian)

Talvez sejam braços em busca da potência mecânica do movimento. Talvez sejam hélices em rotação à procura do sossego e do silêncio depois de um voo atribulado. Talvez sejam os olhos que levam a imaginação a supor mundos onde não existem. Talvez seja o desejo que, vergado à carência, não pára de simular fantasias e quimeras.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Manuel Ribeiro (1878-1941)


[Um pedido de desculpas aos leitores: o texto do post tem estado truncado, foi agora reposto correctamente]

Como em todas as literaturas, também na portuguesa existe um cânone. No romance, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís ou José Saramago pertencem, de forma permanente, ao cânone. Outras entrarão e sairão dele em conformidade com os humores do dia. E há aqueles que parecem excluídos para sempre desse cânone. Como o escritor alentejano Manuel Ribeiro. Contudo, é uma personagem muito interessante e um escritor com qualidade literária. Muito lido nos anos vinte e trinta, a morte trouxe-lhe, como a muitos outros, o esquecimento do público.

Filho de um sapateiro de Albernoa, chegou a cursar medicina, tendo desistido por falta de recursos. Teve um percurso singular. Durante a República interessou-se pelo sindicalismo, foi director do jornal revolucionário A Bandeira Vermelha. Tornou-se anarquista, colaborando com o jornal A Batalha, e, para completar o percurso revolucionário, foi um dos fundadores do Partido Comunista Português, onde foi eleito para a comissão geral de educação e propaganda e para a Junta Nacional. Em 1921, foi enviado como delegado da secção portuguesa da Internacional Comunista ao III Congresso do Comintern. Contudo, o percurso de Manuel Ribeiro não termina aqui. O revolucionário anarco-comunista converteu-se ao catolicismo, onde encontra a espiritualidade que as doutrinas revolucionárias tinham escondido sob os problemas do estômago.

Entre os nove romances que publicou, destacam-se duas trilogias. A Trilogia Social (A Catedral (1920); O Deserto (1922); A Ressurreição (1923) e a Trilogia Nacional (A Colina Sagrada (1925); A Planície Heróica (1927); Os Vínculos Eternos (1929). Na primeira, acompanha-se o percurso de um arquitecto, Luciano, no seu processo de conversão ao catolicismo. De certa maneira, podemos ver na personagem uma projecção do autor. O curioso é que o processo de conversão estava já em andamento, enquanto Manuel Ribeiro era preso como revolucionário ou quando foi um dos fundadores do Partido Comunista. A Trilogia Nacional trata, em primeiro lugar, dos tempos finais da República, depois da tensão, no Alentejo, entre a terra e a fé e, por fim, do conflito entre moral e ciência, um tema actual.

Vale a pena voltar a ler Manuel Ribeiro? Sim, embora não seja fácil para leitores que não tenham disponibilidade para uma linguagem rica, erudita e complexa, nem para a descrição que suspende a acção, para dar ao leitor a possibilidade de contemplar através das palavras aquilo que o autor contemplou. Manuel Ribeiro, como outros escritores portugueses, não merece o esquecimento em que caiu.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Beatitudes (83) Inverno

Léonard Misonne, Hiver, 1904
A rudeza do Inverno, com o seu pacto entre o frio, a parca luz  e os dias pequenos, não é um motivo de dor ou ocasião de trenódia. Há nessa mistura de sombras um secreto júbilo, onde a rememoração dos dias luminosos se junta à esperança do que virá. O Inverno é, também, ele, o linho com que se pode tecer a vida feliz.

sábado, 15 de novembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (27)

Luis Roibal, Dibujo, 1992

Chegava a manhã

num motim de luz,

abria a porta

de cinza vidrada,

o quarto vazio

onde se escondia

a sombra do coração.

 

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A persistência da memória (33)

Carl Winkel, Motiv von der Unterelbe, 1907

O trabalho da memória não se orienta pelo chamamento de uma tradição, com a sua legalidade testada ao longo dos anos, ou dos séculos, mas por uma nostalgia indefinível que toca o coração e se exprime no olhar. Esta nostalgia, porém, não é do acontecido ou do vivido, mas dos mundos possíveis que, em certa época, estavam presentes e que a vida se encarregou de eliminar. Na imperfeição de cada época, na imperfeição das coisas de cada época, existem mundos perfeitos que nunca deixarão o estado de potencialidade, para se actualizarem no quotidiano. Quando o olhar surpreende uma dessas imagens, o coração deixa-se atravessar pela nostalgia. Não do que foi, mas daquilo que nunca chegou a ser, mas deveria ter sido. E é isso que ilumina, com leveza, a memória que persiste.
 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os três salazares


