terça-feira, 26 de agosto de 2025

Uma mudança radical


Julgo que ainda não se compreendeu bem o significado das últimas eleições legislativas. Elas podem representar – ou representam, efectivamente – um corte com o 25 de Abril de 1974 e com os equilíbrios constitucionais que vigoraram nos últimos cinquenta anos. Esses equilíbrios fundavam-se numa aliança – por norma, tácita – entre o centro-esquerda, representado pelos socialistas, e o centro-direita, representado pelo PSD, com ou sem a muleta do CDS. Dentro desse equilíbrio coube tanto um CDS mais exaltado como uma esquerda menos reformista: o PCP e o BE. Ora, as últimas eleições puseram fim ao equilíbrio. A esquerda tornou-se, parlamentarmente, irrelevante. Nem sequer conta para uma eventual revisão da Constituição. E esta revisão é uma possibilidade real, mesmo que o PSD por enquanto a negue.

Dois sinais decisivos de que os equilíbrios provenientes do processo de democratização estão no fim são as iniciativas legislativas do governo sobre a imigração e o código do trabalho. São leis estruturais e a esquerda nada pode fazer para as alterar. A primeira chocou com o Tribunal Constitucional e à segunda pode acontecer o mesmo. Um cenário plausível é o de a grande coligação parlamentar de direita – PSD/CDS + IL + Chega –, através da contínua proposição de leis que chocam com a Constituição, encontrar uma desculpa que lhes permita fazer aquilo que, na verdade, todos os seus chefes desejam: alterar a actual Constituição, de modo a deixá-la irreconhecível, aniquilando os traços sociais específicos que a transição à democracia em 74 lhe deu.

Os grandes interesses que, de modo mais silencioso ou mais ruidoso, como o caso de O Observador, estão por detrás do Chega, da IL, do PSD de Montenegro (o mesmo de Passos Coelho) e do minguado CDS, não perdoarão à direita política que esta não aproveite a situação actual para refazer a Constituição. E é evidente que quem manda não é Montenegro ou Ventura. Eles são apenas representantes. Portanto, será um milagre que a Constituição se mantenha tal como está. Não se espere que a sua defesa venha do PSD. Não estamos em 1975, nem os dirigentes actuais têm alguma coisa que ver com os dirigentes do PPD (era assim que o PSD se chamava) daqueles tempos. Se se pode ter alguma pequena esperança de que a revisão não seja um retrocesso cívico monstruoso, essa esperança reside na União Europeia. É ela que paga as contas, e há um decoro mínimo que a nossa direita tem de ostentar, para que o dinheiro continue a vir. O país político mudou e mudou radicalmente.

domingo, 3 de agosto de 2025

Capitalismo e democracia


Numa newsletter do Público, João Pedro Pereira traz-nos um caso sobre o desenvolvimento do capitalismo. Trata-se da Anthropic, uma promissora start-up de Inteligência Artificial (IA), fundada pelos irmãos Dario e Daniela Amodei. Não há um ano, Dario Amodei, o CEO da empresa, publicou um ensaio afirmando que a IA pode transformar o mundo para melhor, defendendo as democracias e os Direitos do Homem. Agora, porém, “Amodei está em conversações para obter investimentos avultados por parte dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar”, dois Estados que não se distinguem por serem democráticos ou entusiastas dos direitos humanos. Numa mensagem de Amodei aos funcionários, é dito: “Infelizmente, julgo que ‘Nenhuma pessoa má deve alguma vez beneficiar do nosso sucesso’ é um princípio sobre o qual é difícil gerir um negócio.”

O caso é interessante não tanto pela descoberta de que a relação entre moral e negócios é ténue, mas porque coloca em jogo o problema da relação entre capitalismo e democracia liberal. Pretendeu-se que havia um laço forte entre desenvolvimento do capitalismo e democracias liberais. Ora, existem demasiadas provas empíricas que contrariam essa crença. O Chile de Pinochet é um desses exemplos. Outro é a China comunista pós-Mao Tsé-Tung. Podia multiplicar os exemplos. O que é importante, porém, é perceber que não existe qualquer relação necessária entre desenvolvimento capitalista e democracia liberal. Apenas duas liberdades parecem necessárias para a economia capitalista: a da propriedade privada e a de concorrência, embora esta possa ser dispensada.

A relação entre capitalismo e democracia parece ser apenas conjuntural: o resultado, em primeiro lugar, da luta da burguesia contra a aristocracia e o privilégio político desta; em segundo, da luta contra a ameaça do comunismo, enquanto inimigo da propriedade privada. Derrotados aristocratas e comunistas, o capitalismo, para o seu desenvolvimento, pode dispensar regimes democráticos, o que está a fazer diante dos nossos olhos. A América de Donald Trump é um caso exemplar, onde a corrosão das instituições democráticas e liberais está a ser fomentada e financiada por grandes interesses capitalistas. Contudo, há um outro fenómeno inquietante que ainda não é visível, mas que se está a desenhar: a destruição, para além das democracias, da liberdade da concorrência. Grandes interesses económicos gravitam o Estado em busca de protecção e de destruição dos concorrentes. Talvez a destruição em curso não seja apenas a das instituições democráticas, mas também da própria economia de mercado.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A jovem Europa

Em 1923, Joseph Roth, referindo-se ao protagonista do seu primeiro romance, escreveu: “Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa.” Este jovem europeu era protofascista e, com o andar dos anos, tornou-se fascista. O resultado é conhecido: o fascismo italiano, o nazismo alemão, diversas cópias, mais ou menos fiéis, em países europeus, e, acima de tudo, a segunda guerra mundial e o genocídio judaico. Os jovens europeus, no pós-guerra, foram-se tornando outras coisas. Derivaram para a esquerda, tornaram-se antifascistas. Um pouco mais tarde, foram campeões do liberalismo: primeiro, de costumes; depois, de mercado. A certa altura do percurso, a juventude europeia, como outras, mergulhou na internet e nas redes sociais, uma vida sedentária, sombria, vivida no quarto.

