Fernando Lerín - Sem título (1998)
Bem ao meio, um buraco negro, quase circular, talvez com uns quinze
centímetros de diâmetro, condensa o estado da parede. A antiga brancura há
muito que foi ocupada por manchas de humidade, umas mais escuras e densas,
outras apenas uma leve poeira de cinza e fungos. Parecem pinturas murais, em gradação de
cinzentos, hesitando entre o figurativo e o abstracto, persistindo nessa ténue
fronteira que revela uma atracção da própria natureza pelo indeciso ou o desejo
de hibridação que o tempo acaba por introduzir em tudo o que toca ao passar. Do
lado direito, a tinta caiu, deixando ver o velho reboco, também ele a ameaçar
ruir, esfarelando-se em pequenos grãos terrosos. Num primeiro relance, parece o
mapa de uma ilha incrustado no oceano cinerário da parede, uma ilha despovoada
onde, em tempos recuados, se enterrara um tesouro ou um corpo de alguém
amado. A parede une-se ao soalho por um rodapé de mogno mais alto que o
habitual. Estranhamente, parece intacto, como se não tivesse sido tocado pelo
destino da casa. Batido pela luz vinda da rua, brilha no seu vermelho
acastanhado, apenas maculado pelos restos de uma tomada eléctrica, já
desprendida da madeira, deixando ver os fios e o seu interior metálico. O
soalho, ao contrário do rodapé, parece ter recebido os detritos de um
bombardeamento. Restos de tinta, pedaços de estuque do tecto, pequenos buracos,
resíduos que se desprenderam das paredes, carreiros de formigas, sinais da presença de ratos.
Ouve-se o bater descuidado de uns saltos, os passos aproximam-se, uma sombra e,
de seguida, uma mulher ainda jovem, alta, fantasiada de sevilhana. Um vestido
vermelho com bolas negras, até aos pés. Encosta o ombro direito à parede e olha
a janela do outro lado da sala. Enfrenta a luz com uns olhos enormes e negros,
abertos, muito abertos apesar da luminosidade. Naquele olhar, não há nada. Nem
espanto, nem medo, nem expectativa. Passados alguns minutos, resvala pela
parede e agacha-se, as pernas desenham um ângulo de 45º. Os cabelos escuros, deslizam
pelo pescoço e caem sobre os ombros. O cotovelo direito assenta sobre a coxa do
mesmo lado e a mão suporta o rosto. O queixo repousa palma e a
boca aflora no espaço aberto entre o polegar e o indicador. Na face esquerda,
bem abertos, estão quatro dedos longos. Firmes, parecem segurar a face. Ao
acocorar-se, o vestido abriu-se do lado esquerdo. Por essa abertura, entrou a
outra mão que repousa no seio. As pontas dos dedos parecem pressionar o peito
mesmo por cima do coração. Os olhos, ainda bem abertos, ganham expressão. Já
não olham para a rua mas para um dos cantos sombrios do compartimento. Foi um
longo caminho o do olhar. Da inexpressividade passou pela indiferença e agora é
um lago ondulado pelo vento da expectativa. Murmúrios desprendem-se da boca e pairam
sobre o lixo do chão e a ruína das paredes. Um floco de tinta desprende-se do
tecto e pousa sobre os cabelos, uma mancha branca num fundo negro, tão negro
quanto os olhos que expectantes me olham.
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