PRIMEIRO SALAZAR. Foi um ditador cinzento e manhoso. Tinha a virtude de odiar políticos histriónicos e espalhafatosos. Esse ódio virtuoso, porém, era acompanhado por outros ódios nada virtuosos. Odiava, antes de tudo, a liberdade. O país que geria com mão de ferro era uma prisão a céu aberto, pois, para além das prisões políticas, não havia lugar que não estivesse sob vigilância, notícia, livro, peça de teatro ou filme que não fosse objecto de censura. Odiava que os portugueses se instruíssem, pois instrução era coisa apenas para alguns, os de bem. Os outros tinham a miséria dos campos, a pobreza das fábricas, a mediocridade do dia-a-dia como destino. Odiava a realidade e arrastou Portugal para 13 anos de guerras coloniais, num mundo onde a colonização tinha perdido sentido, de tal modo que nem o Vaticano aceitou a política colonial do beato Oliveira Salazar. 

SEGUNDO SALAZAR. Um salazarito histriónico e espalhafatoso, sempre pronto para berrar. Manhosinho, cinzentão e provocador. O primeiro Salazar, que não admirava histriões, não o aceitaria nem para porteiro. Julga que Deus o enviou, mas é claro, para qualquer observador atento, que aqueles modos, as coisas que diz, os cartazes com que conspurca a imagem de Portugal, os berros e esgares com que ele e os seus inundam o parlamento e as televisões, tudo isso é obra do tinhoso, talvez de um belzebu da classe baixa que anda à procura de promoção nas hostes infernais e esteja empenhado na perdição dos portugueses. E como todos sabemos, quando alguém, por influência do tinhoso ou de um seu agente, se perde, vai acabar no inferno. 

TERCEIRO SALAZAR. O mais importante dos três. É, segundo o dicionário da Porto Editora, um utensílio de cozinha que consiste numa espátula de borracha presa a um cabo de madeira ou plástico, usado para rapar tachos ou tigelas. Este salazar é o símbolo dos outros. Quando um Salazar, ou mesmo um salazarito, toma conta dos tachos e das tigelas, o que fica para os portugueses, para a maioria,  é rapar tachos e tijelas, como se o seu destino fosse o de permanecer à porta da cozinha, à espera dos tachos vazios e das tijelas lambidas, para rapar os restos lá deixados pelos portugueses de bem, sempre disponíveis para trazer a pátria na boca e o conteúdo dos tachos no bolso. Será este salazar que os portugueses terão direito, se um dia decidirem eleger um qualquer salazarito histriónico e sem maneiras, possuído por um belzebu à procura de promoção por arrastar os portugueses para o inferno.

sábado, 8 de novembro de 2025

Mariana Mortágua e o Bloco de Esquerda


Mariana Mortágua anunciou que deixará o parlamento e não se recandidatará à coordenação do Bloco de Esquerda (BE). O caso Mariana Mortágua é interessante porque mostra que uma pessoa tecnicamente bem preparada não tem de dar um bom líder. Mariana Mortágua foi uma deputada excelente. Competência técnica e assertividade. Contudo, a sua liderança política foi um desastre. O BE quase desapareceu do parlamento e está em vias de extinção. À sucessora de Catarina Martins falta-lhe uma qualidade essencial: a empatia. Surge, aos olhos do eleitorado, como distante, para não dizer arrogante. Falta-lhe também maleabilidade para perceber as mutações sociais e para compreender que a agenda política do seu partido já só atrai um núcleo muito restrito da população. Mariana Mortágua passa de uma deputada brilhante a uma líder medíocre. Ultrapassou o seu limite. Pagou, politicamente, caro. 

É um facto que os tempos não estão de feição para a esquerda, seja ela qual for. Os interesses do eleitorado deslocaram-se para áreas em que a esquerda tem muita dificuldade em integrar na sua agenda. Os eleitores estão, por um lado, mais individualistas e descrentes nas lutas sociais; por outro, mais interessados numa afirmação identitária, deixando-se cativar pelos discursos de exclusão dos que são diferentes, como os imigrantes. Também a visão do mundo que, através das redes sociais, se tornou dominante, é adversa para a esquerda. Tanto ao nível dos costumes, como da economia, as perspectivas ideológicas e a interpretação do que deve ser a sociedade mudaram radicalmente, estando parte substancial do eleitorado mais perto daquilo que é defendido pela direita radical, do que daquilo que propõe a esquerda. Tudo isto tornou a tarefa de Mariana Mortágua mais difícil, mas isso não explica a sua incapacidade para lidar com a situação. 

