sábado, 19 de abril de 2025

Ensaio sobre a luz (128)

Otto Scharff, Eifeltal, Eifeital Valley, 1904
A luz interrompe-se, e uma sombra projecta-se sobre a Terra. A desordem de todas as coisas encontra um abrigo e um princípio severo que, com a audácia dos construtores de mundos, fará do caos um cosmos e da sombra um sol fremente, sob o qual o silêncio se abre ao primeiro cântico matinal.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O poder como punição


A tradição ocidental de reflexão sobre o fenómeno político fundamenta-se, por norma, nas grandes obras de Platão e Aristóteles. A estas devem-se acrescentar as de Maquiavel, em especial o Príncipe. No entanto, há uma outra fonte da cultura política ocidental que merece atenção. Trata-se do judaico-cristianismo. Num artigo anterior, explorou-se, do ponto de vista político, algumas passagens do capítulo 18 do Evangelho de João. Neste, dá-se um salto ao Antigo Testamento, ao capítulo 8 do livro primeiro de Samuel. Um dos mais notáveis textos de reflexão sobre o fenómeno político. Trata da transição de Israel do tempo dos Juízes, onde não havia um governo,  para a monarquia: a instauração do poder político.

Perante a corrupção dos juízes, é o povo que, por intermédio de Samuel, pede a Deus um rei. O pedido desagrada a Samuel e também a Deus, mas este ordena-lhe que escute a voz do povo. Antes, porém, Samuel deve adverti-lo sobre o custo da instauração de um poder político — e a lista de encargos é devastadora: impostos, conscrição, expropriação, servidão. Nada, contudo, demove os israelitas. Deus encerra o caso com uma fórmula lapidar: “Ouve a sua voz, e põe sobre eles um rei” — ou seja, alguém que os domine e oprima.

Deus dá ao seu povo um rei como quem dá uma severa punição. Todo o poder político é pensado, no texto,  como um castigo aos homens, castigo que os atingirá tanto na liberdade como na propriedade, ou mesmo na vida. Esse poder é o espelho onde se reflecte a maldade da espécie humana. Existe para a punir. O que o texto de Samuel nos conta é um processo onde os homens transitam, pelo seu próprio querer, de uma vida livre para a servidão. Enquanto a tradição grega vê o poder político como positivo, a tradição bíblica apresenta uma outra face desse poder: a face negativa, centrada na ideia de poder como penalidade.

Se se quiser compreender em profundidade as motivações que sustentam, por um lado, o liberalismo — na sua aspiração a reduzir o Estado ao mínimo — e, por outro, o comunismo e o anarquismo — unidos no propósito de suprimir esse Estado — então impõe-se uma leitura atenta do capítulo oitavo do primeiro Livro de Samuel. É ele que ensina que o poder político não é uma coisa natural aos homens, como pensava Aristóteles. Pelo contrário. É a corrupção humana, a prática do mal, que vai conduzir a espécie à busca de mecanismos de autopunição. As ideologias modernas são a recusa da punição – no caso do comunismo e do anarquismo. Ou uma tentativa da sua limitação – no caso do liberalismo. Há nelas, uma esperança de redenção do homem, mas, acima de tudo, existe uma leitura da política que se funda em Samuel.

terça-feira, 15 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (9)

Mario Sironi, Paesaggio urbano, 1927

Uma luz fria tece-se.

Cidade despojada,

grávida, olhos negros,

tantos os Outonos.

 

Sobre o rumor das ruas

fumegam despojos:

roubam à morte a cárie,

o óxido nas praças.

 

Nas ruas, poisam pombos,

o grito das varinas.

De súbito, um clarão

anuncia o Outono.

 

[1993]

domingo, 13 de abril de 2025

Nocturnos 128

Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908

A noite é uma paisagem dolorosa a dançar na solidão, o rasto do silêncio quando foge do ruído, a leitura de um livro de onde as palavras foram roubadas. Nela, dança-se na ignorância do mundo. O corpo move-se errante, em busca das estrelas para com elas tecer constelações e ocupar as horas. Até que, por um secreto desígnio, chegue a aurora e a dor se suspenda nos dedos afiados do dia.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Uma pulsão de morte

Joseph Turner, Chuva, vapor e velocidade, 1844

O mundo anda entretido com a guerra das tarifas e as peripécias da política comercial dos EUA. Um entretenimento que passa pelo triste espectáculo em que se transformou a política norte-americana. Isso está a desviar a atenção das pessoas de um problema central para a sobrevivência da espécie. Todos os tímidos avanços que os EUA empreenderam para salvaguardar o planeta e assegurar um futuro para a espécie humana estão a ser destruídos em números circenses, onde um Presidente eleito se compraz em decisões movidas apenas por um fanatismo ideológico, idêntico aos fanatismos religiosos antigos e modernos. Agora foi a vez do limite de água que pode correr nos chuveiros (aqui). Os EUA tinham uma política de limitação da água que podia correr num chuveiro a 9,5 litros por minuto. Aquilo que os estudos mostram é que não apenas os 9,5 litros asseguram um duche de qualidade, como essa limitação ajuda as famílias a poupar e é um contributo importante para a defesa do meio ambiente e para enfrentar o problema da escassez de água. O limite foi abolido, com a justificação de tornar os chuveiros americanos grande outra vez. A actual administração americana está apostada em tornar a vida no planeta impossível, podendo dizer-se  que o seu papel não é apenas confirmar a decadência americana — como defende o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd —, mas o de ser um agente empenhado da destruição de um ambiente sustentável que permita um futuro para a nossa espécie. A eleição de governos como o que governa neste momento os EUA representa um sinal forte de que a espécie humana é habitada por uma pulsão de morte que, nos dias que correm, parece não ter capacidade de travar.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Como morrem as democracias (2)

