Otto Scharff, Eifeltal, Eifeital Valley, 1904 |
sábado, 19 de abril de 2025
Ensaio sobre a luz (128)
quinta-feira, 17 de abril de 2025
O poder como punição
Perante a
corrupção dos juízes, é o povo que, por intermédio de Samuel, pede a Deus um
rei. O pedido desagrada a Samuel e também a Deus, mas este ordena-lhe que
escute a voz do povo. Antes, porém, Samuel deve adverti-lo sobre o custo da
instauração de um poder político — e a lista de encargos é devastadora: impostos,
conscrição, expropriação, servidão. Nada, contudo, demove os israelitas. Deus
encerra o caso com uma fórmula lapidar: “Ouve a sua voz, e põe sobre eles um
rei” — ou seja, alguém que os domine e oprima.
Deus dá ao seu
povo um rei como quem dá uma severa punição. Todo o poder político é pensado,
no texto, como um castigo aos homens, castigo
que os atingirá tanto na liberdade como na propriedade, ou mesmo na vida. Esse
poder é o espelho onde se reflecte a maldade da espécie humana. Existe para a
punir. O que o texto de Samuel nos conta é um processo onde os homens transitam,
pelo seu próprio querer, de uma vida livre para a servidão. Enquanto a tradição
grega vê o poder político como positivo, a tradição bíblica apresenta uma outra
face desse poder: a face negativa, centrada na ideia de poder como penalidade.
Se se quiser
compreender em profundidade as motivações que sustentam, por um lado, o
liberalismo — na sua aspiração a reduzir o Estado ao mínimo — e, por outro, o
comunismo e o anarquismo — unidos no propósito de suprimir esse Estado — então
impõe-se uma leitura atenta do capítulo oitavo do primeiro Livro de Samuel. É
ele que ensina que o poder político não é uma coisa natural aos homens, como
pensava Aristóteles. Pelo contrário. É a corrupção humana, a prática do mal,
que vai conduzir a espécie à busca de mecanismos de autopunição. As ideologias
modernas são a recusa da punição – no caso do comunismo e do anarquismo. Ou uma
tentativa da sua limitação – no caso do liberalismo. Há nelas, uma esperança de
redenção do homem, mas, acima de tudo, existe uma leitura da política que se
funda em Samuel.
terça-feira, 15 de abril de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (9)
domingo, 13 de abril de 2025
Nocturnos 128
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Piet Mondrian, Landschap bij nacht, 1907-1908 |
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Uma pulsão de morte
O mundo anda entretido com a guerra das tarifas e as peripécias da política comercial dos EUA. Um entretenimento que passa pelo triste espectáculo em que se transformou a política norte-americana. Isso está a desviar a atenção das pessoas de um problema central para a sobrevivência da espécie. Todos os tímidos avanços que os EUA empreenderam para salvaguardar o planeta e assegurar um futuro para a espécie humana estão a ser destruídos em números circenses, onde um Presidente eleito se compraz em decisões movidas apenas por um fanatismo ideológico, idêntico aos fanatismos religiosos antigos e modernos. Agora foi a vez do limite de água que pode correr nos chuveiros (aqui). Os EUA tinham uma política de limitação da água que podia correr num chuveiro a 9,5 litros por minuto. Aquilo que os estudos mostram é que não apenas os 9,5 litros asseguram um duche de qualidade, como essa limitação ajuda as famílias a poupar e é um contributo importante para a defesa do meio ambiente e para enfrentar o problema da escassez de água. O limite foi abolido, com a justificação de tornar os chuveiros americanos grande outra vez. A actual administração americana está apostada em tornar a vida no planeta impossível, podendo dizer-se que o seu papel não é apenas confirmar a decadência americana — como defende o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd —, mas o de ser um agente empenhado da destruição de um ambiente sustentável que permita um futuro para a nossa espécie. A eleição de governos como o que governa neste momento os EUA representa um sinal forte de que a espécie humana é habitada por uma pulsão de morte que, nos dias que correm, parece não ter capacidade de travar.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Como morrem as democracias (2)
Nicolas Poussin, The Plague os Ashdod, 1630 |
As democracias podem morrer de várias maneiras. Por exemplo, através de golpes de Estado — uma prática que, em tempos, era corrente, por exemplo, na América Latina. Aquilo de que se gosta menos de falar é, porém, da morte das democracias às mãos dos eleitores. Parece ser para aí que, paulatinamente, estamos a caminhar na Europa.