A substituição da actual líder por um outro porá fim à agonia do BE? É duvidoso. O BE foi uma invenção genial para integrar no sistema político nacional um conjunto de militantes da extrema-esquerda, que pretendiam entrar no mainstream político sem passar pela desonra da deserção da sua área e integração nos grandes partidos. Enquanto esses militantes, que vinham dos anos 70, estiveram no activo, o BE, ajudado por uma comunicação social simpática e por uma conjuntura política favorável, teve um desempenho político e eleitoral interessante. Hoje, porém, nem a comunicação social é simpática para o BE, nem a conjuntura lhe é favorável. Mariana Mortágua estava longe de ser a líder ideal do BE, mas os tempos não auguram nada de bom para a futura liderança.

sábado, 25 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (26)

Arshile Gorky, Agonia, 1947

Esculpir horizontes

em espelho quebrado,

 

uma feroz paixão

resplandece na face.

 

Ciclone de sangue

em ondas de areia.

 

As águas do mar

reverberam na manhã:


o coração demente,

os miasmas da noite.

 

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Comentários (33)

Paul Klee, Arrebato de miedo III, 1939

 o nosso medo
não usa camisa e dormir
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa
não apaga a vela
Zbigniew Herbert

Pior que os medos metafísicos são os terrores físicos. Não aqueles que vêm da deriva de uma biologia que perde o oriente e se entrega à música da dor ou à dança da morte. Há um terror que nasce do arbítrio do outro, daquele que, sem lhe ser concedido, tomou um estranho poder sobre as nossas vidas, dispondo do nosso corpo e do nosso tempo. O pior dos medos nasce no coração desse obscuro outro, da sua impotência, do negro pavor que o habita, do desejo de apaziguar a sua culpa lançando um lençol de perdição sobre a vida dos outros.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Diálogos aporéticos (11) - A grande noite

Yale Joel, Couple embracing late at night on the Schoffelgasse,  Zurich, 1948

- Adeus, tenho de ir.

- Mas, tínhamos combinado...

- Não me lembro de ter combinado nada.

- Estás a brincar.

- Talvez sofra de uma estranha amnésia.

- Como é possível? Não tens idade para isso.

- Meu querido, a deficiência da memória não tem por causa única a idade.

- Os planos que ontem fizemos para esta noite.

- Ontem? Onde?

- Quando nos encontrámos no café.

- Ah, sim, encontrámo-nos no café é verdade.

- Esta iria ser a nossa primeira e grande noite de amor.

- Grande, mas ainda não percebeste?

- O quê?

- Esta é a noite mais pequena do ano, como pode ser uma grande noite de amor?

- ...

- Adeus, dorme bem.

domingo, 19 de outubro de 2025

Ensaio sobre a luz (132)

Albert de Rotschild, Am Hallstätter See, 1896

Como se a água fosse um mar de estrelas, um oceano de sóis, o lago reflecte a luz vinda dos céus, oferecendo o abraço da cintilação e a carícia do fulgor da manhã, para que o barco, nascido na terra, rasgue o silêncio das águas e leve a bom porto homem e mulher, que serão ali uma só carne e um só espírito.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Autárquicas em Torres Novas


Trincão Marques. O PS perdeu 1533 votos (diminui 7,7%) e dois vereadores. Uma vitória risível, quase uma derrota de Trincão Marques? Pelo contrário. A candidatura socialista tinha contra si 3 factores importantes: 1. 32 anos de governação socialista cansam até o mais paciente dos munícipes; 2. Havia, no concelho, um descontentamento significativo com a governação da Câmara; 3. A crise nacional que atinge a esquerda, incluindo o Partido Socialista. Estava na hora dos eleitores trocarem de orientação. Trincão Marques conseguiu segurar parte suficiente do eleitorado para conquistar a Câmara e dar a si mesmo um futuro, que pode ser longo, na Presidência. Uma vitória maior do que parece. 

Tiago Ferreira. A coligação PSD/CDS ganhou 3312 votos (cresce 17,3%) e ganha dois vereadores. Uma derrota com sabor a vitória? Só em aparência. Foi uma derrota dolorosa por dois motivos: 1. Perdeu por 83 votos; 2. Perdeu o tempo oportuno: o fim do consulado de Pedro Ferreira e o cansaço dos eleitores era o momento ideal para trocar de cor na Presidência da Câmara. Pode ter hipotecado no domingo a sua possibilidade de chegar um dia a presidente. 