Nicolas Poussin, The Plague os Ashdod, 1630

As democracias podem morrer de várias maneiras. Por exemplo, através de golpes de Estado — uma prática que, em tempos, era corrente, por exemplo, na América Latina. Aquilo de que se gosta menos de falar é, porém, da morte das democracias às mãos dos eleitores. Parece ser para aí que, paulatinamente, estamos a caminhar na Europa.

Dois casos deveriam merecer muita atenção daqueles que defendem a superioridade das democracias liberais sobre todos os outros regimes políticos. Em Inglaterra, onde, ainda há pouco, o Partido Trabalhista venceu folgadamente as eleições, encontra-se, neste momento, empatado em intenções de voto com o partido do populista Nigel Farage, o Reform UK — partido que tinha uma expressão residual no eleitorado. O caso mais dramático, porém, é o da Alemanha. A CDU, vencedora das últimas eleições, ainda não formou governo e já perdeu um número significativo de intenções de voto, que estarão a transferir-se para a extrema-direita da AfD.

Os eleitores europeus, perante a profunda complexidade da situação política internacional, parecem estar a voltar-se para velhas soluções que conduziram a Europa a duas guerras mundiais. É provável que o crescimento da extrema-direita europeia não venha a ter esse efeito dramático. Contudo, o crescimento dessa extrema-direita implicará o crescimento das velhas rivalidades, o que conduzirá as nações europeias à desunião política à irrelevância geopolítica. É nisso que tanto russos como americanos MAGA estão apostados, sem que os eleitores europeus pareçam estar preocupados com o assunto.

Sim, os eleitores também podem matar as democracias.


segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Europa e os Estados-Nação

Numa conferência em Praga, proferida em Dezembro de 2018, o historiador norte-americano Timothy Snyder propõe uma visão da construção europeia em contracorrente com o discurso oficial. Este sublinha a emergência do projecto europeu como resposta aos conflitos intra-europeus, às duas guerras mundiais. Visaria pacificar a persistente discórdia entre Alemanha e França. O projecto europeu seria assim um desígnio voluntarista, quase um acto de benevolência, em que um conjunto, que se foi alargando, de Estados-Nação abdicou de parte da sua soberania a favor desse propósito de uma comunidade pacífica, civilizada e democrática. Snyder, porém, diz – e esse é um dos seus pontos fortes – que a premissa está errada. Esses Estado-Nação não existiam, o que existia eram impérios coloniais que perderam as suas colónias.

O projecto europeu é uma necessidade existencial para os Estados desses ex-impérios, onde se incluiu o português, que integram o projecto. Mais do que uma abdicação da soberania de Estados nacionais para as instituições europeias, o que se passa é outra coisa: é a União Europeia (UE) que assegura e torna possível a existência desses Estados. Sem ela, a existência desses Estados ficaria perigosamente comprometida. Sem a Europa, esses Estados estão condenados à irrelevância, mesmo ao desaparecimento. E isso percebe-se. Basta olhar para os grandes actores mundiais – EUA, China, Rússia, Índia – para compreender que mesmo os maiores países europeus, se isolados, não têm qualquer possibilidade de fazer parte do jogo político mundial, aquele onde se decide a vida do cidadão comum.

Se a visão de Snyder for correcta, e ela parece sólida, o crescimento, nos diversos países europeus, das forças nacionalistas, soberanistas e anti europeias é uma pulsão de morte. De morte, não apenas do projecto europeu, mas dos próprios Estados europeus, que existem ancorados na União. As dificuldades que a Inglaterra tem enfrentado desde o Brexit são um sintoma de que a visão de Snyder está correcta. Os europeus – em que só 50% se mostram agradados com a UE – parecem inclinados para essa autodestruição, muito desejada pela Rússia e, agora, pelas hordas MAGA capitaneadas por Trump, Musk e Vance. Se o projecto europeu resulta de uma necessidade existencial dos Estados que o compõem, então a sua destruição é, também, a destruição desses Estados. E é isto que as elites políticas europeias deveriam explicar muito claramente aos seus cidadãos. Esclarecer que o caminho mais rápido para destruição das nações é o nacionalismo levado ao extremo.

sábado, 5 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (8)

Romeo Mancini, Antibes, 1950

Dou-te em herança esta terra,

os prados de cinza e fogo,

os cavalos inclinados do coração.

 

Aprenderás na véspera do dia

a incendiar o Inverno,

a repartir a palavra que te deixo.

 

Ao suplicares o murmúrio da morte,

último assalto da vida,

descobrirás a cinza no coração.