Dois casos deveriam merecer muita atenção daqueles que defendem a superioridade das democracias liberais sobre todos os outros regimes políticos. Em Inglaterra, onde, ainda há pouco, o Partido Trabalhista venceu folgadamente as eleições, encontra-se, neste momento, empatado em intenções de voto com o partido do populista Nigel Farage, o Reform UK — partido que tinha uma expressão residual no eleitorado. O caso mais dramático, porém, é o da Alemanha. A CDU, vencedora das últimas eleições, ainda não formou governo e já perdeu um número significativo de intenções de voto, que estarão a transferir-se para a extrema-direita da AfD.
Os eleitores europeus, perante a profunda complexidade da situação política internacional, parecem estar a voltar-se para velhas soluções que conduziram a Europa a duas guerras mundiais. É provável que o crescimento da extrema-direita europeia não venha a ter esse efeito dramático. Contudo, o crescimento dessa extrema-direita implicará o crescimento das velhas rivalidades, o que conduzirá as nações europeias à desunião política à irrelevância geopolítica. É nisso que tanto russos como americanos MAGA estão apostados, sem que os eleitores europeus pareçam estar preocupados com o assunto.
Sim, os eleitores também podem matar as democracias.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
A Europa e os Estados-Nação
O projecto europeu é uma
necessidade existencial para os Estados desses ex-impérios, onde se incluiu o
português, que integram o projecto. Mais do que uma abdicação da soberania de
Estados nacionais para as instituições europeias, o que se passa é outra coisa:
é a União Europeia (UE) que assegura e torna possível a existência desses Estados.
Sem ela, a existência desses Estados ficaria perigosamente comprometida. Sem a
Europa, esses Estados estão condenados à irrelevância, mesmo ao desaparecimento.
E isso percebe-se. Basta olhar para os grandes actores mundiais – EUA, China,
Rússia, Índia – para compreender que mesmo os maiores países europeus, se
isolados, não têm qualquer possibilidade de fazer parte do jogo político
mundial, aquele onde se decide a vida do cidadão comum.
Se a visão de Snyder for correcta, e ela parece sólida, o crescimento, nos diversos países europeus, das forças nacionalistas, soberanistas e anti europeias é uma pulsão de morte. De morte, não apenas do projecto europeu, mas dos próprios Estados europeus, que existem ancorados na União. As dificuldades que a Inglaterra tem enfrentado desde o Brexit são um sintoma de que a visão de Snyder está correcta. Os europeus – em que só 50% se mostram agradados com a UE – parecem inclinados para essa autodestruição, muito desejada pela Rússia e, agora, pelas hordas MAGA capitaneadas por Trump, Musk e Vance. Se o projecto europeu resulta de uma necessidade existencial dos Estados que o compõem, então a sua destruição é, também, a destruição desses Estados. E é isto que as elites políticas europeias deveriam explicar muito claramente aos seus cidadãos. Esclarecer que o caminho mais rápido para destruição das nações é o nacionalismo levado ao extremo.
sábado, 5 de abril de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (8)
Romeo Mancini, Antibes, 1950 |
Dou-te em herança esta terra,
os prados de cinza e fogo,
os cavalos inclinados do coração.
Aprenderás na véspera do dia
a incendiar o Inverno,
a repartir a palavra que te deixo.