André Ventura. Ganha 1925 votos (cresce 10,4%). O seu objectivo era consolidar, no concelho, a sua imagem e a marca Chega. Parte dos eleitores torrejanos estiveram mais interessados nisso do que no destino do município. Ventura não irá, todavia, sentar-se nas reuniões da Câmara e ofereceu a Presidência ao PS. 

MPTNPerdeu 2023 votos (diminui 11,9%) e o vereador. O movimento estava e está escorado na figura de António Rodrigues. Sem o criador, a criatura definha sem glória. 

BE e CDU. Ambos perdem poucos votos e pouca percentagem, mas já tinham, em 2021, poucos votos e pouca percentagem. Têm um conflito com as aspirações do eleitorado. O seu discurso satisfaz muito os militantes, mas, a cada dia que passa, afasta os eleitores. Apesar de Helena Pinto ser politicamente muito competente, o partido onde está deixou de a ajudar. A realidade social do concelho mudou, mas BE e CDU mantêm-se firmes no passado. 

Munícipes. Foram os grandes vitoriosos das eleições. Livraram-se de um maioria absoluta e não caíram noutra. As maiorias absolutas  criam uma sobranceria nos eleitos, que a certa altura pensam ser os donos dos votos e do concelho. Trincão Marques tem uma dura tarefa pela frente, mas se for humilde, se se dispuser a negociar com seriedade com as oposições poderá ajudar o concelho a sair da madorra em que caiu. As oposições parecem compostas por pessoas com quem se pode dialogar, de modo frutuoso, para bem de todos. A humildade é fundamental, de todos os lados. Os munícipes agradecem.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (25)

Celestino Alves, Canal de Saint-Denis, 1962

Dormir no vento da tarde

um sono de ervas azuis

nos interstícios do soalho.

O sol deixa rastos de cal

na noite que se aproxima,

no coração adormecido

na fúlgida luz das trevas.


[1993]

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Nocturnos 132

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)
É um trabalho demorado aquele onde a noite se gera. Envolta em nuvens de poeira, germina como um planta, com demora e presa nos interstícios do casulo onde se guarda. Depois, eclode e derrama o leite negro sobre o mundo, tingindo cidades e campos com a floração das trevas.

sábado, 11 de outubro de 2025

Meditações melancólicas (96) Dissonância

Charles J. Martin, Storm Landscape with Railroad Tracks, 1929-1930
Uma paisagem tempestuosa, por crua e rude que seja, é sempre motivo de contemplação desinteressada. O espírito entrega-se a um jogo livre, embalado pelo temor do terrível e pela admiração do sublime. Descobre-se, então, numa meditação sobre as forças que irrompem do mundo natural, como elas lhe surgem ao espírito como benfazejas ou encarnações de um mal nebuloso, mas inescapável. O enlevo oferecido pelos jogos naturais termina quando descobre uma dissonância que destrói a paisagem, a presença de um aparato técnico humano, cuja finalidade lhe parecer ser, naquela hora, apenas a de suspender o terrível e destruir o sublime. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Prosa dos dias (34) Os grandes acontecimentos

Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate. Berlin, Germany, October 3, 1990
Todos os grandes acontecimentos políticos, aqueles que inauguram uma era ou um regime, são uma espécie de Big Bang. Têm em si o combustível do entusiasmo, que torna o acontecimento denso e de alta temperatura. À explosão inicial, segue-se uma lenta perda de energia, e o entusiasmo inicial vai-se transformando, paulatinamente, em desilusão. Esta não nascerá directamente do novo regime ou da nova era, mas do desfazer das ilusões daqueles que viveram o momento inicial. Pensa-se sempre que pode conter mais felicidade do que na verdade contém. As pessoas vivem o momento inaugural de modo poético, mas a vida de cada um é mera prosa, que nenhum acontecimento político tem o poder de transformar em poesia.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Perfis 19. O leitor

David Turnley, Man Reading Paper Through Magnifier, 1975

Em todo o autêntico leitor existe uma avidez pelo texto, um desejo de saber o que está escrito, como se no registo de um discurso estivesse inscrita uma verdade decisiva. Se o tempo desgasta os olhos, e estes, no cansaço trazido por tanta leitura, não se dispõem a revelar o segredo, então o intrépido leitor recorre à imaginação e encontra nela o dispositivo que lhe permite retomar o velho hábito. A lente amplia o texto e aquele que com avidez se entrega à leitura nem desconfia que com o crescimento das letras, também o conteúdo do texto pode sofrer inflação, e a verdade que ali residia tornar-se numa hipérbole que sacia o desejo, mas que a transforma em inconfessável falsificação.

domingo, 5 de outubro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (24)

George Seurat, The River Banks, 1883-1884

O tempo espreita

no ardor das ameias.