 

[1993]



quinta-feira, 3 de abril de 2025

O duplo padrão dos eleitores


Os resultados eleitorais da Madeira são um sinal de uma tendência forte na sociedade portuguesa. A sensibilidade dos eleitores a casos de corrupção é muito mais vigorosa se os casos – ou as suspeitas – vierem da esquerda do que da direita. O actual Presidente do Governo Regional da Madeira, apesar da sua situação judicial, reforçou a sua votação e a sua posição política. Uma leve suspeita, por outro lado, caso seja num governo de esquerda, é suficiente para o fazer cair e para que o partido no poder seja penalizado duramente nas urnas. O mesmo se pode passar com o caso Montenegro. Não se trata de um problema judicial, mas de um conflito entre interesses privados e deveres públicos, em que o principal agente da crise política é o próprio Primeiro-Ministro, que conduziu a situação para que o governo caísse.

A estratégia de Montenegro está fundada numa convicção: o eleitorado é muito mais tolerante com a direita do que com a esquerda. Essa convicção leva-o à crença razoável de que os eleitores, no dia 18 de Maio, não o penalizarão pelos seus pecados; pelo contrário, reforçarão a sua força política. Aquele que desencadeou o processo, através de uma conduta pouco transparente, será, plausivelmente, o grande beneficiário da obscura situação que gerou. A esquerda corre o risco de sofrer uma ampla derrota nas urnas – não apenas o PCP, o BE e o Livre, mas também o Partido Socialista. Parece enigmático este duplo padrão com que os portugueses avaliam os dois lados do campo político, mesmo quando as políticas de esquerda e de direita são semelhantes.

Trata-se de um problema cultural. Existe uma espécie de ideia subliminar de que verdadeiramente legítimos são apenas os governos de direita. Quando a esquerda governa, isso é sentido como uma concessão temporária do povo; quando a direita governa, fá-lo como se ocupasse o poder naturalmente e por direito próprio. Isto não se passa apenas em Portugal. Uma coisa é a legitimidade constitucional; outra é a legitimidade ao nível do sentimento comum. Muito provavelmente, o problema tem a sua génese na Revolução Francesa. Apesar de vitoriosa, a sensação de ilegitimidade dos seus herdeiros nunca desapareceu. A esquerda é herdeira dessa Revolução, enquanto a direita acaba por se filiar, de algum modo, no regime deposto em 1789. Este é o pano de fundo onde se inscreve, ao nível popular, a maior tolerância para com a imoralidade da direita do que com a da esquerda, como se existisse uma mal disfarçada nostalgia do antigo absolutismo real e uma crença popular obscura de que qualquer governo de esquerda é ilegítimo.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Simulacros e simulações (72)

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Simulam o vento a varrer a campina, simulam o trovão a ecoar na montanha, simulam os anjos em viagem de salvação. Também de si são simulacro, os campinos. Não lhes pertence nem a montada, nem as vestes, nem a vontade, nem a vida. Da sua realidade, nem a aparência lhes pertence.

domingo, 30 de março de 2025

Máximas (24)

Costa Pinheiro, O Pintor Ele-Mesmo, no Seu Espaço Poético, 1979 (Gulbenkian)  

Quando os poderes do mundo rugem e rodopiam, a sabedoria aguarda a hora, resguardando-se no silêncio e recolhendo-se na quietude.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Comentários (28)

Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942

Ruído de cascalho logo pela manhã:
ecoando pelas ruas, ecoando
pelos pátios traseiros do sonho.
Durs Grünbein

Por vezes, o inferno irrompe no paraíso da manhã, naquele momento em que os sonhos cavalgam na semiobscuridade do sono e abrem uma porta para que a consciência espreite para as estranhas paisagens que se escondem nessa pátria longínqua que existe em nós e que, por comodidade da linguagem ou por preguiça da denominação, chamamos inconsciente. Então, a ordem burocrática da cidade faz-se ouvir e, ainda a aurora está presa no horizonte, e já o matraquear do zelo pelo mundo espalha o cascalho incendiado do ruído pelas ruas. Perfura o betão impotente das paredes, para ressoar na cabeça de quem sonha e, num primeiro instante, julga ter caído no precipício de um pesadelo.

quarta-feira, 26 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (7)

Fernando Calhau, sem título, #774, 1967 (Gulbenkian)

Uma palavra de enxofre e sal,

o sonho trôpego que caminha.

Um touro de olhos azuis,

brancos na escuridão da colina.

 

O horizonte abre-se, é um lago.

Solfejam na rouquidão vozes:

mulheres em assombro

sonham o súlfur da partida.

 

[1993]

segunda-feira, 24 de março de 2025

Beatitudes (78) Noite

Charles Job, Abend an der Arun, 1907
O suave enlanguescer da noite permeia a terra, o ar e a água. Tudo se suspende, uma doce melancolia ergue-se para penetrar a couraça do tempo e, atravessando desertos e abismos, chegar aos dias de hoje. Promessa de felicidade que o passado envia, uma reminiscência que, de súbito, irrompe na memória e arrasta aquele que medita para a vida que não viveu, para a experiência de uma paisagem que nunca viu.

sábado, 22 de março de 2025

Uma passagem do Evangelho de João

 

Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus. Agora: o meu reino não é daqui.» Quando Pilatos pergunta: «Então tu és rei?», a resposta continua a ser surpreendente: «Tu dizes que sou rei. Eu nasci para isto e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade.» Esta passagem do Evangelho de João não deve ser vista como o anúncio de uma utopia, mas como o ideal regulador de toda a política.