Agora, começa a descobrir-se que os jovens europeus estão cansados da vida sedentária. Enquanto a velha Europa definha numa crise demográfica de grandes proporções, aquela jovem Europa – na designação irónica do escritor austríaco – está de volta, com os mesmos jovens limitados, nacionalistas, egoístas, sem fé nem lealdade, e, começa a perceber-se, sedentos de sangue. Uma crise de masculinidade terá atingido parte dos rapazes e, desconfiados da sua natureza, parecem ter uma necessidade de exibir, como uma condecoração, a mais rasteira misoginia e um culto da violência, que começa a passar das redes sociais para as ruas. A discussão sobre se as actuais extrema-direita e direita populista são ou não fascistas é irrelevante. O importante é a pulsão que conduz muitos jovens – principalmente, do sexo masculino. E esta pulsão é violenta, nacionalista e, em potência, violenta.

A situação social e política em que vivemos é, do ponto de vista económico, social e político, muito diferente da que se vivia na Europa do fim da primeira guerra mundial. Contudo, há um ponto em comum: a proliferação do ressentimento. Foi o ressentimento de largas camadas da população que deu combustível ao fascismo e ao nazismo. Ora, apesar de as pessoas, mesmo as mais pobres, viverem muito melhor do que nessa altura, o ressentimento multiplica-se. Seja devido à presença de estrangeiros ou à comparação com as elites, a massa dos ressentidos, na qual a presença de jovens rapazes é significativa, cresce e está a tornar-se um problema para as democracias liberais. Nos anos vinte e trinta do século passado, os políticos democráticos foram impotentes para lidar com essa “jovem Europa”. Resta saber se, passado um século, aprenderam alguma coisa.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (20)

Darío de Regoyos y Valdés, Plaza de un pueblo

Rumores ferviam

na sombra da vila.

A vinda do calor,

ervas calcinadas,

o vinho do rancor

na luz do Verão.

 

[1993]

segunda-feira, 28 de julho de 2025

O caminho das sombras (1) Thomas Bernhard e a Coisa Originária

Juan José Aquerreta, Ácida Tristeza, 1991

O primeiro volume das obras autobiográficas de Thomas Bernhard tem por título Die Ursache - Eine Andeutung. Uma tradução literal pode ser: A Causa - Uma Insinuação. O livro trata dos primeiros anos de vida do escritor. Tem dois capítulos e, em cada um, existe apenas um parágrafo. Traduzir Die Ursache por A Causa perde o sentido fundamental da palavra alemã, onde o prefixo Ur- significa originário, primordial, fundamental. Por seu lado, Sache significa coisa, assunto, questão. Poder-se-ia traduzir Die Ursache por A Coisa Originária. É ao universo da infância e da adolescência que o autor vai buscar a imensa energia negativa que alimenta a beleza escura das suas obras e o fôlego da sua escrita. Mais do que uma causa, no sentido mecânico das relações determinísticas de causa e efeito, o que é mostrado é a Coisa Originária ou, para ser mais preciso, a origem da coisa: do estilo, do conteúdo, das opções estéticas, da visão do mundo. Estão ali os materiais primordiais - a matéria-prima - de um universo literário que o tempo mostrou ser de grande fulgor, um incêndio que é também uma extinção, precisamente o título de uma das suas grandes obras.

sábado, 26 de julho de 2025

Perfis 18. O professor de aldeia

August Sander, Village Schoolteacher, 1921
O modesto professor de aldeia pousa para o futuro, para que a sua imagem não se desvaneça com o passar dos anos; não sabe, porém, que tudo nele já pertence ao passado. O fato lembra a farda militar, e toda a sua autoridade repousa na encenação de uma marcialidade que, com o passar dos anos, a sociedade vai recusar. A confiança que exibe repousa na ignorância, na certeza de que tudo permanecerá como é. Ao dar-se à objectiva do fotógrafo, exibe a crença na imobilidade do tempo, como se o momento que a fotografia solidifica para a eternidade pudesse contaminar o fotografado e o seu ambiente. Sem esta crença, talvez lhe fosse impossível entrar numa sala de aula, enfrentar as crianças e ensinar-lhes a ler, escrever e contar, imaginando assim que também elas, pelo seu ensino, entrarão na grande barcaça da eternidade, quando, na verdade, estão a mergulhar no rio encapelado do tempo.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Diálogos aporéticos (10) - Linha do horizonte

George Hoyningen-Huene, Divers, Paris, 1930

- O que está a ver?

- Nada.

- Ah. Está tão concentrado no horizonte.

- O horizonte fascina-me.

- Alguma razão específica para tanto fascínio.

