sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Descrições fenomenológicas 47. Uma freira caminha

Carlos de Paz, Con pensamientos abollados I, 2001

Um matagal de ervas e arbusto baixos. Corta-o um carreiro de terra batida, calcada pela passagem contínua de seres humanos. Ao longe, suspeita-se um pântano, sobrevoado por patos. Ouvem-se tiros de caçadeira. Uma ave cai e o ladrido dos cães ressoa no espaço aberto. Alguns pinheiros esgalgados cortam a rasura da paisagem. Erguem-se aos céus com os seus troncos finos, dos quais brotam ramos que acabam por se cobrir de agulhas. O vento agita-os, fazendo vacilar o verde com que se disfarçam, e que assim toma diferentes tonalidades à luz baça da manhã. De um deles sai um corvo. Sobrevoa o território e torna a pousar no ramo de onde partiu. Um céu cinzento, mistura imprecisa de nuvens mais e menos densas, desenha um jogo de claros-escuros, de onde desliza a luz. No estreito caminho, uma freira move-se, mergulhada na solidão. Um passo firme, cadenciado, faz-lhe tremer o hábito, que esconde o corpo. Por vezes, quebrada a cadência, o impulso da caminhada faz-lhe saltar no peito o crucifixo pendente dum fio prateado. Da mão direita, cai um terço que, com o caminhar e o desfiar das contas, tremula inquieto. De hábito negro, ela inclina-se para a frente, enquanto anda, como se quisesse antecipar a chegada. Os lábios movem-se em surdina, segundo um ritmo a que o tempo tirou novidade, cobrindo-o com a precisão do hábito. Uma vez por outra, pára, olha o horizonte e com um lenço branco seca o rosto afogueado. Ao retomar o caminho, apressa-se, mas logo retoma à cadência monótona que a há-de levar ao mosteiro que, ainda oculto, a espera.

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