Guillermo Pérez Villalta - El azar (ou Los augurios) (1980)
Os episódios das viagens ao Europeu de futebol, à China e
aos Estados Unidos (é o que se sabe, por enquanto) por parte de membros do
governo, deputados da oposição e dirigentes da função pública (também, por
enquanto, o que se sabe) mostra como se estava longe de reconhecer a
necessidade de separar o mundo do Estado e o mundo da Economia privada. Pelo
contrário. Agora que o aparelho judicial acordou para o problema, não deixa de
haver nas demissões e processos judiciais em curso uma ironia ou, melhor, um
azar.
Desde a Gloriosa Revolução, em Inglaterra, no século XVII,
que o Estado foi capturado por interesses privados muito específicos. Contrariamente
ao que se afirma, ele não existe – nunca existiu – como representante universal
dos cidadãos de um determinado país. Ele existe para que os privados prosperem.
É aqui, no prosperar dos privados, que o Estado moderno encontra a sua causa
final. Certamente, não está interdito a qualquer cidadão prosperar. É uma
possibilidade universal, mas essa possibilidade nunca se actualiza de forma a
que todos ou mesmo grande parte prosperem.
A ironia está em que os servidores do Estado são, pela
natureza do próprio Estado, servidores dos que prosperam. Existem para que
estes prosperem e se mantenham prósperos. Isto implica, digamos, uma inclinação
mútua. O mais natural seria que os que prosperam recompensassem quem toma conta
da situação. Em Portugal, passado o entusiasmo delirante da revolução, o Estado
foi assumindo o papel que as sociedades modernas lhe atribuem. Assumiu como? Também
com entusiasmo, através do casamento entre os que dominam o Estado e os que
prosperam. Um casamento feito, na inocência de uma descoberta, à vista de
todos.
Estes episódios das viagens, como outros que envolvem políticos,
servidores do Estado e gente que prosperou, são apenas o resultado desse animado,
visível, tolerado e prolífico conúbio. Um verdadeiro casamento de amor. O problema
é que o matrimónio choca aqueles que não prosperam e estes são os detentores de
grande parte dos votos. Para que o Estado sirva com eficácia aqueles que
prosperam é necessário que finja que presta um serviço universal, para evitar a
perda de tempo em aplacar a revolta dos muitos inaptos a prosperar, isto é, a manter a ordem pública para que se os negócios cresçam.
Estes casos, que chegaram agora à esfera pública, ocorrem
assim numa fase de transição entre uma situação onde o casamento entre as duas
partes era permitido sem grandes estados de alma e o novo tempo em que o amor entre o Estado e os
que prosperam tem de se consumar em affaires
secretos, em alcovas longe dos voyeures
invejosos e impenitentes. Aqueles que foram apanhados neste meio tempo tiveram
o que se chama o azar dos Távoras. Ou, numa versão mais ao gosto popular,
tiveram azar em serem apanhados com as calças na mão.
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