- Sim. O simples facto de ser uma linha.

- A linha do horizonte.

- Claro, a linha do horizonte.

- E o que tem ela de tão fascinante?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não. Não consigo ver mais do que a linha.

- E isso é fascinante?

- Nem por isso.

- Não percebo.

- Falta de treino. Talvez falta de imaginação.

- Tornei-me sua inimiga, para me acusar de não saber fantasiar?

- Não se trata de inimizade.

- Então?

- Apenas a constatação de que os seus limites morrem na linha do horizonte.

- E os seus?

- Os meus vão bem para lá dela.

- E o que vê?

- A linha do horizonte.

- Pensava que via para além dela.

- Gostava de ver, mas a linha cega-me.

- Sim, eu já sabia que estava cego.

- Porquê?

- Porque nem a mim me vê.

 

terça-feira, 22 de julho de 2025

Joseph Roth, A Teia de Aranha (Das Spinnennetz)


No fim do capítulo XVIII, o autor dá-nos a chave do romance: Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa. O romance – o primeiro de Joseph Roth – foi publicado em folhetins no jornal vienense Arbeiter-Zeitung. Durante décadas passou despercebido na obra do escritor austríaco. Só foi editado em livro em 1967. A redescoberta do romance acabou por se inserir num momento em que alemães e austríacos se interrogavam sobre a cumplicidade dos pais com o nazismo, o que confere à obra um curioso estatuto. Aquando da sua primeira publicação em folhetins, podia ser vista como uma profecia dos tempos a vir. Nos anos sessenta, porém, ela era uma obra de arqueologia, onde se podia descobrir, com uma precisão impensável, os processos de formação da personalidade nazi-fascista. Nos dias que correm, ela pode ter ainda uma outra função: a de aviso. De certo modo, estão a voltar os tais jovens europeus: nacionalistas, egoístas, sem fé, sem lealdade, sedentos de sangue e limitados.

Não se pense, todavia, que o interesse do romance reside nas suas implicações políticas. Estas são um meio para atingir um fim: a análise do papel do ressentimento na subjectividade moderna. A obra é uma exploração da consciência de Theodor Lohse, um tenente desmobilizado do exército alemão, a análise da tensão entre os desejos que acalenta e a realidade que é a sua. O espaço que existe entre ambos é o solo onde o ressentimento vai crescer. A limitação que o caracteriza não lhe permite confrontar-se consigo mesmo, perceber quais são, no âmbito de uma moralidade saudável, as suas forças e as suas possibilidades. É ela – a limitação – que o conduz a odiar os judeus, os socialistas, os movimentos operários. São, para Theodor Lohse, os culpados da sua situação. O outro não o interpela no sentido do respeito, mas é aquele que o impede de ser aquilo que deseja ser. O ressentimento nasce, assim, para utilizar uma expressão do campo da psicanálise, de uma ferida narcísica.

Esse narcisismo dilacerado, turbilhonado pelo ressentimento, transforma-se num duplo egoísmo: o pessoal e o nacional. O protagonista principal é um nacionalista, pois a sua ferida narcísica é também a de uma Alemanha ressentida, derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, submetida ao jugo do Tratado de Versalhes pelas potências vitoriosas. O romance permite perceber que o nacionalismo é um narcisismo colectivo. Imerso nesse ambiente, Lohse, na ânsia de encontrar uma autonomia – isto é, poder e dinheiro –, põe em acção todas as características que marcam o jovem europeu de então. Não apenas o egoísmo e o nacionalismo, mas também a falta de fé, a ausência de lealdades e a sede de sangue. Para subir, não hesita em assassinar os que estão acima de si na hierarquia. O ressentimento é o combustível para as maiores degradações morais.

O título A Teia de Aranha (Das Spinnennetz) é uma imagem tanto da situação em que a Alemanha vivia durante a República de Weimar, como das pretensões do protagonista. A derrota alemã e o fim da Monarquia tinham atirado o país para uma enorme teia de contradições, de interesses, de agitações políticas, de frustrações sociais, onde elites corruptas vicejavam e tentavam controlar, em seu favor, a situação. Também o protagonista se imaginava a aranha que tece a sua teia, onde os incautos vão caindo, enquanto ele se fortalece ao devorá-los. No entanto, a sua limitação não lhe permite perceber que ele próprio é uma mosca em teias que outros tecem, como o espião judeu Benjamin Lenz e a própria mulher Elsa von Schlieffen. Lenz é um niilista e odeia tudo: a Europa, o Cristianismo, os judeus, os monarquias, as repúblicas, a Filosofia, os partidos, os ideais, as nações. É superiormente dotado e manipula tudo e todos. Espia para Lohse, espia para os comunistas, espia para a polícia. O dinheiro que ganha com isso nem é para ele, envia-o para a família. O seu prazer é, parecendo irrelevante, ser o manobrado central. É ele que promove Theodor Lohse, que lhe apresenta as pessoas certas, que o faz ter o nome nos jornais, que lhe apresenta a mulher, uma jovem aristocrata já sem dinheiro, mas com ambições e saber manipulatório suficiente para, obedecendo em aparência ao carácter autoritário do marido, o conduzir na ascensão social e política.