Ao suplicares o murmúrio da morte,
último assalto da vida,
descobrirás a cinza no coração.
[1993]
quinta-feira, 3 de abril de 2025
O duplo padrão dos eleitores
A estratégia de Montenegro está
fundada numa convicção: o eleitorado é muito mais tolerante com a direita do
que com a esquerda. Essa convicção leva-o à crença razoável de que os
eleitores, no dia 18 de Maio, não o penalizarão pelos seus pecados; pelo contrário,
reforçarão a sua força política. Aquele que desencadeou o processo, através de
uma conduta pouco transparente, será, plausivelmente, o grande beneficiário da
obscura situação que gerou. A esquerda corre o risco de sofrer uma ampla
derrota nas urnas – não apenas o PCP, o BE e o Livre, mas também o Partido
Socialista. Parece enigmático este duplo padrão com que os portugueses avaliam
os dois lados do campo político, mesmo quando as políticas de esquerda e de
direita são semelhantes.
Trata-se de um problema cultural.
Existe uma espécie de ideia subliminar de que verdadeiramente legítimos são
apenas os governos de direita. Quando a esquerda governa, isso é sentido como
uma concessão temporária do povo; quando a direita governa, fá-lo como se
ocupasse o poder naturalmente e por direito próprio. Isto não se passa apenas
em Portugal. Uma coisa é a legitimidade constitucional; outra é a legitimidade
ao nível do sentimento comum. Muito provavelmente, o problema tem a sua génese
na Revolução Francesa. Apesar de vitoriosa, a sensação de ilegitimidade dos
seus herdeiros nunca desapareceu. A esquerda é herdeira dessa Revolução,
enquanto a direita acaba por se filiar, de algum modo, no regime deposto em
1789. Este é o pano de fundo onde se inscreve, ao nível popular, a maior
tolerância para com a imoralidade da direita do que com a da esquerda, como se
existisse uma mal disfarçada nostalgia do antigo absolutismo real e uma crença
popular obscura de que qualquer governo de esquerda é ilegítimo.
terça-feira, 1 de abril de 2025
Simulacros e simulações (72)
Júlio Pomar, Campinos, 1963 |
domingo, 30 de março de 2025
Máximas (24)
Costa Pinheiro, O Pintor Ele-Mesmo, no Seu Espaço Poético, 1979 (Gulbenkian) |
Quando os poderes do mundo rugem e rodopiam, a sabedoria aguarda a hora, resguardando-se no silêncio e recolhendo-se na quietude.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Comentários (28)
Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942 |
quarta-feira, 26 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (7)
Fernando Calhau, sem título, #774, 1967 (Gulbenkian) |
Uma palavra de enxofre e sal,
o sonho trôpego que caminha.
Um touro de olhos azuis,
brancos na escuridão da colina.
O horizonte abre-se, é um lago.
Solfejam na rouquidão vozes:
mulheres em assombro
sonham o súlfur da partida.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Beatitudes (78) Noite
Charles Job, Abend an der Arun, 1907 |
sábado, 22 de março de 2025
Uma passagem do Evangelho de João
Agora que nos estamos a
aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos
versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de
entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste?
Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é
surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste
mundo, os meus guardas teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus.
Agora: o meu reino não é daqui.» Quando Pilatos pergunta: «Então tu és
rei?», a resposta continua a ser surpreendente: «Tu dizes que sou rei.
Eu nasci para isto e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade.»
Esta passagem do Evangelho de João não deve ser vista como o anúncio de uma
utopia, mas como o ideal regulador de toda a política.