Vê o rolar da fortuna

no dédalo dos seixos,

o vagar dos campos

nos telhados do casario,

a terra escalavrada,

carcomida pelo Verão,

a linha de um rio,

água esmagada

pelo peso das margens.

 

[1993]

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Terramotos, tsunamis e incêndios


Corre como se fosse uma maldição chinesa, mas é duvidosa a origem. Diz o seguinte: “Que vivas tempos interessantes!”. Ora, não apenas os tempos são interessantes, como muitos de nós os vivem como uma maldição. De onde vem o interesse e de onde chega a maldição? Os tempos são interessantes porque toda uma configuração de valores e modos de viver está a cair, como se um grande terramoto a arrastasse para terra, transformando-a em pó. E a maldição?  Como em muitos terramotos, o problema não é apenas o desabar das construções feitas pelo homem sob o impacto das ondas sísmicas, mas também o que vem depois, o tsunami e os incêndios, tal como aconteceu em Lisboa. E aquilo que estamos a assistir, ao nível dos valores e dos modos de viver, é, ao mesmo tampo, um maremoto e um sem número de incêndios.  

O que aconteceu? Três grandes terramotos. Em primeiro lugar, as revoltas estudantis na Europa e nos Estados Unidos, simbolizadas no Maio de 68. Puseram em causa a ordem moral existente e representaram uma libertação dos indivíduos da tradição que os constrangia. Afirmação de um forte individualismo em matéria de costumes. Um segundo momento, é a vitória política do neoliberalismo, nos anos 80, com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Vitória de um individualismo económico que destruiu o consenso social do pós-guerra e arrastou as classes médias para a estagnação, se não para a pobreza. Por fim, mas como complemento da vitória do neoliberalismo, a Queda do Muro de Berlim e a morte política do comunismo, cuja ameaça, no âmbito da Guerra-Fria, levava os políticos ocidentais a cuidarem das suas populações. 

Os últimos quarenta anos representam o tsunami e os incêndios, isto é, o processo de decomposição, tanto moral, como económico e político, dos valores herdados no Ocidente pela vitória aliada sobre o nazismo e o combate, posterior, ao comunismo. Aquilo que se está a assistir – e a ser vivido por muitos como uma maldição – é, por um lado, a emergência de valores, em nome das virtudes do conservadorismo e da tradição, que põem em causa as liberdades individuais. Por outro, uma paradoxal forma de comunitarismo que, ao mesmo tempo, prega os valores políticos da superioridade da comunidade e das suas tradições míticas sobre o indivíduo, enquanto fomenta o individualismo económico e intensifica as desigualdades sociais. Não sabemos se haverá para o mundo ocidental, algum Marquês de Pombal que reconstrua um novo mundo, mais amplo e luminoso. Nós somos aqueles que sofreram os terramotos e vivem ainda dentro ou do tsunami ou dos incêndios. Vivemos a maldição e somos cegos para o futuro.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A mulher como problema político

Não é ainda muito claro na Europa, mas já o é bastante nos Estados Unidos. O principal problema político que assola o mundo ocidental e que fornece o combustível para a progressão da direita radical e da extrema-direita é a mulher. Melhor: é o papel da mulher na sociedade. A imigração tem surgido como um factor de arregimentação desses quadrantes políticos. Contudo, para um observador mais atento são os direitos das mulheres que estão a mobilizar muitos votos masculinos – em especial nos eleitores jovens, mas não só – para soluções políticas radicais. Na Europa – talvez com a excepção de Espanha – o problema é mais dissimulado, mas aquilo que está a acontecer nos EUA chegará, mais tarde ou mais cedo, a este lado do Atlântico. A retórica extremista usa a bandeira da luta contra o feminismo, mostrando este como uma deriva radical. O que está, porém, em causa, o que mobiliza tantos homens para a extrema-direita?