Beneficiando, da sua experiência de jornalista de grande talento, Joseph Roth retrata, com profundidade, a situação social da Alemanha. Fá-lo, adoptando as orientações estéticas da nova objectividade que tinha surgido em conflito com o expressionismo, como superação de uma visão hiperbólica da dimensão sentimental. Theodor Lohse, Benjamin Lenz e Elsa von Schlieffen são, ao mesmo tempo, personagens credíveis na sua singularidade e arquétipos ideais. Theodor Lohse encarna o autoritário protofascista. Benjamin Lenz, o judeu desenraizado. Elsa von Schlieffen, a aristocrata derrotada pelo empobrecimento da família e o fim da Monarquia, mas ambiciosa por retornar ao centro do poder. Se há, porém, um traço que os une é o niilismo. Este alimenta-se de uma enorme gama de inclinações: o ressentimento, o narcisismo, a ambição, o desejo de manipular, a vontade de poder. E é isso que Roth mostra, não sem uma funda ironia narrativa, numa Berlim à deriva, num mundo onde ordem e desordem se confundem.

domingo, 20 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (19)

Joseph Beuys, Horse, 1957

Trémulo e trágico,

o cavalo ergue-se

sobre a escuridão:

desejo de vento,

onda exaltada,

o fogo lapidado

no vidro do mundo.


[1993]

 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Crimes: aparências e realidade


Um estudo, proveniente do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, mostra que a criminalidade desceu em Portugal nos últimos 25 anos. Contudo, a percepção de insegurança cresceu bastante. Um dos factores que desencadeia essa falsa percepção é a atenção mediática dada ao fenómeno do crime. A forma como jornais, rádios e televisões tratam do assunto é cada vez mais intensa, criando no público uma sensação contrária à realidade. Sabemos que, durante o regime de Salazar e Caetano, a censura era muito grande em relação à criminalidade. O regime protegia-se, ocultando tudo o que pudesse mostrar como falsa a visão de um país sereno e de brandos costumes. Em democracia, uma parte, cada vez maior, dos órgãos de comunicação encontrou no crime um espaço noticioso preferencial.

Existem duas grandes motivações por detrás deste interesse pela criminalidade. Uma estará ligada à lógica de mercado: o crime dá audiências na televisão e tiragens na imprensa. É o mercado a funcionar. As pessoas interessam-se por esses acontecimentos e o mercado satisfaz-lhes os desejos. A segunda motivação é de natureza política. Assim como os dirigentes do Estado Novo temiam que a criminalidade do país estragasse a imagem do regime, também os inimigos da democracia liberal utilizam a percepção da criminalidade como estratégia para desgastar as instituições democráticas. Fomentam um enorme alarido social em torno da segurança, quando o país é um dos mais seguros do mundo. Mesmo para um observador arguto, nem sempre é fácil distinguir, na exploração dos crimes, entre a motivação económica e a política.

Durante muito tempo, foi vital para as democracias liberais a existência de uma esfera informativa livre, onde a concorrência de ideias, para alimentar o debate em torno do bem comum, se podia expressar sem censura. Essa esfera tornou-se, agora, num dos elementos centrais da guerra contra a democracia. A criação de falsas percepções no público tem um efeito arrasador das instituições e está a alimentar o progresso eleitoral da extrema-direita. Isto não significa que não existam órgãos da comunicação social que tentam fazer um trabalho responsável. Existem. Contudo, a cultura instalada por parte significativa dos media está a tornar os cidadãos pouco permeáveis à verdade, preferindo as aparências à realidade. Salazar dizia que, em política, o que parece é. Os seus admiradores não esqueceram a lição: criam a aparência de um país à beira do caos, para as pessoas crerem que assim é e se entregarem nas mãos do salvador de serviço.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Meditações melancólicas (95) Fim do dia

Julius Strakosch, Fin du Jour, 1895

O crepúsculo que antecede o fim do dia é um palco magnífico para a grande representação da melancolia. Esse dia que acaba gera no espectador uma tristeza profunda. Talvez todo o fim esteja desenhado para deixar esse rasto melancólico em quem o vê aproximar-se. Contudo, o cair da noite tem em si um poder mais persistente e verrumante. O coração vê a luz, aquela que por algumas horas iluminou o espírito, ceder o seu império às trevas. O horizonte que se oferecia ao labor dos olhos torna-se numa cortina negra, de onde o prazer de olhar cede o lugar ao temor do que a noite pode trazer.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Ensaio sobre a luz (130)

Pere Ysern Alié, Cisne en el Bois de Boulogne, 1921

Como um cântico na solidez das trevas, a luz irrompe por entre o folhedo do bosque, incendeia as águas de promessas e desejos; solidifica-se na brancura dos cisnes, que deslizam nas águas como se viajassem no tempo ou se entregassem à doce contemplação de uma deusa pagã.

sábado, 12 de julho de 2025

Comentários (31)

Almada Negreiros, Porta da harmonia, 1957

Escuta só a voz
que traz a harmonia
Fernando Guimarães

Nem só de harmonia viverá o homem. Talvez seja mesmo impossível uma vida harmónica. A cada momento, a realidade conspira para fazer do dia uma fonte de conflitos. Umas vezes, com a natureza. Outras, com aqueles que vivem com ele. Quase sempre, consigo mesmo. A vida é milícia e onde a milícia está presente a tranquila paz, mãe da harmonia, é impossível. A injunção do poeta é a expressão de um desejo, mais do que um imperativo. Ora, onde o desejo se manifesta, aí mesmo a desordem campeia, a desarmonia rasga o horizonte e traz com ela a linha indecifrável do caos.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (18)

Jim Dine, Animal, 1990

Animal sem luz

grita no fogo

o rubor da noite,

o mar do medo.