São dois os elementos centrais: a violência e a verdade. Jesus consente na afirmação de que é rei, mas é um soberano que não tem um corpo de guardas que lute por ele. Abdica da violência legítima para fazer vingar a sua soberania. Esta centra-se na verdade. A verdade deve ser entendida não apenas como um acordo entre aquilo que se diz e os factos, mas como uma vida verdadeira, onde se inclui o bem e a justiça. Não é a violência, mesmo que legítima, que deve suportar a governação, mas o exercício dessa verdade. As palavras de Cristo, na sua radicalidade, causam a mais profunda perplexidade nos homens políticos. Essa perplexidade está resumida na resposta de Pilatos às palavras de Jesus: «O que é a verdade?» Pôncio Pilatos – como qualquer autoridade política – conhece bem a violência como forma de exercer a soberania, mas desconhece a verdade.

Como o idealismo platónico, o texto evangélico fornece, ainda que de modo diferente, um padrão pelo qual podemos medir a bondade das governações humanas. Quanto menor for a violência a que recorrem e quanto mais preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a justiça, melhor serão. Quanto mais violência usarem e menos preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a justiça, mais detestáveis serão. Um reino cujo rei não usa a violência e se conduz apenas pela verdade não é daqui e de agora, não é deste mundo. Contudo, esse rei é o padrão pelo qual, no fundo dos corações, os homens medem os seus soberanos. E sempre que os homens se revoltam contra as governações é porque estas se afastaram da verdade, do bem e da justiça e no seu lugar colocaram a violência. Eis três versículos terríveis para aqueles que têm nas mãos o poder sobre os outros.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Como morrem as democracias (1)

Edvard Munch, Junto ao leito de morte, 1895

A história do apelo do presidente norte-americano ao Congresso para depor o juiz que decretou a suspensão da deportação de cidadãos estrangeiros à luz de uma lei do século XVIII, O Alien Enemies Act, não é apenas mais uma bizarra ideia de Donald Trump. É um ataque em forma contra um dos fundamentos das democracias modernas, a independência do sistema judicial. O ataque é de tal modo grave que importantes juristas norte-americanos afirmaram que o país caiu numa grave crise constitucional. Por outro lado, o juiz conservador John Roberts, presidente do Supremo Tribunal, veio sublinhar que a deposição do juiz não é a resposta para um desacordo sobre uma decisão judicial, mas sim o recurso para uma instância superior. O assalto às democracias tem no ataque ao poder judicial uma das suas mais poderosas estratégias. Nos EUA a guerra pelo controlo da justiça está em marcha. Veremos como irá resistir o poder judicial e a própria sociedade norte-americana.

terça-feira, 18 de março de 2025

Descrições fenomenológicas 72. Tempestade

Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958
Um, dois, talvez um terceiro, mais ao longe. Arranha-céus rompem o firmamento, enquanto a noite desliza sobre a cidade e a tempestade se faz ouvir no ribombar dos trovões. De súbito, tudo se ilumina, mas logo as trevas vencem a luz, para que, de novo, a realidade cintile vibrante, enquanto os céus ressoam, os vidros das janelas tremem e os homens, temerosos, se escondem nas casas fustigadas pela chuva. Despidas, as árvores entregam-se ao tumulto: os ramos, nus; o tronco, encharcado. Presságios obscuros lêem-se nas suas formas. Vaticínios desprendem-se da esquadria do parque, onde um bosque se ordena como uma companhia perfilada na parada, à espera de ordens para marchar para a frente de combate. São árvores sem nome, perdidas na sua identidade, soldados hirtos como estátuas cravadas na terra. O trânsito da noite foi sugado pela intempérie. Os carros, fantasmas alinhados junto aos passeios, são peças de mobiliário de uma época desaparecida há muito. Nas ruas, formam-se lagos: uma água suja, onde flutua o lixo do dia. Uma mulher caminha sob um guarda-chuva inútil. Segue-a um homem. Mas tudo isso dura o instante de um relâmpago. Quando um novo clarão ilumina a rua, homem e mulher desapareceram, esquecidos na noite, tragados por uma encruzilhada. Os arranha-céus permanecem silenciosos, fendendo os céus, desvairados na negrura da noite, mergulhados no fogo líquido da tempestade invernosa.

domingo, 16 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (6)

Urgell Inglada, La fiesta mayor, procesión

Dias de procissão rasgam

o rosmaninho das ruas.

Anjos de pó e sujidade,

o santo preso no andor,

as virgens vazias,

remendadas de escamas,

cansadas de esperar

a mudez da madrugada.

 

[1993]

sexta-feira, 14 de março de 2025

Rapazes perdidos

Norman Percevel Rockwell, Boys


Numa espécie de post-scriptum – com o título de Livro de Recitações – à sua coluna de sexta-feira no Público, António Guerreiro refere um artigo de Sonia Sodha, no The Guardian, sobre a condição masculina. O título do artigo é revelador: Sem emprego, isolados, alimentados com pornografia misógina... onde está o amor pelos rapazes perdidos da Grã-Bretanha? (aqui) O artigo tem por fundamento um relatório do Centre for Social Justice, e tem o título Lost Boys. Em linhas gerais, o relatório mostra que os rapazes – em especial dos meios mais pobres – estão em dificuldade para acompanhar o ritmo das raparigas. Um dos sinais, mas longe de ser o único, é a percentagem de rapazes e raparigas a frequentar a universidade. Elas representam 60% do universo de estudantes universitários.