São dois os elementos centrais: a
violência e a verdade. Jesus consente na afirmação de que é rei, mas é um
soberano que não tem um corpo de guardas que lute por ele. Abdica da violência
legítima para fazer vingar a sua soberania. Esta centra-se na verdade. A
verdade deve ser entendida não apenas como um acordo entre aquilo que se diz e
os factos, mas como uma vida verdadeira, onde se inclui o bem e a justiça. Não
é a violência, mesmo que legítima, que deve suportar a governação, mas o
exercício dessa verdade. As palavras de Cristo, na sua radicalidade, causam a
mais profunda perplexidade nos homens políticos. Essa perplexidade está
resumida na resposta de Pilatos às palavras de Jesus: «O que é a verdade?»
Pôncio Pilatos – como qualquer autoridade política – conhece bem a violência
como forma de exercer a soberania, mas desconhece a verdade.
Como o idealismo platónico, o
texto evangélico fornece, ainda que de modo diferente, um padrão pelo qual
podemos medir a bondade das governações humanas. Quanto menor for a violência a
que recorrem e quanto mais preocupadas estiverem com a verdade, o bem e a
justiça, melhor serão. Quanto mais violência usarem e menos preocupadas estiverem
com a verdade, o bem e a justiça, mais detestáveis serão. Um reino cujo rei não
usa a violência e se conduz apenas pela verdade não é daqui e de agora, não é
deste mundo. Contudo, esse rei é o padrão pelo qual, no fundo dos corações, os
homens medem os seus soberanos. E sempre que os homens se revoltam contra as
governações é porque estas se afastaram da verdade, do bem e da justiça e no
seu lugar colocaram a violência. Eis três versículos terríveis para aqueles que
têm nas mãos o poder sobre os outros.
quinta-feira, 20 de março de 2025
Como morrem as democracias (1)
Edvard Munch, Junto ao leito de morte, 1895 |
terça-feira, 18 de março de 2025
Descrições fenomenológicas 72. Tempestade
Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958 |
domingo, 16 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (6)
sexta-feira, 14 de março de 2025
Rapazes perdidos
Norman Percevel Rockwell, Boys |
Numa espécie de post-scriptum
– com o título de Livro de Recitações – à sua coluna de sexta-feira no Público,
António Guerreiro refere um artigo de Sonia Sodha, no The Guardian, sobre
a condição masculina. O título do artigo é revelador: Sem emprego, isolados,
alimentados com pornografia misógina... onde está o amor pelos rapazes perdidos
da Grã-Bretanha? (aqui)
O artigo tem por fundamento um relatório do Centre for Social Justice, e
tem o título Lost Boys. Em linhas gerais, o relatório mostra que os
rapazes – em especial dos meios mais pobres – estão em dificuldade para
acompanhar o ritmo das raparigas. Um dos sinais, mas longe de ser o único, é a
percentagem de rapazes e raparigas a frequentar a universidade. Elas
representam 60% do universo de estudantes universitários.
Tudo isto, porém, numa sociedade
patriarcal, onde o poder dominante dos homens continua e a igualdade está longe
de ser uma realidade. Uma das coisas que se pode pensar é a forma muito
diferente como rapazes e raparigas das classes baixas e médias-baixas se
relacionam com a educação. Genericamente, elas vêem nesse bem uma oportunidade
de se emanciparem de situações opressivas. Os rapazes, todavia, sentem a escolaridade
como a própria opressão. Daí o seu baixo desempenho, daí serem, geralmente,
eles os agentes de perturbação das aulas. As raparigas viram na regra escolar
uma alavanca existencial. Os rapazes vêem na mesma regra uma coacção que lhes
elimina a liberdade que, muito provavelmente, gozam em famílias com pouca capacidade
para regular comportamentos.
Isto não é apenas um problema dos
indivíduos. É um problema social com grande impacto na vida democrática. Estes
jovens sem escolaridade, sem emprego, isolados, alimentados com pornografia
misógina são um reservatório para recrutamento das organizações de extrema-direita
e de direita radical. O seu ressentimento abre-os para aquele tipo de discurso.