 

Animal sem voz

escreve na água

letras de terra,

o sal do desejo.

 

[1993]

terça-feira, 8 de julho de 2025

Nocturnos 130

Peter von Hess, Nächtliche Rast in einem Kirchdorf (Städel Museum, Frankfurt am Main)
A noite acolhe os viajantes e oferece-lhes um lugar para esquecerem os tormentos que lhes invadem as almas, as fantasias que a imaginação nunca esquece de atear, como uma fogueira que incendeia a razão, os perigos que se escondem nas trevas do coração de cada um. 

domingo, 6 de julho de 2025

Comentários (30)

Wassily Kandinsky, Street in Murnau with Women, 1908

 
«Vem por aqui» - dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
José Régio

Em mundos onde não cessam de gritar "vem por aqui", o melhor é cultivar a surdez. E neste mundo que nos calhou em sorte não se cessa, de manhã à noite, de ouvir a injunção "vem por aqui". Um estranho que chegasse agora, vindo de outro universo, ficaria espantado com a quantidade de guias existentes no mercado, como se os seres humanos andassem perdidos e sem saber onde encontrar, em si mesmos, um mapa ou uma bússola que os pudessem orientar. Se a oferta é assim tanta, temos de supor que a procura é desmedida. Talvez a realidade seja mais prosaica. Mais do que uma orientação no caminho,  as pessoas procurem braços que se estendam para elas, para que se sintam acolhidas e fazendo parte de alguma coisa, mesmo que essa coisa seja obscura ou de frequência duvidosa. Cultivar a sanidade exige, por isso, um disciplina rigorosa da surdez. Tornar-se surdo como caminho para sobreviver num mundo onde os orientadores não sabem o que é a proveitosa disciplina da mudez.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Direita e Esquerda, uma questão de sabores morais


Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. Haidt defende que as opções pela esquerda e pela direita não se devem a decisões de carácter racional, mas são o resultado de intuições morais profundas, que depois são racionalizadas, isto é, justificadas por argumentos. De forma mais simples: ninguém é de esquerda ou de direita por ter escolhido sê-lo após um processo racional de deliberação. Primeiro é-se de direita ou de esquerda, e depois arranjam-se justificações argumentativas.

O que leva as pessoas, segundo o autor, a ser de direita ou de esquerda são intuições morais. A moralidade terá, no mínimo, seis fundamentos diferentes, que se organizam em pares de opostos: cuidado/dano, justiça/engano, lealdade/traição, autoridade/subversão, santidade/degradação e liberdade/opressão. São estes aspectos que, intuitivamente, as pessoas usam para fazerem juízos morais e para codificarem a sua posição política. As pessoas de esquerda baseiam a sua moralidade, fundamentalmente, nas ideias de Cuidado e de Justiça. As pessoas de direita apresentam um espectro moral mais alargado, onde a Lealdade, a Autoridade e a Santidade (certas coisas são consideradas sagradas e intocáveis) têm um papel preponderante. Pessoas de esquerda e de direita valorizam a Justiça e a Liberdade, mas interpretam-nas de modo diferente. As pessoas discordam politicamente porque preferem inconscientemente sabores morais diferentes.

As ideias de Haidt são úteis para pensar como devem agir as lideranças políticas. Uma possibilidade é concentrarem-se apenas nos fundamentos morais da sua tribo política: a esquerda valoriza o cuidado e a justiça igualitária; a direita, a lealdade ao grupo, a autoridade e a sacralidade de certas instituições. Este caminho conduz à polarização, a guerras culturais – que são, afinal, conflitos morais. Líderes responsáveis, de ambos os lados, devem procurar estabelecer pontes com quem tem gostos morais diferentes. Ser político é mais do que ser de esquerda ou de direita. É, sem negar a sua preferência de sabores morais, procurar laços com os outros, porque a política visa o bem comum. A democracia não é a vitória total de um lado e a derrota do outro, mas a alternância de sabores e o respeito por quem tem gostos diferentes. Ora sabe mais a sal, ora mais a pimenta. O essencial é a qualidade do alimento: a governação de uma comunidade que se pretende unida na diversidade.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Militares e a doença da democracia


O prelúdio das eleições presidenciais é um sintoma da doença da democracia. Não bastava a existência de um candidato militar, com possibilidades de vitória. Surge a possibilidade de, ao lado da candidatura de um almirante, haver a de um major-general. Portugal está cheio de saudades dos tempos do PREC, quando os candidatos mais fortes à Presidência da República eram militares. No início dos anos oitenta, uma revisão constitucional acabou com o Conselho da Revolução e tornou o regime português numa democracia plena, civil e civilizada. Durante quarenta anos, a política era coisa de políticos, enquanto os militares tratavam dos assuntos militares.