Em primeiro lugar, a autonomia sexual das mulheres. Não tenhamos qualquer ilusão sobre o assunto. O facto de os homens não poderem, no campo da sexualidade, dominar e impor a sua vontade às mulheres é um factor perturbante para parte significativa do campo masculino. Um outro factor é a escolarização. As mulheres, actualmente, têm uma mais alta escolarização do que os homens. A importância da formação académica, nas sociedades actuais, é de tal modo grande que está a gerar uma nova clivagem de classe entre pessoas com formação superior – na sua maioria, mulheres – e pessoas sem essa formação. Este é também um factor de ressentimento com muito peso no eleitorado masculino. Por fim, o desaparecimento de empregos, relativamente bem remunerados, que solicitem competências vistas como masculinas, baseadas na força física, criando um problema aos homens que apostaram pouco nos estudos.

Estes três factores – todos eles presentes nas sociedades ocidentais – estão a gerar uma radicalização política de parte dos homens, cuja finalidade é limitar os direitos das mulheres, tentando fazê-las retornar a um estado de dependência, limitando drasticamente a autonomia sexual, profissional e, plausivelmente, académica das mulheres. E isto pode mesmo acontecer, caso as mulheres e as forças democráticas não se mobilizem para enfrentar o problema. Esta deriva antifeminina é um sintoma da decadência do Ocidente. Os eleitores estão mais preocupados em voltar ao século XIX – sonhando com fadas do lar – do que enfrentar os grandes desafios que a revolução tecnológica e a afirmação de potências industriais, políticas e militares extra-ocidentais colocam. Uma fantasia, mas fantasias têm colocado ditadores no poder.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Comentários (32)

Anónimo Romano, Escena de gineceo (Villa Imperial. Pompeya)

Os antigos eram jovens, e nós,
disse Bacon num lúcido momento,
somos velhos, embrulhados em
constante movimento. (...)
António Franco Alexandre

Talvez os antigos não tivessem pressa de sair da sua juventude ou não encontrassem um modo para libertar o corpo das amarras com que a natureza os prendia à terra. A lucidez de Bacon, todavia, não é tanta quanto o poeta supõe. Sim, estamos embrulhados em constante movimento. Não conseguimos estar onde estamos, pois qualquer lugar se tornou uma fornalha que queima os incautos que pretendam repousar-se. Vivemos sob o signo do fogo, submetidos à dádiva de Prometeu, que nos condenou a um movimento perpétuo. Onde Bacon se engana é na nossa velhice. Não somos mais velhos que os antigos. Pelo contrário, somos, ao pé deles, crianças irrequietas a brincar com o lume. É o nosso estado infantil que nos embrulha nesse movimento constante e nos impede de descansar, por instantes, na frescura da noite.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A persistência da memória (32)

Dr. Konrad Biesalski e Dr. Krüger, Schmied Am Ambos, 1899

Do antigo trabalho sobre o ferro - desse exercício de submeter a vontade do metal e de lhe impor, por mãos humanas, um imperativo estranho à sua natureza, um mandamento nascido da necessidade humana - persiste a memória do fogo. Já na antiguidade, celebrada em Hefestos e no roubo de Prometeu, era um rememoração tão arcaica quanto decisiva. Não simbolizava apenas a possibilidade de sobrevivência, mas a de um projecto de domesticar o mundo selvagem, obrigá-lo a curvar-se ao desejo dos homens, atormentá-lo com a inconstância das labaredas, se se resistisse à decisão do homem.

sábado, 20 de setembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (23)

Camille Pissarro, Escarcha, 1973

A seca humidade da terra,

doença irisada

na maturação dos frutos.

 

Um mundo de água desaba

na celeste

arquitectura dos campos.

 

Pássaros de cobalto voam

presos no horizonte,

livres na soberania da tarde.

 

[1993]

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Linguagem comum


As democracias vivem do desacordo e do conflito entre perspectivas e interesses políticos divergentes. Contudo, esses desacordos e conflitos estão enraizados numa linguagem comum que permite que os projectos políticos sejam julgados pelo voto popular, sem isso representar um problema para quem defende projectos derrotados, nem dar um acréscimo de poder e de legitimidade – para além do que está na lei – a quem vence. O que surgiu, com a chegada em força da direita radical e extrema-direita, foi uma nova linguagem que não se inscreve na linguagem comum, mas que pretende aniquilar essa linguagem e impor uma outra completamente diferente, na qual os projectos políticos democráticos não tenham cabimento. 