Tudo isto, porém, numa sociedade patriarcal, onde o poder dominante dos homens continua e a igualdade está longe de ser uma realidade. Uma das coisas que se pode pensar é a forma muito diferente como rapazes e raparigas das classes baixas e médias-baixas se relacionam com a educação. Genericamente, elas vêem nesse bem uma oportunidade de se emanciparem de situações opressivas. Os rapazes, todavia, sentem a escolaridade como a própria opressão. Daí o seu baixo desempenho, daí serem, geralmente, eles os agentes de perturbação das aulas. As raparigas viram na regra escolar uma alavanca existencial. Os rapazes vêem na mesma regra uma coacção que lhes elimina a liberdade que, muito provavelmente, gozam em famílias com pouca capacidade para regular comportamentos.

Isto não é apenas um problema dos indivíduos. É um problema social com grande impacto na vida democrática. Estes jovens sem escolaridade, sem emprego, isolados, alimentados com pornografia misógina são um reservatório para recrutamento das organizações de extrema-direita e de direita radical. O seu ressentimento abre-os para aquele tipo de discurso. A cultura misógina em que se afundam leva-os a contestar um mundo onde as mulheres se afirmam, apesar das dificuldade que enfrentam. Isto não se passa apenas em Inglaterra. Veja-se o eleitorado de Trump. Observe-se como parte dos jovens rapazes portugueses sentem uma atracção por Ventura.

Sociedades complexas como as ocidentais exigem pessoas com grande formação e amplitude intelectual para lidar com processos de transformação muito rápidos e exigentes. Parte significativa dos rapazes, devido à resistência que opõem à disciplina escolar, está a tornar-se incapaz de lidar com o mundo em que vivemos. O isolamento detectado pelo estudo é a confirmação de uma impotência. Os rapazes que abandonam o sistema escolar são mais que o dobro das raparigas. António Guerreiro, a fechar o seu post-scriptum ironiza: Começa a ser urgente dedicar-lhes um dia internacional. A verdade é que estamos confrontados com um grande desafio. Esse passa pela escolarização. Como é que esses rapazes perdidos podem encontrar, na escola, um sentido para a sua vida e como podem fazer da regra e da disciplina escolares uma alavanca para um vida realizada? A resposta não é clara e, muito provavelmente, os sistemas educativos, por si mesmos, são incapazes de resolver um problema cuja raiz está a montante deles, está nas famílias, mesmo que os governos democráticos se recusem a aceitar o facto.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Prosa dos dias (31) O império da chuva

Toni Schneiders, Nachts auf der Ginzon, Tokyo, s/d
Se a tarde desliza sob o império da chuva, os transeuntes inscrevem, na paisagem toldada de cinza e água, um jardim sombrio de guarda-chuvas, transportados em mãos hesitantes, presos em corpos vergados aos desconforto descido dos céus. Nos rostos, transparece a frágil energia da tristeza. Nos passos apressados, o desejo de chegar a um destino, qualquer que seja, um lugar onde a intempérie se suspenda e as árvores toldadas pela invernia sejam esquecidas na sua nudez e desabrigo. Em certos dias, a vida parece habitada por monstros diáfanos, por quimeras que rosnam no silêncio dos corações. A prosa rude da intempérie troveja e a noite ao chegar traz apenas a escuridão que deambula pelo universo.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Ensaio sobre a luz (127)

Paul Signac, Above Saint-Tropez, the Customs House Pathway, 1905
Eis a luz desprendida da loucura do sangue, da raiz incandescente da Terra, das sombrias revoluções lunares. Entrega-se ao olhar, ébria de metamorfoses, e onde, por instantes, o vermelho incendiou a paisagem, o ardor esbateu-se em cores suaves - tons anunciadores da melancolia da bonança, após o deambular errático das horas de tempestade.

sábado, 8 de março de 2025

Uma situação política espantosa

É surpreendente como políticos experimentados não antecipam o que lhes pode acontecer caso haja algo de nebuloso na sua vida. Isso aplica-se ao actual primeiro-ministro. A nebulosidade, neste caso, resulta de um eventual – ainda não se percebeu se real – conflito de interesses entre o cargo que ocupa e a empresa que fundou, depois nas mãos da mulher e dos filhos e, agora, só nas destes. Pensaria ele que estava acima do escrutínio? É verdade que a comunicação social tem sido mais dócil para o seu governo do que foi para os governos do PS, mas essa docilidade não significa compadrio total. Há uma lógica comunicacional que, ainda que a contragosto, acaba por funcionar.

Também foi notável a comunicação que Montenegro fez ao país, rodeado pelos seus ministros. O episódio espanta por dois motivos. O primeiro é a própria comunicação: um exercício assente num contínuo apelo à piedade – um caso prático da falácia argumentativa do apelo à misericórdia –, com esclarecimentos irrelevantes e omissões onde se impunham respostas claras. O segundo é vermos um governo transformado num rebanho, alinhando numa leitura política de um caso pessoal com repercussões institucionais. Não estão em causa as políticas do governo, mas a posição de Luís Montenegro.