Qualquer cidadão – incluindo os militares, desde que não estejam no activo – tem o pleno direito de se candidatar. Gouveia e Melo, o almirante candidato, e Isidro Morais Pereira, o major-general putativo candidato, estão no pleno direito, enquanto cidadãos, de serem candidatos à Presidência da República. O problema é que não se conhece, em nenhum deles, qualquer competência política. Têm uma completa virgindade política, uma inocência completa perante os dilemas que a gestão política coloca a quem ocupa a Presidência. São conhecidos do público: um, o almirante, pela boa gestão da distribuição e aplicação dos stocks de vacinas; o outro, pelo comentário militar na televisão. Podem ter currículos militares brilhantes, podem ser bons gestores de armazéns ou analistas militares, mas nada disso nos diz seja o que for sobre como vão lidar com um mundo em que o Presidente da República tem menos poderes que um almirante ou um general no seu ramo das Forças Armadas.

Se a candidatura de um ou dois militares, sem preparação política, é já um sintoma forte da doença da democracia portuguesa, aquilo que torna apetecíveis as suas candidaturas é decisivo para um diagnóstico dessa doença. A sua real vantagem eleitoral é não serem políticos, nada saberem daquilo a que se candidatam. Parte dos portugueses tem um problema com os políticos. As pessoas pensam que não vivem tão bem quanto desejam por culpa dos políticos. Os fracassos sociais e existenciais de cada um não são sua culpa, mas dos políticos, transformados em bodes expiatórios. A solução é escolher não políticos para os cargos que exigem políticos preparados. Isto é uma doença porquê? Por dois motivos: em primeiro lugar, porque as pessoas continuam a acreditar que têm de ser os outros – os políticos – a tratar da sua vida; em segundo, porque essa crença leva a escolhas pouco razoáveis de pessoas sem qualquer preparação para cargos altamente exigentes.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (17)

Edward Hopper, Manhã numa cidade, 1944

Cantavas na parda

claridade da aurora.

 

E tudo ardia

na luz

da madrugada.

 

No cristal aceso,

o fogo da manhã.

 

[1993]


sábado, 28 de junho de 2025

Beatitudes (81) No jardim

Constant Puyo, Au Jardin, 1902

Quando o tempo rodava mais lentamente, e as horas se dilatavam como um balão animado por sopro vigoroso, as mulheres desciam aos jardins para aí colherem a luz de uma vida tranquila e as flores  de uma paz tão diáfana que nem para ela havia nome. Tudo girava em torno da inocência e da ocultação do mundo. Respiravam sem pressa o aroma da eternidade, como quem recebe a coroa da beatitude.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Simulacros e simulações (74)

Georgia O'keeffe, Black and Purple Petunias, 1925

Não são petúnias o que vemos, mas o seu simulacro. Alguém viu verdadeiras petúnias. O fascínio foi de tal ordem que decidiu simulá-las. Entrou, então, num jogo de simulações. Só parou quando, perante o simulacro produzido, pensou nas petúnias vistas. Aquelas, as originais, morreram, mas estas têm a aspiração da eternidade.

terça-feira, 24 de junho de 2025

A persistência da memória (31)

Theodor and Oskar Hofmeister, Apfelernte, 1898
Haverá ainda quem colha maçãs, talvez verdadeiros exércitos que invadem os pomares e num ritmo frenético roubam, com a ríspida desfaçatez da ignorância, o fruto à árvore a que pertence. Contudo, a memória que persiste no fundo do homem pertence a uma outra realidade. Um gesto lento, quase um rito sacrificial, desprende a maçã da macieira, para a depositar no cesto que a levará ao mercado e à mesa. Na colheita do fruto, manifesta-se um cuidado ancestral com a árvore que o trouxe à existência, uma reverência pelo dom e um sinal de fraternidade ente a coisa colhida e quem a colhe.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (16)

Ana Marchand, sem título, 2000 (Gulbenkian)

Morre pássaro insolente,

ave esquiva de asas tecidas

pela mão que escreve.

 

Morre, morre, aí mesmo

onde a noiva perdida

abriu o segredo sobre o altar.

 

Morre em teu voo nupcial,

ao som das folhas do plátano,

perdido no ouro do Outono.

 

[1993]

sábado, 21 de junho de 2025

Ensaio sobre a luz (129)

Fernando Lemos, Jardim, 1949 (Gulbenkian)

As árvores recreiam-se com jogos de luz e sombra. Com cuidado, como uma criança absorvida no exame de uma realidade desconhecida, seleccionam os raios luminosos de que se apropriam e os que deixam passar, para que na terra se desenhem infinitas configurações, que elas, na expressiva mudez em que vivem, contemplam com prolongado prazer.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Avatares, Influencers e Seguidores


Como estamos a destruir os nossos modelos de sociabilidade? O núcleo central dessa destruição parece residir nas redes sociais e nas suas estratégias algorítmicas. Contudo, há duas realidades que merecem uma atenção especial. Por um lado, o uso de avatares; por outro, o par influencers – seguidores. Ambos são modalidades que põem causa o modo como construímos a relação com os outros. Estas realidades virtuais têm um enorme potencial destrutivo, pois transitam facilmente do mundo digital para o mundo real, quando não o substituem de modo radical. Há dois problemas morais que estas realidades colocam.

O avatar é usado para manter o anonimato e esconder o rosto da pessoas por uma imagem simbólica. O rosto, segundo o ensinamento do filósofo Emmanuel Lévinas, não é apenas um conjunto de traços físicos, a composição de uma figura determinada pela lotaria genética e a interacção com o meio. O rosto do outro é manifestação  de uma diferença absoluta em relação a mim. É uma presença que me interpela e questiona. Mas também é a revelação de uma vulnerabilidade. Contudo, é essa vulnerabilidade que traz com ela um apelo dramático: não matarás! Quando se esconde o rosto através de um avatar, esconde-se a vulnerabilidade, mas também a injunção: não matarás! A qual está nos alicerces da nossa sociabilidade.