A cultura misógina em que se afundam leva-os a contestar um mundo onde as
mulheres se afirmam, apesar das dificuldade que enfrentam. Isto não se passa
apenas em Inglaterra. Veja-se o eleitorado de Trump. Observe-se como parte dos
jovens rapazes portugueses sentem uma atracção por Ventura.
Sociedades complexas como as
ocidentais exigem pessoas com grande formação e amplitude intelectual para
lidar com processos de transformação muito rápidos e exigentes. Parte
significativa dos rapazes, devido à resistência que opõem à disciplina escolar,
está a tornar-se incapaz de lidar com o mundo em que vivemos. O isolamento
detectado pelo estudo é a confirmação de uma impotência. Os rapazes que
abandonam o sistema escolar são mais que o dobro das raparigas. António
Guerreiro, a fechar o seu post-scriptum ironiza: Começa a ser urgente
dedicar-lhes um dia internacional. A verdade é que estamos confrontados com
um grande desafio. Esse passa pela escolarização. Como é que esses rapazes
perdidos podem encontrar, na escola, um sentido para a sua vida e como
podem fazer da regra e da disciplina escolares uma alavanca para um vida
realizada? A resposta não é clara e, muito provavelmente, os sistemas educativos,
por si mesmos, são incapazes de resolver um problema cuja raiz está a montante
deles, está nas famílias, mesmo que os governos democráticos se recusem a
aceitar o facto.
quarta-feira, 12 de março de 2025
Prosa dos dias (31) O império da chuva
Toni Schneiders, Nachts auf der Ginzon, Tokyo, s/d |
segunda-feira, 10 de março de 2025
Ensaio sobre a luz (127)
Paul Signac, Above Saint-Tropez, the Customs House Pathway, 1905 |
sábado, 8 de março de 2025
Uma situação política espantosa
É surpreendente como políticos
experimentados não antecipam o que lhes pode acontecer caso haja algo de
nebuloso na sua vida. Isso aplica-se ao actual primeiro-ministro. A
nebulosidade, neste caso, resulta de um eventual – ainda não se percebeu se
real – conflito de interesses entre o cargo que ocupa e a empresa que fundou, depois
nas mãos da mulher e dos filhos e, agora, só nas destes. Pensaria ele que
estava acima do escrutínio? É verdade que a comunicação social tem sido mais
dócil para o seu governo do que foi para os governos do PS, mas essa docilidade
não significa compadrio total. Há uma lógica comunicacional que, ainda que a
contragosto, acaba por funcionar.
Também foi notável a comunicação
que Montenegro fez ao país, rodeado pelos seus ministros. O episódio espanta
por dois motivos. O primeiro é a própria comunicação: um exercício assente num
contínuo apelo à piedade – um caso prático da falácia argumentativa do apelo à
misericórdia –, com esclarecimentos irrelevantes e omissões onde se impunham
respostas claras. O segundo é vermos um governo transformado num rebanho,
alinhando numa leitura política de um caso pessoal com repercussões
institucionais. Não estão em causa as políticas do governo, mas a posição de
Luís Montenegro.
Inusitado, ainda, é o silêncio do
prolixo Presidente da República. Sempre tão disponível para emitir opiniões
sobre tudo e sobre nada, sempre tão diligente em comentar as peripécias dos
governos do PS, parece agora subitamente reservado. O que mais o terá
preocupado – a ponto de amuar – foi o facto de o primeiro-ministro não lhe ter
ligado antes de falar ao país. A sua tagarelice habitual e a dissolução da
Assembleia por duas vezes, sem razões substantivas, dão agora lugar a uma mudez
ansiosa, não vá ter de enfrentar uma crise devido às eventuais
incompatibilidades de Montenegro.