Inusitado, ainda, é o silêncio do prolixo Presidente da República. Sempre tão disponível para emitir opiniões sobre tudo e sobre nada, sempre tão diligente em comentar as peripécias dos governos do PS, parece agora subitamente reservado. O que mais o terá preocupado – a ponto de amuar – foi o facto de o primeiro-ministro não lhe ter ligado antes de falar ao país. A sua tagarelice habitual e a dissolução da Assembleia por duas vezes, sem razões substantivas, dão agora lugar a uma mudez ansiosa, não vá ter de enfrentar uma crise devido às eventuais incompatibilidades de Montenegro.

Que tenha sido o PCP a salvar o governo com a sua moção de censura também é espantoso, mas apenas para quem anda distraído ou não se interessa pela vida política. Neste momento, os comunistas temem – e não são os únicos – um novo acto eleitoral. A moção de censura não visa a queda do governo, mas a contenção de danos: evita eleições, onde o risco de uma nova perda de votos é grande. Salvam o governo para salvarem a própria pele e, ao mesmo tempo, projectam a ilusão de que é o PS que impede a sua queda. O PS quer ver o governo cair, mas por iniciativa do próprio executivo. Para o PCP, um desastre, pois abriria caminho ao voto útil à esquerda, com o reforço do PS. O pior dos mundos possíveis, para os comunistas.

P.S. O último parágrafo do texto ficou desactualizado com a apresentação da moção de confiança por parte do governo, que não se previa aquando da escrita desta crónica. O governo julgou que a melhor forma de lidar com um problema desagradável, causado pelo primeiro-ministro, é fazer-se de vítima.

quinta-feira, 6 de março de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (5)

James Gleeson, Lapsed Shadows Recycled to a Capable Coast, 1988

Olhava para o mundo devastado

e cantava com voz límpida

o cardume de cardos entre dedos,

o louvor dos dias perdidos no oblívio:

o silêncio do enfarte, tanta a sufocação.

 

[1993]


terça-feira, 4 de março de 2025

O calvário da esquerda moderada


Assiste-se a um declínio do centro-esquerda, que foi, juntamente com o centro-direita, um dos pilares dos sistemas políticos europeus. Nas últimas eleições alemãs, o SPD (Partido Social-Democrata, equivalente ao Partido Socialista) teve a votação mais baixa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu após ter vencido as eleições anteriores e formado um governo de coligação que não chegou ao fim. Em Inglaterra, nas últimas eleições, em 2024, o Partido Trabalhista (também um partido irmão dos socialistas) obteve uma vitória retumbante em termos de lugares no Parlamento — quase dois terços dos deputados são trabalhistas. Menos de um ano depois, as sondagens mostram uma queda acentuada das intenções de voto nos trabalhistas.

Em França, os socialistas dão alguns sinais de vida, mas a velocidade da sua recuperação é muito lenta, não os tornando uma solução. O mesmo se pode dizer dos socialistas gregos. Na Áustria, têm ainda alguma força, mas longe daquela que os fez o pilar fundamental da governação. Mesmo em Espanha, onde ocupam o poder, as últimas sondagens trazem-lhes más notícias. Em Portugal, a situação não é radiosa. Apesar da governação — muitas vezes incipiente — de Montenegro, os socialistas portugueses não descolam, nas sondagens, do PSD. Apenas nos países nórdicos, o centro-esquerda continua a ser uma força pujante e claramente determinante. Um dos factores do enfraquecimento da esquerda democrática estará associado à polarização política trazida pelo crescimento da extrema-direita e da direita radical.

O problema, porém, pode ser mais profundo: uma desadequação entre os programas e as práticas políticas do centro-esquerda e as expectativas dos cidadãos. Por outro lado, toda a esquerda parece incapaz de perceber as mudanças que se vivem — tanto na área tecnológica como na área geopolítica. As redes sociais e a democratização do uso da inteligência artificial têm sido um calvário para a esquerda, incapaz de adequar a sua retórica, os seus valores e as suas práticas ao novo ambiente onde decorre a disputa política. Além disso, as mudanças geopolíticas — em que a eleição de Trump representa uma revolução — são pouco propícias às posições do socialismo democrático e da social-democracia. Se o centro-esquerda pretende ainda ter um futuro na Europa, deverá, em primeiro lugar, olhar para as reais expectativas dos eleitores. Em segundo, fazer uma profunda reflexão sobre os seus desaires e o mundo em que se vive. Por fim, observar as razões da pujança do centro-esquerda nos países nórdicos. As democracias liberais precisam de uma esquerda moderada forte e não moribunda.

domingo, 2 de março de 2025

Nocturnos 127

Joseph Vernet, La nuit; un port de mer au clair de lune, 1771

A noite é um vício rasgado nas águas do mar, a intolerável abundância da escuridão dilacerada pela cornucópia lunar, uma borboleta rutilante a crescer no arquipélago, onde pequenos deuses se confundem com homens e mulheres sem rosto. A noite é um harém abandonado, uma floração que secou antes do raiar azul do âmbar da aurora.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Ingerências eleitorais e decadência europeia

Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985

A Europa – refiro-me à União Europeia – está rodeada de problemas: problemas com as opções geoestratégicas da Rússia, problemas com os fluxos migratórios, problemas com o terrorismo islâmico e, agora, problemas com os EUA, versão Donald Trump e Elon Musk. Contudo, talvez o maior problema resida na própria União. Konstatin von Notz, do partido Os Verdes, presidente do comité de supervisão dos serviços secretos alemães, apela ao novo governo para que reconheça o impacto da ingerência russa nas últimas eleições e no resultado do partido de extrema-direita AfD (aqui). Ora, pelo menos desde o referendo inglês, que levou ao Brexit, em 2016, que se fala abertamente dessa ingerência. São quase nove anos, e a situação não se alterou. Melhor: a situação alterou-se para pior.