Se o Iluminismo nos trouxe alguma coisa de fundamental, foi não apenas o reconhecimento de que somos seres racionais, mas que isso tem consequências no campo moral e político. Seres racionais pensam por si próprios – mesmo quando se colocam no lugar do outro. Esse pensar por si é a marca da autonomia e da dignidade humana. O par influencers – seguidores é a subversão da ideia iluminista da autonomia da pessoa. O seguidor submete a sua opinião à opinião do influencer, aliena a sua autonomia de pensamento e com ela a dignidade que deve ser a essência de um ser dotado de razão.

Nada disto é inócuo. Nem a praga dos avatares, nem epidemia de influencers com os seus rebanhos de seguidores. Exploram a fragilidade humana, desarticulam o respeito pelas instituições da vida comum, abrem brechas na sociabilidade que permite vivermos uns com os outros. Os regimes democrático-liberais fundam-se no respeito que o rosto do outro me exige e na concepção de que temos uma dignidade porque somos seres que conseguem pensar por si mesmos. São estes pilares que estão a ser, visivelmente, corroídos. Uma situação para a qual, as democracias parecem não saber como lidar com ela.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Alma Pátria 72: José Afonso, Balada de Outono


 


Retomemos esta rubrica com José Afonso. Não aquele que é mais conhecido, mas um outro que está na sua origem, o que cantava fados e baladas de Coimbra. A visão de um Zeca Afonso revolucionário, com as suas canções de intervenção, ofusca o arcaico Dr. José Afonso. O que encontramos neste é, muito curiosamente, a música onde se expressa de uma forma fundamental aquilo que se poderia chamar de sentimento português. Não se trata, nesta fase musical do autor de Os Vampiros, de um nacionalismo à maneira do Estado Novo, mas de uma afirmação da especificidade portuguesa. Balada de Outono, editada num EP de 1960, é um claro exemplo dessa portugalidade a que José Afonso, em vários momentos da sua carreira musical, deu voz. 

domingo, 15 de junho de 2025

Prosa dos dias (33) Ridículo

Ilse Bing, Cancan Dancers, Moulin Rouge, 1931

Não poucas vezes, uma fotografia mostra-nos o ridículo que habitava no passado. As que mais sofrem são aquelas que pretendem celebrar um momento, um modo de vida, ou dar testemunho da época. Para essas, o tempo age sem piedade. Quanto mais ele passa, tanto pior se torna a realidade que foi retida para a eternidade mortal da vida humana. Contrariamente ao que se pensa, o passado não é imutável. Ele muda continuamente, arrastado pela voragem do tempo, tornando-se cada vez mais estranho, mais fastidioso, mais ridículo.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (15)

Joaquin Sorolla y Bastida, Beach Promenade

Vens luminosa

e tudo se apaga

no lugar indeciso

onde a terra

se abre

sob a seiva

do silêncio

ao mistério azul

das ondas do mar.

 

[1993]

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Máximas (25)

Felix Vallotton, sem título, 1917

 Quando os estúpidos e os canalhas se juntam, o mundo começa a arder.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Uma grave cegueira

Diego Rivera, Las Ilusiones, 1944

A ideologia é uma modalidade grave de cegueira. Muitas vezes, irrecuperável. O artigo de Vicente Nunes - Público, Brasil - mostra um exemplo. Os brasileiros que podem votar nas eleições portuguesas deram, em número muito apreciável, o seu voto a André Ventura. Agora, o líder do Chega pretende proibir o reagrupamento familiar, que muitos desses imigrantes esperam ansiosamente. Todos os sinais estavam lá, mas as pessoas, movidas pela ideologia, não conseguem ver. Melhor: não querem ver. Este fenómeno não atinge apenas os brasileiros em Portugal. Basta ver que, mesmo nos EUA, muitos imigrantes votaram naquele que os está a expulsar. Há uma atracção pelo abismo e as pessoas, à beira desse abismo, não hesitam em dar o passo em frente. Certamente, que o governo e os socialistas acabarão por tomar medidas que os beneficiem, tratando-os como pessoas. Contudo, se governo e oposições responsáveis esperam reconhecimento deles, podem esperam sentados. Os votos irão para quem os quer expulsar.

sábado, 7 de junho de 2025

Encontros


Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. Uns, os empregados, porque ganham pouco e trabalham muito, outros, os empregadores, porque os colaboradores (como agora se diz), devido aos sindicatos, à esquerda e à democracia, ganham demais e colaboram de menos. Imagino que, no dia em que Ventura chegar ao poder, ambos ficarão felizes: os empregados passarão a ganhar mais e os patrões a pagar menos.

Outro encontro inesperado foi dos jovens rapazes com a sua masculinidade. Encontraram-na na cabine de voto. É de homem, pensaram ao pôr a cruz. O mundo tornou-se um lugar difícil para muitos jovens do sexo masculino. A escola é uma coisa boa para encontrar amigos, mas estudar é uma chatice. Coisa de meninas. E as meninas assim o fazem. Ocupam o topo dos resultados e entram nas faculdades que pretendem, para cursos que dão rendimentos interessantes, e em que cada vez menos rapazes entram. Uma masculinidade ferida pelas exigências escolares encontra a sua redenção na cruz do voto. O salvador irá pôr as mulheres no sítio, abolir a necessidade do esforço escolar e dar aos homens aquilo a que têm direito.

