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| José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian) |
Assim escurecida,
a terra é um
rumor errante,
mácula
de sol e sombra,
uma pedra
no silêncio
das estrelas,
na poeira do luar.
[1993]
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| José Manuel Espiga Pinto, Terra Marcada Nº 2, 1971 (Gulbenkian) |
Assim escurecida,
a terra é um
rumor errante,
mácula
de sol e sombra,
uma pedra
no silêncio
das estrelas,
na poeira do luar.
[1993]
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| Carlo Carra, Gentiluomo Ubriaco, 1916 |
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| Marcelino Vespeira, Óleo 131, 1960 (Gulbenkian) |
Como em todas as literaturas, também na portuguesa existe um
cânone. No romance, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Agustina Bessa-Luís
ou José Saramago pertencem, de forma permanente, ao cânone. Outras entrarão e
sairão dele em conformidade com os humores do dia. E há aqueles que parecem
excluídos para sempre desse cânone. Como o escritor alentejano Manuel Ribeiro.
Contudo, é uma personagem muito interessante e um escritor com qualidade
literária. Muito lido nos anos vinte e trinta, a morte trouxe-lhe, como a
muitos outros, o esquecimento do público.
Filho de um sapateiro de Albernoa, chegou a cursar medicina,
tendo desistido por falta de recursos. Teve um percurso singular. Durante a
República interessou-se pelo sindicalismo, foi director do jornal
revolucionário A Bandeira Vermelha. Tornou-se anarquista, colaborando
com o jornal A Batalha, e, para completar o percurso revolucionário, foi
um dos fundadores do Partido Comunista Português, onde foi eleito para a
comissão geral de educação e propaganda e para a Junta Nacional. Em 1921, foi
enviado como delegado da secção portuguesa da Internacional Comunista ao III
Congresso do Comintern. Contudo, o percurso de Manuel Ribeiro não termina aqui.
O revolucionário anarco-comunista converteu-se ao catolicismo, onde encontra a
espiritualidade que as doutrinas revolucionárias tinham escondido sob os
problemas do estômago.
Entre os nove romances que publicou, destacam-se duas
trilogias. A Trilogia Social (A Catedral (1920); O Deserto (1922);
A Ressurreição (1923) e a Trilogia Nacional (A Colina Sagrada
(1925); A Planície Heróica (1927); Os Vínculos Eternos (1929). Na
primeira, acompanha-se o percurso de um arquitecto, Luciano, no seu processo de
conversão ao catolicismo. De certa maneira, podemos ver na personagem uma
projecção do autor. O curioso é que o processo de conversão estava já em
andamento, enquanto Manuel Ribeiro era preso como revolucionário ou quando foi
um dos fundadores do Partido Comunista. A Trilogia Nacional trata, em primeiro
lugar, dos tempos finais da República, depois da tensão, no Alentejo, entre a
terra e a fé e, por fim, do conflito entre moral e ciência, um tema actual.
Vale a pena voltar a ler Manuel Ribeiro? Sim, embora não
seja fácil para leitores que não tenham disponibilidade para uma linguagem
rica, erudita e complexa, nem para a descrição que suspende a acção, para dar
ao leitor a possibilidade de contemplar através das palavras aquilo que o autor
contemplou. Manuel Ribeiro, como outros escritores portugueses, não merece o
esquecimento em que caiu.
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| Léonard Misonne, Hiver, 1904 |
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| Carl Winkel, Motiv von der Unterelbe, 1907 |
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| Paul Klee, Arrebato de miedo III, 1939 |
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| Yale Joel, Couple embracing late at night on the Schoffelgasse, Zurich, 1948 |
- Adeus, tenho de ir.
- Mas, tínhamos combinado...
- Não me lembro de ter combinado nada.
- Estás a brincar.
- Talvez sofra de uma estranha amnésia.
- Como é possível? Não tens idade para isso.
- Meu querido, a deficiência da memória não tem por causa
única a idade.
- Os planos que ontem fizemos para esta noite.
- Ontem? Onde?