Mais, agora não há a temer apenas a ingerência russa, mas também a do novo poder norte-americano. Ora, isto é apenas o sintoma de uma impotência europeia que parece estrutural. Se o Brexit não foi aviso suficiente para se tomarem medidas draconianas de defesa dos processos eleitorais dos países membros, o que será necessário acontecer? A continuar assim, em poucos anos, os inimigos da União Europeia farão eleger, sem grandes dificuldades, governos que terão por finalidade destruí-la. Este problema não é apenas de cada país onde essas ingerências acontecem, mas de toda a União, e é esta que, em estreita cooperação com cada um dos seus membros, deve tomar as medidas necessárias para salvaguardar a autenticidade dos processos eleitorais.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Comentários (27)

Maria Helena Vieira da Silva, La Bibliothèque en Feu, 1974 (Gulbenkian)

Não há nada mais próximo da ruindade
do que uma exígua biblioteca de província
desabando ao sol das cinco e meia da tarde.
Frederico Pedreira

Também das bibliotecas o destino é perecer, pois a fixidez que habita o discurso de cada um dos livros não é antídoto ou amuleto suficiente para as raptar à transitoriedade que o tempo sobre tudo faz cair. Umas desabam ao sol das cinco e meia da tarde. São pequenas bibliotecas esculpidas na lentidão da província. Outras, as grandes bibliotecas metropolitanas, entregam-se ao fogo, como é hábito acontecer quando um rebanho humano já não consegue suportar o peso excessivo da verdade que nelas se esconde. Nem a piedade filial, nem o amor dos devotos, nem o silêncio que as habita são escudo suficiente para parar o tempo e suster a derrocada ou a cintilação do incêndio; a ruindade dos homens será sempre a agência que Cronos precisa para fazer cumprir os seus éditos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (4)

Mário Cesariny, Pintura lacerada II, 1970 (Gulbenkian)

Os ramos frios, as letras ardentes,

a luz onde poiso, se cai a maresia.

Um som brame na esquina da rua,

semeia bolor no centro do peito.

 

Nos dias de sol, a voz das aves,

presa na mudez, desce do céu,

canta o segredo do silêncio,

o fulgor da tarde, a chuva a cair.

 

Parda de granizo, a ave de rapina

plana, suspensa da plumagem:

espreita a lua, espera a morte.

 

O destino vem na maresia do voo,

na cintilação da água sobre a terra:

o grito do animal na fuligem do fogo.

 

[1993]


sábado, 22 de fevereiro de 2025

Simulacros e simulações (71)

Manuel Botelho, 155. est-mr (da série «confidencial/desclassificado: estado-maior»), 2012

Num mapa, simula-se um mundo, para que a vida se torne um simulacro de si mesma. Segue-se então as rotas assinaladas, evita-se os obstáculos e pondera-se a influência da hidrografia sobre a beleza do território. Talvez seja possível uma floresta ali, uma estrada acolá, uma cidade no centro, para que nela tudo convirja e se perca no rumor do trânsito nocturno.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Uma ameaça existencial

 

Julgo que, depois do telefonema entre Trump e Putin e da intervenção do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance, em Munique, os líderes europeus terão percebido o grande sarilho em que estamos metidos. Na prática, a actual liderança americana entregou parte da Ucrânia, ou talvez toda, à Rússia. Mas não foi apenas a Ucrânia que foi entregue aos russos; toda a Europa parece agora aos seu alcance. A NATO, neste momento, não é mais do que uma sigla que ecoa um passado recente, um incómodo para o movimento MAGA, que suporta Donald Trump e que parece a caminho do fim. E, sem a NATO – ou mesmo com a NATO, mas sem compromisso militar norte-americano –, a Europa fica indefesa perante uma superpotência nuclear como a Rússia.

Há uma convergência estratégica e de interesses entre a liderança russa e a nova liderança norte-americana, e essa convergência pode passar pela dominação territorial ou, pelo menos, pela submissão de países livres à esfera de influência das duas grandes superpotências nucleares. No pior dos cenários, teríamos uma “operação especial” russa para dominar militarmente toda a Europa e, do outro lado, a “transformação” do Canadá no 51.º estado dos EUA e a ocupação da Gronelândia. Num cenário menos dramático, teríamos a submissão dos países europeus à Rússia através de processos eleitorais, onde a extrema-direita pode ter um papel importante, bem como a cedência das lideranças nacionais europeias aos interesses russos, numa espécie de servidão voluntária; enquanto, no outro lado do Atlântico, os EUA sufocariam economicamente o Canadá e desestabilizariam a Gronelândia.