Que tenha sido o PCP a salvar o
governo com a sua moção de censura também é espantoso, mas apenas para quem
anda distraído ou não se interessa pela vida política. Neste momento, os
comunistas temem – e não são os únicos – um novo acto eleitoral. A moção de
censura não visa a queda do governo, mas a contenção de danos: evita eleições,
onde o risco de uma nova perda de votos é grande. Salvam o governo para
salvarem a própria pele e, ao mesmo tempo, projectam a ilusão de que é o PS que
impede a sua queda. O PS quer ver o governo cair, mas por iniciativa do próprio
executivo. Para o PCP, um desastre, pois abriria caminho ao voto útil à
esquerda, com o reforço do PS. O pior dos mundos possíveis, para os comunistas.
P.S. O último parágrafo do texto ficou desactualizado com a apresentação da moção de confiança por parte do governo, que não se previa aquando da escrita desta crónica. O governo julgou que a melhor forma de lidar com um problema desagradável, causado pelo primeiro-ministro, é fazer-se de vítima.
quinta-feira, 6 de março de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (5)
terça-feira, 4 de março de 2025
O calvário da esquerda moderada
Em França, os socialistas dão
alguns sinais de vida, mas a velocidade da sua recuperação é muito lenta, não
os tornando uma solução. O mesmo se pode dizer dos socialistas gregos. Na
Áustria, têm ainda alguma força, mas longe daquela que os fez o pilar fundamental
da governação. Mesmo em Espanha, onde ocupam o poder, as últimas sondagens
trazem-lhes más notícias. Em Portugal, a situação não é radiosa. Apesar da
governação — muitas vezes incipiente — de Montenegro, os socialistas
portugueses não descolam, nas sondagens, do PSD. Apenas nos países nórdicos, o
centro-esquerda continua a ser uma força pujante e claramente determinante. Um
dos factores do enfraquecimento da esquerda democrática estará associado à
polarização política trazida pelo crescimento da extrema-direita e da direita
radical.
O problema, porém, pode ser mais
profundo: uma desadequação entre os programas e as práticas políticas do
centro-esquerda e as expectativas dos cidadãos. Por outro lado, toda a esquerda
parece incapaz de perceber as mudanças que se vivem — tanto na área tecnológica
como na área geopolítica. As redes sociais e a democratização do uso da
inteligência artificial têm sido um calvário para a esquerda, incapaz de
adequar a sua retórica, os seus valores e as suas práticas ao novo ambiente
onde decorre a disputa política. Além disso, as mudanças geopolíticas — em que
a eleição de Trump representa uma revolução — são pouco propícias às posições
do socialismo democrático e da social-democracia. Se o centro-esquerda pretende
ainda ter um futuro na Europa, deverá, em primeiro lugar, olhar para as reais
expectativas dos eleitores. Em segundo, fazer uma profunda reflexão sobre os
seus desaires e o mundo em que se vive. Por fim, observar as razões da pujança
do centro-esquerda nos países nórdicos. As democracias liberais precisam de uma
esquerda moderada forte e não moribunda.
domingo, 2 de março de 2025
Nocturnos 127
Joseph Vernet, La nuit; un port de mer au clair de lune, 1771 |
A noite é um vício rasgado nas águas do mar, a intolerável abundância da escuridão dilacerada pela cornucópia lunar, uma borboleta rutilante a crescer no arquipélago, onde pequenos deuses se confundem com homens e mulheres sem rosto. A noite é um harém abandonado, uma floração que secou antes do raiar azul do âmbar da aurora.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Ingerências eleitorais e decadência europeia
Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985 |
A Europa – refiro-me à União Europeia – está rodeada de problemas: problemas com as opções geoestratégicas da Rússia, problemas com os fluxos migratórios, problemas com o terrorismo islâmico e, agora, problemas com os EUA, versão Donald Trump e Elon Musk. Contudo, talvez o maior problema resida na própria União. Konstatin von Notz, do partido Os Verdes, presidente do comité de supervisão dos serviços secretos alemães, apela ao novo governo para que reconheça o impacto da ingerência russa nas últimas eleições e no resultado do partido de extrema-direita AfD (aqui). Ora, pelo menos desde o referendo inglês, que levou ao Brexit, em 2016, que se fala abertamente dessa ingerência. São quase nove anos, e a situação não se alterou. Melhor: a situação alterou-se para pior.