- Quando nos encontrámos no café.
- Ah, sim, encontrámo-nos no café é verdade.
- Esta iria ser a nossa primeira e grande noite de amor.
- Grande, mas ainda não percebeste?
- O quê?
- Esta é a noite mais pequena do ano, como pode ser uma grande noite de amor?
- ...
- Adeus, dorme bem.
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| Albert de Rotschild, Am Hallstätter See, 1896 |
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| Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian) |
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| Charles J. Martin, Storm Landscape with Railroad Tracks, 1929-1930 |
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| Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate. Berlin, Germany, October 3, 1990 |
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| David Turnley, Man Reading Paper Through Magnifier, 1975 |
Não é ainda muito claro na Europa, mas já o é bastante nos
Estados Unidos. O principal problema político que assola o mundo ocidental e
que fornece o combustível para a progressão da direita radical e da
extrema-direita é a mulher. Melhor: é o papel da mulher na sociedade. A
imigração tem surgido como um factor de arregimentação desses quadrantes
políticos. Contudo, para um observador mais atento são os direitos das mulheres
que estão a mobilizar muitos votos masculinos – em especial nos eleitores
jovens, mas não só – para soluções políticas radicais. Na Europa – talvez com a
excepção de Espanha – o problema é mais dissimulado, mas aquilo que está a
acontecer nos EUA chegará, mais tarde ou mais cedo, a este lado do Atlântico. A
retórica extremista usa a bandeira da luta contra o feminismo, mostrando este
como uma deriva radical. O que está, porém, em causa, o que mobiliza tantos
homens para a extrema-direita?
Em primeiro lugar, a autonomia sexual das mulheres. Não
tenhamos qualquer ilusão sobre o assunto. O facto de os homens não poderem, no
campo da sexualidade, dominar e impor a sua vontade às mulheres é um factor
perturbante para parte significativa do campo masculino. Um outro factor é a
escolarização. As mulheres, actualmente, têm uma mais alta escolarização do que
os homens. A importância da formação académica, nas sociedades actuais, é de
tal modo grande que está a gerar uma nova clivagem de classe entre pessoas com
formação superior – na sua maioria, mulheres – e pessoas sem essa formação.
Este é também um factor de ressentimento com muito peso no eleitorado
masculino. Por fim, o desaparecimento de empregos, relativamente bem
remunerados, que solicitem competências vistas como masculinas, baseadas na
força física, criando um problema aos homens que apostaram pouco nos estudos.
Estes três factores – todos eles presentes nas sociedades ocidentais – estão a gerar uma radicalização política de parte dos homens, cuja finalidade é limitar os direitos das mulheres, tentando fazê-las retornar a um estado de dependência, limitando drasticamente a autonomia sexual, profissional e, plausivelmente, académica das mulheres. E isto pode mesmo acontecer, caso as mulheres e as forças democráticas não se mobilizem para enfrentar o problema. Esta deriva antifeminina é um sintoma da decadência do Ocidente. Os eleitores estão mais preocupados em voltar ao século XIX – sonhando com fadas do lar – do que enfrentar os grandes desafios que a revolução tecnológica e a afirmação de potências industriais, políticas e militares extra-ocidentais colocam. Uma fantasia, mas fantasias têm colocado ditadores no poder.
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| Anónimo Romano, Escena de gineceo (Villa Imperial. Pompeya) |
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| Dr. Konrad Biesalski e Dr. Krüger, Schmied Am Ambos, 1899 |
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| John Dumont, The Dice Players, 1891 |
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| A. R. Gurrey Jr., Old ocean singing a psalm of of delight…, 1910-1920 |
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| Paul Cézanne, Château Noir, 1903-1904 |
Este democratismo das redes sociais, ao dar força a
movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do
conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um
clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um
conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior
parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e
mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia,
antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era
que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores
da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao
conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma
autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou
física nuclear.
O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes,
caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado
ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica
específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica,
como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação,
são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de
produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a
um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a
ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais?
Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes
sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e
para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível
pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.