Neste momento, a União Europeia e a Europa Ocidental não integrada na União enfrentam um problema existencial. O que está em jogo já não é salvar as democracias e evitar o retorno a regimes autoritários, mas assegurar a independência e a capacidade dos países europeus de decidirem o seu destino. E este é o principal problema. Esta capacidade era débil, pois assentava na dependência do amigo americano. Agora que o amigo americano está a caminho de se tornar inimigo, essa fragilidade tornou-se dolorosamente clara. Resta saber se as lideranças europeias – onde a inglesa deve ser incluída – estão dispostas a enfrentar os perigos que se perfilam no horizonte e se os povos europeus estão dispostos a defender a sua liberdade e os seus valores ou se, adormecidos por oitenta anos de paz e liberdade, preferem entregar-se nas mãos de quem os queira dominar. Se há coisa que me alegraria, nesta parte final da vida, seria que tudo isto não passasse de uma fantasia de um velho esclerosado. Duvido, porém, que o seja.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

A doença do Bloco de Esquerda

Ana Hatherly, Doenças, 1971 (Gulbenkian)

Uma notícia do Jornal Económico dá conta de que, no distrito de Portalegre, 73 militantes, num universo de "mais de duas centenas", abandonaram o Bloco de Esquerda (aqui). A notícia é interessante a vários títulos.

Em primeiro lugar, porque é mais um sinal de que esta força de esquerda está em desagregação. Para além de maus resultados eleitorais, de práticas laborais em contradição com as crenças dos militantes do partido e de quezílias internas, os próprios militantes, outrora tão empenhados, parecem estar a desistir paulatinamente do partido.

Em segundo lugar, porque uma excelente deputada, Mariana Mortágua, não tem necessariamente de dar uma excelente líder de partido. Hoje, para o observador externo, parece claro que Mariana Mortágua segue um processo inverso ao de Catarina Martins. Esta, no início, parecia bastante frágil em comparação com Francisco Louçã. Essa fragilidade tinha fundamento. Contudo, Catarina Martins excedeu-se: lentamente, tornou-se uma líder com capacidade de afirmação e cumpriu a sua função com honra. Mariana Mortágua, pelo contrário, parecia uma líder forte, mas o tempo tem revelado a sua fragilidade.

Por fim, esta crise no Bloco de Esquerda é mais um episódio de uma crise estrutural da esquerda, que não compreende o mundo em que nos encontramos e está presa a arquétipos ideológicos que perderam sentido ou foram derrotados. Um exemplo disso é a tentativa de estruturar a identidade política em identitarismos particulares e conflitos de ordem cultural. A debandada dos militantes de Portalegre é muito mais do que um episódio paroquial: é o sintoma de uma grave doença do Bloco de Esquerda e da esquerda em geral.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O progresso moral da humanidade (20)

Giotto di Bondone, La Traición de Judas, 1292-1305

A traição de Judas é o modelo arquetípico da traição entre amigos. Este tipo de traição é um sintoma de grande degradação moral. Entrega-se um amigo em troco de uma vantagem material ou outra. Se a ideia iluminista de um progresso moral da humanidade faz sentido, nesse progresso dever-se-á pensar que não mais será possível Judas trair Cristo. Ora, não apenas, entre os indivíduos, os amigos continuam a trair-se, como entre as comunidades políticas se assiste a trágicas traições. Por 30 dinheiros, isto é, por interesse, líderes moralmente repugnantes não têm pejo de entregar ao inimigo aqueles que durante décadas foram amigos e partilharam modos de vida e objectivos estratégicos e civilizacionais. Talvez para esses líderes a moral seja trair os amigos, se se imagina nisso uma vantagem pessoal. Têm a moral de Judas. Ver-se-á sem têm o seu destino. Isso não representaria um progresso moral, mas seria antes um efeito do velho mito da lei das compensações.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (3)

António Areal, Opus II, n.º 78, 1963 (Gulbenkian)

A chama ateada do passado

rumoreja se chega o Verão,

uiva se perdida pela estrada.

 

Pela manhã, desenha-se

a raiva no ronco do dia,

o céu azul recoberto

de arbustos e aves e astros.

 

E as horas sorriem na sombra,

presas na pedra da memória,

presas na água de âmbar.

A boca seca de tanto salivar.

 

[1993]

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Beatitudes (77) No jardim

Louise Binder-Mestro, Au Jardin, 1905
O jardim, lugar onde os corpos repousam da algazarra da cidade e a cabeça se inclina em doce rêverie. Tudo, ali, é feito para que o esquecimento cresça e o mundo, como um espectro sem rosto, permaneça longe, tão longe como se não fora mais do que uma fantasia nascida do ócio, um pesadelo gerado pela turbulência do sono. No jardim, a vida é um exercício da mais pura e maternal beatitude, como se os monstros não se escondessem na raiz de uma hera ou na ramagem das tílias.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guedes de Amorim, Morfina

Publicado em 1932, o romance Morfina, de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos, acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.

O romance centra-se num talentoso pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera, porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher, mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas e a filha uma angariadora de clientes.

É a tentação erótica representada por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda, também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia, de cabarets,  de álcool e de drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.

É também um lugar de rivalidades, de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja. Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como, aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.

A queda de Pedro António inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo. O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação. A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.

É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.