Quando não há uma linguagem comum, o que surge não é apenas a incomunicabilidade entre as partes, mas a violência. Não se trata de derrotar os outros nas urnas, mas de utilizar eventuais vitórias nas urnas para aniquilar os outros, pervertendo o jogo democrático e, se isso não bastar, usar a perseguição política e a violência física. Basta observar o que se passa nos EUA. A Europa não é diferente dos Estados Unidos. Os eleitores – tal como aconteceu nos EUA – estão, cada vez mais, a escolher soluções radicais, políticas extremistas e a enfeitiçar-se com uma linguagem que traz violência verbal e aniquilação do outro. O espectro que assola o mundo ocidental já não é o do comunismo, mas o da guerra civil, cuja finalidade é liquidar a democracia liberal. É para uma guerra civil larvar que estes movimentos orientam a sua política, a sua comunicação e a sua formatação do eleitorado. 

Uma guerra civil pode ser fria ou quente. Uma ditadura é um guerra civil fria, em que uma parte – a que está no poder – tem as armas e a outra está desarmada. É quente quando os dois lados têm armas. Ainda é possível – pelo menos, na Europa – evitar a catástrofe, embora as notícias que vêm de França, da Alemanha e de Inglaterra não sejam animadoras. As forças democráticas parecem de mãos atadas. A destruição da linguagem comum e a consequente radicalização são processos políticos que, a partir de certa altura, fogem ao controlo dos feiticeiros que os lançaram, tornando-se uma bola de neve que ninguém controla e que arrasta tudo no seu caminho. Estamos a chegar a esse ponto. Se a democracia perder a linguagem comum que a sustenta, o que resta não é política, mas violência. A responsabilidade das forças democráticas é dupla: travar a deriva extremista e reconstruir a comunicação com os cidadãos. Sem isso, o risco não é o de perder umas eleições, mas a própria democracia e a vida decente que só ela permite.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Simulacros e simulações (75)

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

Primeiro como simulacro, depois como simulação. Por fim, como realidade. Assim chegam, sobre a Terra, as paisagens nascidas no inferno. Não interessa se no inferno da religião ou se naquele que os homens trazem dentro de si, pois este é a simulação do outro.

domingo, 14 de setembro de 2025

Beatitudes (82) Jogo

John Dumont, The Dice Players, 1891
Não é na vitória que reside a beatitude que abre o coração e alivia o espírito dos trabalhos de cada dia, mas na expectativa com que se aguarda aquilo que a sorte ou o acaso ditarão. Esse momento de suspensão, em que os dados lançados ainda não encontraram o seu lugar, inebria o jogador e é, mesmo que ele não o saiba, a razão da sua vida.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Sondagens e destinos

A mais recente sondagem da Aximage para o Diário de Notícias coloca, pela primeira vez, o Chega como o partido com mais intenções de voto. Independentemente, do facto de as diferenças dos resultados do Chega, da AD e do PS estarem dentro da margem de erro, há três notas que vale a pena salientar.

1. A estratégia de Luís Montenegro de tentar roubar votos ao Chega através da adopção de políticas próximas da direita radical não está a dar os frutos esperados. Parece que as pessoas preferem o original, o radicalismo do Chega, ao simulacro, a conversão ao radicalismo identitário da AD. O problema da AD é que não sabe o que fazer. Se pende para o centro, o Chega rouba-lhe eleitores. Se se inclina para a direita radical, o Chega rouba-lhe eleitores. Pura impotência.

2. Impotente está também a esquerda. Toda somada vale cerca de 35%, o que continua a mostrar que está estagnada e incapaz de inverter o declínio que teve o seu marco decisivo nas últimas eleições. Apesar do ligeiro crescimento do PS de José Luís Carneiro e do Livre de Rui Tavares, não existe qualquer élan que permita perceber uma inversão do estado em que está a curto ou mesmo a médio prazo. Nem sabe por onde começar.

3. O Chega, apesar da completa impreparação do partido, a começar pelo tonitruante líder, tem todas as possibilidades de chegar ao poder. Os maiores disparates que Ventura possa dizer, as mentiras mais descarada que profira, não têm qualquer impacto negativo. Pelo contrário, acrescentam-lhe votos. Isto não é uma coisa inédita. Basta olhar para os EUA. Existe uma forte possibilidade de os portugueses copiarem os americanos. Está no espírito do tempo. E este parece atar os braços, as mãos e os neurónios aos partidos democráticos. A força do destino.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (22)

Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908

Um brado surdo,

a voz debruada

pela sede,

elixir de penumbra,

um sulco

no rio da infâmia.

 

Sobre aqueles dias,

fogos-fátuos

atearam incêndios,

turvaram o terror,

a terra seca

a escorrer das mãos.