Mais, agora não há a temer apenas a ingerência russa, mas também a do novo poder norte-americano. Ora, isto é apenas o sintoma de uma impotência europeia que parece estrutural. Se o Brexit não foi aviso suficiente para se tomarem medidas draconianas de defesa dos processos eleitorais dos países membros, o que será necessário acontecer? A continuar assim, em poucos anos, os inimigos da União Europeia farão eleger, sem grandes dificuldades, governos que terão por finalidade destruí-la. Este problema não é apenas de cada país onde essas ingerências acontecem, mas de toda a União, e é esta que, em estreita cooperação com cada um dos seus membros, deve tomar as medidas necessárias para salvaguardar a autenticidade dos processos eleitorais.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Comentários (27)
Maria Helena Vieira da Silva, La Bibliothèque en Feu, 1974 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (4)
Mário Cesariny, Pintura lacerada II, 1970 (Gulbenkian) |
Os ramos frios, as letras ardentes,
a luz onde poiso, se cai a maresia.
Um som brame na esquina da rua,
semeia bolor no centro do peito.
Nos dias de sol, a voz das aves,
presa na mudez, desce do céu,
canta o segredo do silêncio,
o fulgor da tarde, a chuva a cair.
Parda de granizo, a ave de rapina
plana, suspensa da plumagem:
espreita a lua, espera a morte.
O destino vem na maresia do voo,
na cintilação da água sobre a terra:
o grito do animal na fuligem do fogo.
[1993]
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Simulacros e simulações (71)
Manuel Botelho, 155. est-mr (da série «confidencial/desclassificado: estado-maior»), 2012 |
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Uma ameaça existencial
Julgo que, depois do telefonema
entre Trump e Putin e da intervenção do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance,
em Munique, os líderes europeus terão percebido o grande sarilho em que estamos
metidos. Na prática, a actual liderança americana entregou parte da Ucrânia, ou
talvez toda, à Rússia. Mas não foi apenas a Ucrânia que foi entregue aos
russos; toda a Europa parece agora aos seu alcance. A NATO, neste momento, não
é mais do que uma sigla que ecoa um passado recente, um incómodo para o
movimento MAGA, que suporta Donald Trump e que parece a caminho do fim. E, sem
a NATO – ou mesmo com a NATO, mas sem compromisso militar norte-americano –, a
Europa fica indefesa perante uma superpotência nuclear como a Rússia.
Há uma convergência estratégica e
de interesses entre a liderança russa e a nova liderança norte-americana, e
essa convergência pode passar pela dominação territorial ou, pelo menos, pela
submissão de países livres à esfera de influência das duas grandes
superpotências nucleares. No pior dos cenários, teríamos uma “operação
especial” russa para dominar militarmente toda a Europa e, do outro lado, a
“transformação” do Canadá no 51.º estado dos EUA e a ocupação da Gronelândia.
Num cenário menos dramático, teríamos a submissão dos países europeus à Rússia
através de processos eleitorais, onde a extrema-direita pode ter um papel
importante, bem como a cedência das lideranças nacionais europeias aos
interesses russos, numa espécie de servidão voluntária; enquanto, no outro lado
do Atlântico, os EUA sufocariam economicamente o Canadá e desestabilizariam a
Gronelândia.
