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Franz Josef Kline, Red Clown, 1947 |
No episódio Ventura – Quaresma há qualquer coisa que deve
preocupar todos aqueles que querem viver numa comunidade decente, onde se
respeitem os princípios do Estado de direito, os da vida civilizada e os direitos
humanos. Esta preocupação é polifacetada,
pois o que começa a desenrolar-se aos nossos olhos incide em diversos aspectos,
não se resumindo apenas à performance política do deputado do Chega.
Em primeiro lugar, o conjunto de temas que Ventura traz para
a esfera pública era até há pouco tempo inimaginável que saíssem da conversa de
café ou de arenga numa viagem de táxi. Tanto a direita como a esquerda têm tido
linhas vermelhas que muito raramente ultrapassam, as quais contribuem para uma
vida política pacífica e, felizmente, pouco polarizada. A aparente inconsistência de
Ventura, o facto de haver no seu percurso grandes incoerências, conduz a uma
certa sobranceria das forças democráticas, que parece não terem aprendido nada
com o Brexit, a eleição de Trump e a
de Bolsonaro.
Em segundo lugar, Ventura explora a avidez da comunicação social, das televisões antes do mais, por aquilo que provoca audiências. Até uma conhecida estação de rádio julgou
ser moralmente lícito colocar em votação o apoio à proposta de Ventura sobre o
confinamento de ciganos. Poucos são os órgãos de comunicação social que estão
verdadeiramente empenhados na defesa do regime democrático. Aproveitam as
liberdades para, por qualquer meio, mesmo os mais abjectos moralmente, vender
um produto. Propostas políticas sérias são coisas chatas, de que ninguém quer
saber. Atoardas perigosas geram audiências, consolidam as empresas, geram
dividendos. Tudo na comunicação social está estruturado para favorecer o tipo
de intervenção fácil e escandalosa de André Ventura. Este não se faz rogado em
produzir escândalos.
Em terceiro lugar, a existência de uma plateia acolhedora
das diatribes do deputado da extrema-direita. Esta plateia é constituída por
pessoas que, por norma, têm fraca consciência política, compromisso afectivo reduzido
com a democracia, ressentimento perante as elites políticas, fácil acolhimento dos
temas que são explorados pelo deputado Ventura. Esta plateia reforça-se como
grupo tanto pela influência disruptiva da comunicação social como pelas redes sociais,
onde se organiza enquanto comunidade e reforça laços ideológicos. Aí o apolitismo
transforma-se em campo fértil de opções políticas antidemocráticas e
irracionais.
Em quarto-lugar, o que mais me preocupa, a frivolidade com
que os partidos e políticos democráticos estão, da direita à esquerda, a tratar
o assunto. Alguns exemplos. O CDS parece deixar-se atrair pelo Chega. Há tempos
não afastados, Rui Rio não descortinava no discurso de Ventura nada que lembrasse
a extrema-direita. As pessoas da esquerda ficam excitadíssimas com
proclamações, petições, slogans, palavras de ordem e coisas do género.
O cúmulo da frivolidade é a trivela de António Costa. As pessoas batem palmas,
mas há um problema que subsiste e esse não é André Ventura.
Trata-se da existência da plateia referida anteriormente,
que não se sente representada politicamente, que não está racional nem afectivamente
comprometida com a democracia, que vê as coisas como Ventura diz que são,
apesar deste saber que não são assim, e cuja dimensão não se conhece muito bem,
mas que se intui não ser pequena e poder crescer, como cresceu a de
Bolsonaro ou a de Trump. Este não é um assunto para slogans, palavras de ordem,
ditos jocosos e outras frioleiras do género. Trata-se da integração de um
conjunto significativo de portugueses na ordem democrática, de os partidos
políticos democráticos, à direita e à esquerda, encontrarem caminhos para os fazer
sentir representados. Caso a frivolidade da abordagem subsista, ainda vamos ter
uma triste surpresa.