 

[1993]

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Ensaio sobre a luz (131)

A. R. Gurrey Jr., Old ocean singing a psalm of of delight…, 1910-1920
O oceano canta um salmo de luz e as nuvens, em coro, respondem, abrindo brechas para que a cintilação vinda do veludo das águas encha os céus, semeando-os de miríades de pontos de luz que, chegada a hora, voltarão aos mares. À música das esferas celestes, responde a terra com cânticos marítimos e promessas de uma sinfonia aquática e eterna.

sábado, 6 de setembro de 2025

Esquerda, uma crise estrutural


A crise que atinge, neste momento, a esquerda na sua globalidade, e que se manifesta, no caso português, em ter deixado de contar para qualquer revisão constitucional, não é um problema conjuntural, mas tem todas as características de ser uma doença estrutural. Não se trata de uma fatia de eleitores, não particularmente numerosa, que oscila entre o centro-direita e o centro-esquerda e que, nas últimas eleições, se inclinou um pouco para a direita. Trata-se de uma grande debandada, tendo os partidos de esquerda, entre 2015 e 2025, perdido quase 40% do seu eleitorado, o equivalente a 20% do eleitorado global. Estes números indiciam que a visão da esquerda para a sociedade – ainda que multifacetada – deixou de atrair os eleitores. A crise é estrutural porque as concepções ideológicas e políticas da esquerda perderam ancoragem em parte substancial do eleitorado. 

Há dois traços ideológicos que são fundamentais para compreender o que se passa. Em primeiro lugar, a emergência do que se pode chamar de identitarismo: a preocupação com a afirmação de uma identidade nacional. Em segundo lugar, a descrença nos mecanismos colectivos para resolução de problemas dos indivíduos. Em 2015, o Chega não existia e, em 2019, valia 1,3%. A esquerda não percebeu o que se estava a aproximar, apesar dos múltiplos exemplos vindos de fora. Presa ao cosmopolitismo dos socialistas e ao internacionalismo de bloquistas e comunistas, ficou cega para um problema que nem pensava que existisse. Pior: não se vislumbra como poderá encontrar um caminho para lidar com a atracção dos eleitores pelo soberanismo identitário, que é, agora, bandeira tanto do Chega como do PSD e do CDS. 

Se o identitarismo é problemático para a esquerda, o cepticismo perante os mecanismos colectivos para resolução de problemas é devastador. Aquilo a que se chama, comummente, esquerda nasceu e cresceu fundado na crença de que as soluções colectivas – revolucionárias ou reformistas – seriam o modo mais razoável para as pessoas melhorarem as suas vidas. Essa crença foi abandonada pelos eleitores, até por muitos, se não a maioria, dos que votam à esquerda. Os eleitores, ao abandonar a esquerda, escolheram dois caminhos: uma minoria converteu-se ao individualismo; a maioria, porém, procurou e procura um salvador, alguém que lhe resolva os problemas que nem o Estado, nem as lutas colectivas, nem a própria pessoa consegue resolver. A crise da esquerda é estrutural porque a esfera ideológica em que o eleitorado se passou a mover é completamente adversa aos valores e à tradição dessa esquerda.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nocturnos 131

Paul Cézanne, Château Noir, 1903-1904
A noite abriga-se na escuridão. Envolta em trevas, avança sobre a casa abandonada, a casa que se perdeu na negra luz do oblívio, como um móvel velho e sem préstimo que se deita fora. Assim suspensa, dança sobre o telhado carcomido pelo tempo e com o seu véu de seda cobre-a para a proteger dos rudes exércitos do futuro.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ciência e democratização da opinião


Uma notícia do Público informava sobre as razões que levam a geração Z, mas não só, a rejeitar o protector solar. O movimento antiprotecção solar é idêntico ao movimento antivacinas ou ao terraplanismo. Para além da contestação da ciência – isto é, do conhecimento rigorosamente testado e avaliado –, estes movimentos partilham o meio de propagação: as redes sociais. Estas são uma forma de democratização. Qualquer um pode emitir a sua opinião sobre qualquer coisa, sem que tenha de provar o que afirma. Antigamente, também existiam opiniões estapafúrdias e idiotas. Contudo, a sua propagação era muito limitada. As redes sociais mudaram tudo. Elas são o lugar em que qualquer opinião pode competir para arregimentar seguidores.

Este democratismo das redes sociais, ao dar força a movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia, antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou física nuclear.

O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes, caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica, como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação, são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais? Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.