Neste momento, a União Europeia e a Europa Ocidental não integrada na União enfrentam um problema existencial. O que está em jogo já não é salvar as democracias e evitar o retorno a regimes autoritários, mas assegurar a independência e a capacidade dos países europeus de decidirem o seu destino. E este é o principal problema. Esta capacidade era débil, pois assentava na dependência do amigo americano. Agora que o amigo americano está a caminho de se tornar inimigo, essa fragilidade tornou-se dolorosamente clara. Resta saber se as lideranças europeias – onde a inglesa deve ser incluída – estão dispostas a enfrentar os perigos que se perfilam no horizonte e se os povos europeus estão dispostos a defender a sua liberdade e os seus valores ou se, adormecidos por oitenta anos de paz e liberdade, preferem entregar-se nas mãos de quem os queira dominar. Se há coisa que me alegraria, nesta parte final da vida, seria que tudo isto não passasse de uma fantasia de um velho esclerosado. Duvido, porém, que o seja.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
A doença do Bloco de Esquerda
Ana Hatherly, Doenças, 1971 (Gulbenkian) |
Uma notícia do Jornal Económico dá conta de que, no distrito de Portalegre, 73 militantes, num universo de "mais de duas centenas", abandonaram o Bloco de Esquerda (aqui). A notícia é interessante a vários títulos.
Em primeiro lugar, porque é mais um sinal de que esta força de esquerda está em desagregação. Para além de maus resultados eleitorais, de práticas laborais em contradição com as crenças dos militantes do partido e de quezílias internas, os próprios militantes, outrora tão empenhados, parecem estar a desistir paulatinamente do partido.
Em segundo lugar, porque uma excelente deputada, Mariana Mortágua, não tem necessariamente de dar uma excelente líder de partido. Hoje, para o observador externo, parece claro que Mariana Mortágua segue um processo inverso ao de Catarina Martins. Esta, no início, parecia bastante frágil em comparação com Francisco Louçã. Essa fragilidade tinha fundamento. Contudo, Catarina Martins excedeu-se: lentamente, tornou-se uma líder com capacidade de afirmação e cumpriu a sua função com honra. Mariana Mortágua, pelo contrário, parecia uma líder forte, mas o tempo tem revelado a sua fragilidade.
Por fim, esta crise no Bloco de Esquerda é mais um episódio de uma crise estrutural da esquerda, que não compreende o mundo em que nos encontramos e está presa a arquétipos ideológicos que perderam sentido ou foram derrotados. Um exemplo disso é a tentativa de estruturar a identidade política em identitarismos particulares e conflitos de ordem cultural. A debandada dos militantes de Portalegre é muito mais do que um episódio paroquial: é o sintoma de uma grave doença do Bloco de Esquerda e da esquerda em geral.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
O progresso moral da humanidade (20)
Giotto di Bondone, La Traición de Judas, 1292-1305 |
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
O Silêncio da Terra Sombria (3)
António Areal, Opus II, n.º 78, 1963 (Gulbenkian) |
A chama ateada do passado
rumoreja se chega o Verão,
uiva se perdida pela estrada.
Pela manhã, desenha-se
a raiva no ronco do dia,
o céu azul recoberto
de arbustos e aves e astros.
E as horas sorriem na sombra,
presas na pedra da memória,
presas na água de âmbar.
A boca seca de tanto salivar.
[1993]
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025
Beatitudes (77) No jardim
Louise Binder-Mestro, Au Jardin, 1905 |
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
Guedes de Amorim, Morfina
Publicado em 1932, o romance Morfina,
de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para
exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em
situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A
estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos,
acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão
em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro
República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e
reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a
oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções
individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e
provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.
O romance centra-se num talentoso
pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo
das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera,
porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar
um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da
tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através
de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher,
mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece
interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas
e a filha uma angariadora de clientes.
É a tentação erótica representada
por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda,
também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução
de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca
com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz
esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para
dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio
artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia,
de cabarets, de álcool e de
drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.
É também um lugar de rivalidades,
de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja.
Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de
um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade
que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu
presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como,
aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a
negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim
retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.
A queda de Pedro António
inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de
drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa
amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é
um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é
inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo
que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do
ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a
narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles
que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das
personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo.
O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação.
A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas
livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma
escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.
É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.