Outro encontro feliz foi o do eleitor atormentado com a presença de imigrantes. Foi à cabine de voto para se desencontrar com eles e encontrar-se consigo. Pouco lhe interessa que sejam o trabalho e as contribuições desses imigrantes que lhe permitirão ter uma reforma, quando chegar o dia. Imigrantes, coisa horrível, tornam feia a paisagem humana da pátria, uma poluição visual. Mais vale morrer de fome aos 70 anos, do que suportar estas pessoas a fazerem aquilo que os portugueses não querem fazer, contribuir para que a economia não se afunde e a Segurança Social não colapse. De súbito, o eleitor atormentado descobriu a sua vocação: mártir em nome da pureza da raça.

Todo o resto, nas eleições de 18 de Maio, foram desencontros. Os partidos de esquerda desencontram-se com o seu eleitorado, quem sabe se num divórcio irremediável. A Iniciativa Liberal e o Livre subiram, mas desencontraram-se com os seus objectivos: a potência foi menor que o desejo. Até a AD de Luís Montenegro, apesar da vitória e do crescimento, se desencontrou com uma maioria que lhe permitisse fazer o que lhe vai na alma. Os portugueses – parte substancial, não se generalize – parecem muito animados e desejosos de ver o país mergulhado na confusão. E como se sabe, não há melhor lugar para encontros do que a confusão.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Comentários (29)

Pablo Picasso, The Bottle of Wine, 1925-1926

Despertei este vinho
do seu sono de doze anos
Daniel Jonas

Como o vinho, também o espírito pode dormir durante doze anos, muitas vezes mais e, muitas outras, por toda a vida. Como há vinhos que nunca acordam, também há espíritos que permanecem uma existência sem dar um sinal de vida. Chegaram a este mundo exaustos e não encontram em si a força para se elevarem à vigília. Talvez a temam, pois é o caminho para o despertar. Não, não é o despertar que vem em primeiro lugar e, só depois, chega a vigília. Esta é a porta pela qual o espírito pode encontrar o caminho para o seu despertar, para as provações que o esperam e para a descoberta de que entrou num caminho sem fim.

terça-feira, 3 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (14)

Teresa Magalhães, sem título, 1981 (Gulbenkian)

Se o dia cai

em teus olhos,

um augúrio

de água

ergue-se

na voz

lêveda do mar.


[1993]

domingo, 1 de junho de 2025

Por detrás dos resultados eleitorais


Olhando para o resultado eleitoral de 18 de Maio, importa perceber o que se está, subterraneamente, a mover para gerar os resultados a que se chegou. Parte-se de duas premissas. Em primeiro lugar, este mover-se da configuração eleitoral vem de trás — não apenas de há um ano. Em segundo lugar, não se trata de um movimento nacional, mas atinge parte substancial do denominado mundo ocidental. Há excepções, claro, mas são muito específicas. A análise centra-se em três domínios: social, cultural e político. 

Do ponto de vista social, a derrota da esquerda — em especial a do Partido Comunista, uma derrota que acentua as muitas que vem sofrendo há longos anos — torna evidente que os conflitos sociais e as lutas de classe deixaram de poder ser enquadrados na velha oposição entre proletariado e burguesia e na retórica da revolução. Hoje, as classes populares não querem revoluções nem se sentem parte de uma classe. Revoltam-se porque a vida não lhes permite expandir a afirmação da sua individualidade através do consumo e das práticas de reconhecimento social. A sua revolta não é contra os patrões, mas contra as elites intelectuais e políticas, que funcionam como bode expiatório. 

O resultado obtido pelo Bloco de Esquerda (BE) simboliza um eleitorado que não está interessado nas causas fracturantes que foram a agenda do BE e de parte do Partido Socialista. As questões de género, de identidades sexuais, de interpretação da história — tudo isso sofreu uma derrota substancial. O confronto cultural que a esquerda, a partir de certa altura, decidiu erguer como bandeira contra a direita salda-se, nesta hora, numa pesada derrota. A esquerda substituiu o antigo conflito contra a religião por um conflito cultural. Ora, este não é mais do que velho conflito religioso, agora secularizado. 

Por fim, a questão política. Em primeiro lugar, a implosão, acontecida já noutros países, da tradicional dicotomia direita–esquerda. A esquerda tornou-se irrelevante para as coisas essenciais, como a revisão constitucional. Isto não significa que a velha dicotomia esteja morta — está muito doente. Contudo, o dado essencial é outro. Do ponto de vista político, estas eleições representam uma dura derrota para as visões cosmopolitas, para a ideia de cidadania mundial. O eleitorado português, como o de muitos outros países, está a reivindicar o retorno ao velho Estado-Nação e às regras de inclusão e exclusão que eram as dele. Esta é a nota política mais importante. 

Em síntese: afirmação de um novo eixo da luta de classes, derrota da esquerda na guerra cultural e afirmação do poder de atracção do velho Estado-Nação e do nacionalismo que lhe subjaz.